terça-feira, 30 de setembro de 2008

O LIRISMO DE UMA POESIA SEM TEMPO

Marcos Uzel

Fotógrafo: Ricardo Prado
Livro de José Inácio Vieira de Melo une memória e contemporaneidade:
"Parto da memória para abordar os elementos do universo".


A poesia de José Inácio Vieira de Melo, 37 anos, agrega o passado e o presente em um mesmo lugar, como se não existisse o tempo. Um olho é pura memória. O outro mira os primeiros anos deste início de século, impregnados de fragmentações e crises de identidade. É como se a contemporaneidade o encontrasse "em cima do telhado da infância". Assim é A terceira romaria, terceiro livro do poeta alagoano, publicado pelo selo independente Aboio Livre Edições, com lançamento amanhã, às 18h, na Academia de Letras da Bahia (Nazaré).
Elogiado por nomes expressivos da literatura brasileira, como Lêdo Ivo, Moacyr Scliar, Olga Savary, Ruy Espinheira Filho e Gerardo Mello Mourão, o também jornalista José Inácio chega à terceira obra ampliando poeticamente a sua visão das coisas da vida e revisitando versos que publicou em trabalhos anteriores. Estão em A terceira romaria dez poemas do livro inaugural Códigos do silêncio (de 2000, reunidos, agora, numa seção intitulada Jardim dos mandacarus) e 30 da obra Decifração de abismos (de 2002, compondo o Jardim das algarobeiras).
"Sou um poeta que contempla a memória, mas não se prende a isso. Minha arte é a palavra. Através dela, tento mostrar o que me causa estranhamento e encantamento em minha caminhada", define José Inácio, que enveredou pela literatura trilhando uma estrada lírica e carregada de humanidade. Nela, também deixou-se mover pela delícia de reinventar o que já foi dito: "Não há mais poesia em dizer a uma mulher que ela é uma rosa. Mas a poesia logo ressurge se dissermos que ela é uma tempestade", ilustra.
Logo no poema de abertura, Louvação, ele anuncia: "Eu, poeta dos Sertões, passarinho do Vento Nordeste,/ venho perante tu, que habitas nos jardins,/ louvar a graça maior da poesia". E vai sublinhando página adentro a sua genuína preocupação com o homem, como destaca bem o escritor Mayrant Gallo na orelha de A terceira romaria. Nos versos de Cântico, por exemplo, José Inácio capricha: "Eu, que venho de secas, que escrevi versos de dor,/ ao ver meu irmão sedento agarrar-se em esperança,/ manter-se sustentado pelo mínimo orvalho, /agora me deleito com o sorriso abundante que a chuva trouxe".
Especulações sobre a existência, infância, descobertas, erotismo, louvação ao amor e à amizade são abordagens que o acompanham nesse percurso fortemente grafado pelo lirismo da vida campestre. Por vezes marcadamente delicado, como em Cerca de Pedra (Aqui, na Cerca de Pedra,/ nesta noite caatingueira,/ estou em silêncio, ouvindo/ o silêncio das estrelas). Em outros momentos, doloroso, como nos versos de Seca (Olhos esbugalhados - fome/ beiços ressequidos - sede/ e a vida some... Tudo vermelho de todo Sol).
"Dou uma grande atenção à pesquisa de linguagem, mas não esqueço minha origem. Digo isso, não no sentido geográfico. Parto dela para abordar os elementos do universo", enfatiza o alagoano nascido em Olho d''Água do Pai Mané, povoado do município de Dois Riachos, e radicado na Bahia desde 1988. "Muito apreciei o seu lirismo cortante como o fio de uma navalha, uma poesia que, embora seca, esconde e guarda uma chuva secreta", saúda, na contracapa da publicação, o também alagoano Lêdo Ivo, uma das expressões de maior destaque na moderna literatura brasileira, sobretudo pela contribuição poética.
José Inácio tem se inserido ativamente na produção cultural da capital baiana, através de iniciativas como a revista de arte, crítica e literatura Iararana, da qual é co-editor, e o projeto Poesia na Boca da Noite, sob sua coordenação. Em 2003, ele lançou o livrete Luzeiro, composto de três poemas e definido pelo autor como um tributo ao cordel, uma de suas referências literárias, além de ter sido uma prévia do então inédito A terceira romaria.
Foi também de José Inácio a organização do livro Concerto lírico a quinze vozes - Uma coletânea de novos poetas da Bahia, lançado no ano passado. Sua obra mais recente traz ilustrações do artista plástico Ramiro Bernabó e prefácio do poeta e ensaísta paraibano Hildeberto Barbosa Filho. E muitos outros trechos sensíveis, de belo conteúdo metafórico, como esses versos de Dois momentos: "Entro no poema como quem come cuscuz/ e sai dia afora para encarar a existência./ A poesia lava os pés e as lágrimas".


Marcos Uzel é jornalista.

Texto publicado no jornal Correio da Bahia, em Salvador, em 5 de junho de 2005.

Um comentário:

::Soda Cáustica:: disse...

Zé Inácio, por onde vc anda ? lendo teus textos deu uma vontade de bater papo contigo em mesa de bar.
Bons escritos os teus.