terça-feira, 30 de setembro de 2008

O LIRISMO DE UMA POESIA SEM TEMPO

Marcos Uzel

Fotógrafo: Ricardo Prado
Livro de José Inácio Vieira de Melo une memória e contemporaneidade:
"Parto da memória para abordar os elementos do universo".


A poesia de José Inácio Vieira de Melo, 37 anos, agrega o passado e o presente em um mesmo lugar, como se não existisse o tempo. Um olho é pura memória. O outro mira os primeiros anos deste início de século, impregnados de fragmentações e crises de identidade. É como se a contemporaneidade o encontrasse "em cima do telhado da infância". Assim é A terceira romaria, terceiro livro do poeta alagoano, publicado pelo selo independente Aboio Livre Edições, com lançamento amanhã, às 18h, na Academia de Letras da Bahia (Nazaré).
Elogiado por nomes expressivos da literatura brasileira, como Lêdo Ivo, Moacyr Scliar, Olga Savary, Ruy Espinheira Filho e Gerardo Mello Mourão, o também jornalista José Inácio chega à terceira obra ampliando poeticamente a sua visão das coisas da vida e revisitando versos que publicou em trabalhos anteriores. Estão em A terceira romaria dez poemas do livro inaugural Códigos do silêncio (de 2000, reunidos, agora, numa seção intitulada Jardim dos mandacarus) e 30 da obra Decifração de abismos (de 2002, compondo o Jardim das algarobeiras).
"Sou um poeta que contempla a memória, mas não se prende a isso. Minha arte é a palavra. Através dela, tento mostrar o que me causa estranhamento e encantamento em minha caminhada", define José Inácio, que enveredou pela literatura trilhando uma estrada lírica e carregada de humanidade. Nela, também deixou-se mover pela delícia de reinventar o que já foi dito: "Não há mais poesia em dizer a uma mulher que ela é uma rosa. Mas a poesia logo ressurge se dissermos que ela é uma tempestade", ilustra.
Logo no poema de abertura, Louvação, ele anuncia: "Eu, poeta dos Sertões, passarinho do Vento Nordeste,/ venho perante tu, que habitas nos jardins,/ louvar a graça maior da poesia". E vai sublinhando página adentro a sua genuína preocupação com o homem, como destaca bem o escritor Mayrant Gallo na orelha de A terceira romaria. Nos versos de Cântico, por exemplo, José Inácio capricha: "Eu, que venho de secas, que escrevi versos de dor,/ ao ver meu irmão sedento agarrar-se em esperança,/ manter-se sustentado pelo mínimo orvalho, /agora me deleito com o sorriso abundante que a chuva trouxe".
Especulações sobre a existência, infância, descobertas, erotismo, louvação ao amor e à amizade são abordagens que o acompanham nesse percurso fortemente grafado pelo lirismo da vida campestre. Por vezes marcadamente delicado, como em Cerca de Pedra (Aqui, na Cerca de Pedra,/ nesta noite caatingueira,/ estou em silêncio, ouvindo/ o silêncio das estrelas). Em outros momentos, doloroso, como nos versos de Seca (Olhos esbugalhados - fome/ beiços ressequidos - sede/ e a vida some... Tudo vermelho de todo Sol).
"Dou uma grande atenção à pesquisa de linguagem, mas não esqueço minha origem. Digo isso, não no sentido geográfico. Parto dela para abordar os elementos do universo", enfatiza o alagoano nascido em Olho d''Água do Pai Mané, povoado do município de Dois Riachos, e radicado na Bahia desde 1988. "Muito apreciei o seu lirismo cortante como o fio de uma navalha, uma poesia que, embora seca, esconde e guarda uma chuva secreta", saúda, na contracapa da publicação, o também alagoano Lêdo Ivo, uma das expressões de maior destaque na moderna literatura brasileira, sobretudo pela contribuição poética.
José Inácio tem se inserido ativamente na produção cultural da capital baiana, através de iniciativas como a revista de arte, crítica e literatura Iararana, da qual é co-editor, e o projeto Poesia na Boca da Noite, sob sua coordenação. Em 2003, ele lançou o livrete Luzeiro, composto de três poemas e definido pelo autor como um tributo ao cordel, uma de suas referências literárias, além de ter sido uma prévia do então inédito A terceira romaria.
Foi também de José Inácio a organização do livro Concerto lírico a quinze vozes - Uma coletânea de novos poetas da Bahia, lançado no ano passado. Sua obra mais recente traz ilustrações do artista plástico Ramiro Bernabó e prefácio do poeta e ensaísta paraibano Hildeberto Barbosa Filho. E muitos outros trechos sensíveis, de belo conteúdo metafórico, como esses versos de Dois momentos: "Entro no poema como quem come cuscuz/ e sai dia afora para encarar a existência./ A poesia lava os pés e as lágrimas".


Marcos Uzel é jornalista.

Texto publicado no jornal Correio da Bahia, em Salvador, em 5 de junho de 2005.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

JIVM - MEMÓRIA

Ilustração: Juraci Dórea


M E M Ó R I A


Gosto de subir no telhado da casa
e olhar para dentro do quintal,
é lá que estão o menino e a arte.

A incompreensão vestiu o menino.
Ele se exibiu para o azul do dia
e para os olhos daquelas línguas.

O infante, dentro da sua solidão,
encontrou a estrada e caminhou
e enveredou por tantos descaminhos.

Quantas vezes dormiu ao relento?
Quantas vezes tombou e caiu?
Quantas vezes seguiu por miragens?

Ah essas cicatrizes, esses calos
pelo corpo e pela alma do menino,
ah, esse deserto de ilusão.

Mas assim como existe a sede,
existe a imensidão do mar,
e as coisas vão à balança.

E o que é viver cada dia
senão beber da água
e entender os merecimentos?

Ouço vozes – muitas vozes –
dentro de mim mesmo,
todas dizem que é preciso prosseguir.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

terça-feira, 23 de setembro de 2008

PROJETO LITERATURA COMENTADA - A CASA DOS MEUS QUARENTA ANOS EM JEQUIÉ

Sábado, dia 27, participarei do projeto Literatura Comentada, em Jequié. O evento é coordenado por André Bomfim e Lucas Caetano Ribeiro. Na ocasião, lançarei o CD de poemas A casa dos meus quarenta anos e falarei do meu percurso poético. Mais uma vez vou ter a satisfação de contar com a participação especialíssima do Grupo Concriz, da cidade de Maracás, que vai apresentar um recital com 35 poemas meus, inéditos. O Grupo Concriz é composto por 11 jovens (Caroline Brito, Danilo Spínola, Esther Maria, Gina Alves, Hermann Henrique, Ivana Karoline, Marcelo Nascimento, Matheus Machado, Pablo Sá, Robson Nascimento e Vanessa Vitória), e conta com a direção magistral do poeta e professor Vitor Nascimento Sá.
JIVM

JIVM - ZOADA

Ilustração: Ramiro Bernabó


Z O A D A


Os livros foram lidos e tudo já foi dito:
resta o silêncio – este corvo doido,
resta a folha de papel em branco
urubuzando minhas dores,
buscando os meus anagramas.

Podem rir sem pesar,
o poeta está bêbado e não sai da linha torta.
Não aguardem a última risada,
pois nem o ruído da morte
arrepiará as pétalas deste silêncio,
nem os estrondos de todas as bombas
farão frente à zoada que me aflige.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

sábado, 20 de setembro de 2008

VERÔNICA DE VATE: CLEBERTON SANTOS

CLEBERTON dos SANTOS
1979 – Nasce em Propriá – Sergipe, em 14 de maio, na Rua do América, filho de Helena dos Santos Feitosa e José Francisco dos Santos (Maria Zuleide Nunes dos Santos e Juraci Barbosa Nascimento).
1987 - Ingressa na 1ª série da Escola de 1º Grau Graccho Cardoso, em Propriá.
1991 – Transfere-se na 5ª série para a Escola de 1º e 2º Graus Joana de Freitas Barbosa (Polivalente), em Propriá.
1993 – Transfere-se na 7ª série para a Escola de 1º e 2º Graus Fundação Bradesco, em Propriá.
1995 – Transfere-se para o Colégio Diocesano de Propriá, onde cursa o Magistério.
1997 – Forma-se em Magistério de 1º Grau da 1ª a 4ª série. Participa, pela primeira vez, do Concurso de Poesia Falada de Propriá. Publica três poemas na Antologia Literária “Analecto”, lançada em Aracaju-SE.
1998 – Em 1º de junho, falece sua mãe Helena dos Santos Feitosa. Muda-se para Candeias – Bahia. Participa do Concurso de Poesia Falada de Propriá (a poesia “O Poeta” recebe o prêmio de segundo lugar, no valor de 150,00).
1999 – Ingressa na Universidade Estadual de Feira de Santana – Bahia, onde cursa Licenciatura em Letras Vernáculas. Participa do Concurso de Poesia Falada de Propriá.
2000 – Participa do Concurso de Poesia Falada de Propriá. Publica o livro de poemas “Ópera Urbana”, pelas edições MAC – Feira de Santana / BA. Participa da “Antologia de Contos do Prêmio Literário TAP – Redescobrindo o Brasil aos 500 anos”, publicada no Rio de Janeiro pela Record. Participa do espetáculo teatral “A vida de Aluisio Resende”, em Feira de Santana (representando o poeta Aluisio Resende).
2002 – Casa-se com Lílian Almeida de Oliveira Lima e passa a morar em Feira de Santana. Vencedor do Prêmio Escritor Universitário Alceu Amoroso Lima – Academia Brasileira de Letras / Rio de Janeiro. Passa a colaborar com cadernos culturais e revistas literárias.
2003 – Forma-se no curso de Letras Vernáculas - UEFS.
2004 – Ingressa no Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural – UEFS.
Participa do recital Caruru dos 7 poetas, Salvador, coordenado pelo poeta João de Moraes Filho e Luisa Mahin.
Publica na revista iararana 9, de Salvador.
Convidado do Projeto Malungos, realizado em Salvador e coordenado pela poeta Vanessa Buffone.
2005 – Convidado do Projeto Poesia na Boca da Noite, realizado em Salvador e coordenado pelo poeta José Inácio Vieira de Melo.
Convidado do Porto da Poesia, na VII Bienal do Livro da Bahia, setembro, Salvador, coordenado pelos editores da revista iararana.
Vencedor do Projeto de Arte e Cultura Banco Capital, ano IV, na categoria Literatura (poesia).
Convidado do Café Literário do III Congresso de Educação de Vitória da Conquista, outubro, coordenado pelo poeta Adriano Eysen.
Convidado do Caruru dos 7 Poetas, Cachoeira, outubro, coordenado pelo poeta João de Moraes Filho.
Convidado para palestrar na Escola Fundação Bradesco, em Propriá – SE, 27 e 28 de outubro.
Convidado do Projeto Imagem do Verso, 23 de outubro, Salvador, coordenado pelo poeta Elizeu Moreira Paranaguá.
Lança o livro Lucidez Silenciosa (poesia), em Salvador, 30/10/2005.
Lança o livro Lucidez Silenciosa (poesia), em Feira de Santana, 10/12/2005.
O poema “Infância” recebe MENÇÃO HONROSA no Concurso Nacional de Poesia Helena Kolody, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná.
2006 – Defesa da Dissertação de Mestrado intitulada “Nas entranhas da cidade (estudo da lírica urbana de Reynaldo Valinho Alvarez)” no Programa de Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana.
19/04/2006 – Lançamento do livro Lucidez Silenciosa, em Aracaju, na Assembléia Legislativa de Sergipe. Evento organizado pela poeta e jornalista Ilma Fontes.
02/05/2006 – Toma posse no cargo de Professor Substituto de Língua Portuguesa de 1º e 2º Graus no CEFET – Valença, Bahia.
23/09/2006 – Participa do Caruru dos 7 Poetas (3 edição), em Cachoeira - BA.
29/09/2006 – Lançamento do livro Lucidez Silenciosa, em Valença, durante a II Semana do Turismo Valença. O evento foi realizado pelo CEFET – Valença.
25/10/2006 – Lançamento do livro Lucidez Silenciosa, na UESC – Ihéus/BA, durante o VII Seminário Internacional de Literaturas Luso-Afro-Brasileiras, a convite da Prof. Daniela Galdino. 09/11/2006 - Lançamento do livro Lucidez Silenciosa, no Café Literário, durante o IV Congresso de Educação de Vitória da Conquista / BA. Coordenação do poeta Adriano Eysen.
10/11/2006 - Lançamento do livro Lucidez Silenciosa, no projeto Papo Lírico, durante a Semana de Letras da UESB, Campus de Jequié / BA. Coordenação da Profª Valéria Mota.
10/04/2007 – Toma posse no cargo de Professor de Língua Portuguesa de 1º e 2º Graus no Colégio Estadual Governador Luis Viana Filho, lotado na Secretaria de Educação do Estado da Bahia.
14/05/2007 – Recebe o Prêmio WALY SALOMÃO da Academia de Letras de Jequié.
2008 – Publica três poemas na Revista Poesia Sempre (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional).


AMANHÃ
Para José Inácio Vieira de Melo


Contemplar o amanhã sem vê-lo
apascentar memórias de um mundo antigo
enquanto ossos e sombras insones
repousam submersas em solo marítimo.

Contemplar o amanhã sem detê-lo
em sua voracidade de amanhecer.


CLEBERTON SANTOS

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

CLEBERTON SANTOS - CALÇADA RIBEIRINHA



CALÇADA RIBEIRINHA


Queria sentar nesta calçada antiga
repousar meus gritos e teoremas
jogar castanhas no buraco d’água.

Queria sentar nesta calçada antiga
sem a pressa dos vendavais urbanos
contar estrelas em esteiras amarelas.

Queria sentar nesta calçada antiga
sem a poesia que me atormenta
sentir a lua fria sobre as pernas.

Queria sentar nesta calçada antiga
e ver surgir do batente liso
a velha sombra da manhã vivida.


CLEBERTON SANTOS

BELEZA NECESSÁRIA

José Inácio Vieira de Melo

Nos 40 poemas que compõem Lucidez Silenciosa, Cleberton Santos apresenta uma lira cheia de vigor. Não é uma poesia de fáceis arroubos, mas contida, disciplinada, que preza pela linguagem e que mostra que seu autor sabe os rumos que deseja trilhar – passos semelhantes aos de um Baudelaire: “ir ao fundo do desconhecido para encontrar o novo”.
Nesse seu livro de estréia, Cleberton não está preocupado em seguir vertentes literárias, não desperdiça tempo com este ou aquele grupo de vanguarda, desse ou daquele lugar. O seu compromisso é com a arte poética, é com a estética da palavra.
O livro está dividido em quatro partes. Em todas elas, é perceptível a busca da síntese no dizer, do condensar as palavras, no que resulta uma poesia substantiva e substancial.
Em Bestiário Inútil, primeira parte, há uma paisagem e um calango que espreita o mundo. Cleberton Santos é um poeta ofuscado pelos delírios, um cego – um Homero, um Patativa, um Borges – que enxerga o mundo pelos olhos desse calango e confere existência à paisagem. Sente cravado no peito o silêncio. Não um silêncio qualquer, mas aquele que executa, a todo instante, um “Concerto para ninar calangos” e despertar matizes:

Silêncio tecido de dor e violinos
crava em meu peito
concerto estapafúrdio
para ninar calangos opalinos.

Além dos calangos, são invocados escorpiões, pardais, galos e ossos de um antigo Minotauro. O poeta retorna ao tempo dos pardais e o chão é céu, onde nuvens de carambolas e de goiabas maduras despertam os primeiros desejos e o fazem ruborizar (“Sonhos e pardais”).
Em Mitos e Formas, segundo capítulo deste opúsculo do poeta sergipano da Bahia, tudo é metamorfose. O “Minotauro” ressuscita do Bestiário Inútil. Teseu, personificação do poeta, embora agonizante, sabe que o alimento dos galos que cria, em sua morada, são os mitos e as formas – grãos imprescindíveis para os cantores da aurora. Teseu, esfaqueado e lúcido, renasce na aurora, seu sangue é o arrebol, é o novo. A manhã traz no âmago o germe da tarde e a tarde é conseqüência do dia, a tarde é noite que se aproxima a anunciar o “Amanhã”:

Contemplar o amanhã sem detê-lo
em sua voracidade de amanhecer.

Lucidez Silenciosa é a matriz do livro de Cleberton. Nesta terceira seção, o poeta homenageia Florbela Espanca e Pablo Neruda, dialoga com outras referências, como em “Poema ocasional”, em que estão justapostas as vozes aveludadas de Alphonsus Guimaraens e de Cruz e Souza, baluartes do Simbolismo no Brasil.
Mas o momento culminante deste capítulo é o poema “Amor”. Dos recônditos lugares do silêncio, das alturas da lucidez, Cleberton Santos erige – em arquitetura exata – o templo do amor. Em sua partitura, não há arrodeios nem floreios. É o que é, seja qual for a circunstância:

O vestido preto
está dançando na esquina.
O amor é uma festa
mesmo em dia de luto.

O Canto Quase Memória, derradeira parte de Lucidez Silenciosa, começa com um poema que despeja nas retinas do leitor o Sísifo que todo ser humano é. E assim, condenado pelo destino, o poeta segue a empurrar, montanha acima, “a pedra infinitamente pedra”. Mas, aprendiz do velho Vicente, amola suas facas na pedra, que é seu fardo e sina, para, em seguida, esgrimir seus versos e compor a sua lira.
Cleberton demonstra ser um poeta que dedilha a chuva dos versos na flauta dos dias. Ciente do caminho que tem a percorrer, olha para frente e – com olhos de calango na “Paisagem em movimento” – enxerga nos longes, lá em 2050, e sabe o que o espera. E tranqüilamente toca a sua “Composição para flauta”:

Faço versos com retalhos de vida
fios de cabelos que apascento nos dedos.

Lucidez Silenciosa anuncia os vastos horizontes que aguardam pelo seu criador. Em outra época, outro jovem poeta, Castro Alves, sintetizou em um verso a sua ânsia em alçar vôo: “Eu sou pequeno, mas só fito os Andes”. Como o poeta condoreiro, Cleberton Santos sabe da sua condição efêmera, mas mira o infinito e brada para o Cosmo a sua necessidade de Beleza.


Prefácio do livro Lucidez Silenciosa, de Cleberton Santos, publicado, também, no jornal A Tarde Cultural, em 26 de novembro de 2005, em Salvador.

domingo, 7 de setembro de 2008

LANÇAMENTO - A CASA DOS MEUS QUARENTA ANOS EM SALVADOR


MONTANDO NO BICHO MÍTICO PELAS TRILHAS DA IMAGINAÇÃO: UMA BREVE CAVALGADA EM A INFÂNCIA DO CENTAURO, DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Luciano Rodrigues Lima

PROÊMIO

Era uma tarde-noite quente. Eu e Lúcia perambulávamos pelas ruas cansadas e sofridas de Cachoeira, quando alguém me chama. Viro-me e vejo: Café Literário! Penso: duas boas coisas juntas. Muito mais. Entro e encontro pessoas recitando poesias na boquinha da noite. O poeta José Inácio Vieira de Melo, o fotógrafo e poeta Damário Dacruz e diversos jovens poetas lançando sementes no ar. Quando saímos de lá, meio inebriados, as ruas tortuosas de Cachoeira, antes apenas um cenário indecifrável, passaram a fazer sentido para nós.

POESIA PARA MONTAR E VIAJAR

Montar no centauro e sair por aí, ou ser o próprio centauro? Se o bicho mítico já é estranho e misterioso, imagine quando pequenininho, quem não gostaria de ver ou imaginar um? Tudo isso é possível dentro desse título, que, de si, já é um poema inteiro, pois poemas são gatilhos da imaginação; “A infância do centauro”, é um verso, é rítmico. Vamos montar no bicho e sair por aí.
José Inácio pratica poesia de diversos tipos - em primeira pessoa (“A sagração do mito”), falando de si mesmo e do próprio poeta que o habita, a partir de um mirante bem alto dentro dele mesmo, em segunda pessoa (“Epitáfio para um vaqueiro”, “Adorno”), quando o tu parece um faca cortando, aparando retilínea as palavras, em terceira pessoa (“Nascimento do poema”), como quem fala de fora de si mesmo, no infinitivo (“Metamorfose”), convidando o leitor à ação.
A poesia de José Inácio Vieira de Melo, a cada instante, perde a inocência das palavras e a recupera adiante. Explico. Um poeta pode tentar falar do mundo diretamente. Olhar ou sentir o mundo em torno e devolvê-lo em palavras diretas. Seria um diálogo poeta-mundo, sem mediação. Às vezes, porém, isto não é mais possível, devido à “floresta de símbolos” sobre a qual nos adverte Charles Baudelaire, no seu poema “Correspondences”.
Exemplifico. Em “Adeus”, José Inácio (o poeta dentro dele, é claro) parece falar diretamente com o seu passarim, lidando com a inocência das palavras, sem acordar as feras dentro delas, como se pudesse esquecer da carga semântica histórica que cada simples palavrinha traz. Ele reinaugura as palavras. Mas em “Quintanar” e “Epitáfio para um vaqueiro” e “Pedras amoladas, facas atiradas”, José Inácio é o poeta metalingüístico, algo modernista, praticando um intertexto com Mário Quintana, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto.

O LIVRO

Ao crítico não cabe elogiar ou detratar. Cabe-lhe apenas imiscuir-se no espaço entre a obra e o leitor, mediando-os tão pedagogicamente quanto possível. Descrevo, então, a obra. O livro se compõe de partes, com nomes sugestivos: Centauro, Testamento, Chave, Herança, Harém, Jardim, Romaria, mas não há restrição temática em cada uma das partes. Então, as páginas com os nomes podem soar como poemas de uma só palavra, ou palavras-poemas. A edição, pela Escrituras Editora, ilustrada pelo artista Juraci Dórea, é muito bem cuidada, possui prefácio de Ronaldo Correia de Brito, o qual demonstra conhecer segredos de poesia, e contra-capa de Gerardo Mello Mourão.
Ao ler o livro inteiro, tive sensações diversas: senti cheiro do mato do sertão (do sertão com gado, que é um tipo específico de sertão), pressenti o tom cavalheiresco medieval ainda presente na nossa cultura, reportei-me aos mitos bíblicos (“Jardim das algarobeiras”) e senti a atmosfera do cristianismo rústico em meio às pedras e espinhos do sertão nordestino, lembrando mesmo a própria Palestina (os sertanejos não são exilados em sua própria terra, como os palestinos?), entrevi o amor com o erotismo mitigado simbolicamente nas “touceiras de capim e éguas luzidias”, em “Gênese”, ou “no ritmo de vossas ancas”, em “Harém”, vi um poeta citadino intoxicado de palavras em “Zoada”. Encontrei o regional e o universal, o pessoal e o coletivo, imanência e transcendência, a linguagem e a metalinguagem, e diversos ritmos e métricas, ou melhor, formatações, termo mais apropriado para a poesia escrita em computador. O poeta contemporâneo é como o cantor que canta reggae, samba, bossa, baião e até rock. Mas não aconselho ninguém a ler A infância do centauro de uma só sentada. Penso que é melhor aproveitar um ou alguns poemas de cada vez, ou ler separadamente cada uma das partes a que me referi.
A infância do centauro é, na sua inteireza, uma busca: pelo “quem sou eu”, por “onde estou”, por “o que são as coisas” e pelo “o que significam as palavras”, enfim, pela impossível resposta para “o que é a poesia?”. È um passo em uma caminhada, um meio de caminho, um entre-lugar. Não chega ao destino, mas não volta atrás. Mas, nesse percurso, o leitor pode pegar carona no centauro, ou mesmo ser o próprio centauro, metáfora da poesia em movimento.

“CERCA DE PEDRA”: UM POEMA DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Quando leio criticamente um livro de poesia, gosto de comentar um poema, isoladamente. Acho que, lembrando mais detidamente de um poema, passo a incorporar melhor a poética daquele autor, e, assim, poder melhor exemplificá-la. Como escolher um poema? Ao acaso, pois o gosto pessoal pode ser arriscado. Não existem poemas melhores ou piores, em A infância do centauro. Existem diferentes poemas. Abri o livro sem olhar e, no cara ou coroa, entre os dois poemas do livro aberto deu “Cerca de pedra”.
Reproduzo-o:

CERCA DE PEDRA

Aqui, na Cerca de Pedra,
nesta noite caatingueira,
estou em silêncio, ouvindo
o silêncio das estrelas.

Li o poema auditiva e visualmente. Aos ouvidos soa como um hai-kai duplo. Visualmente é uma cena de noite escura (ou não) no sertão. No sertão, não! Na caatinga. Esta sim, embora menos pomposa, é bem nordestina. Aliás, vejo um vulto solitário sentado em uma cerca de pedra e a noite é de luar. Agora já não vejo mais a cena. Sou eu que estou lá, encostado na cerca de pedra, pois essas cerquinhas de pedra da caatinga não são lá tão boas para sentar. Pode doer nos fundilhos e prejudicar a meditação. Olho para cima e penso em Bilac, inevitavelmente, pois minha mente está povoada de outros poemas. Por instantes a noite silenciosa me envolve. A sensação é muito intensa e fugaz. Não se deve prolongar muito a estesia de um poema, para não desgastá-la. Às vezes a emoção é muito forte e é até perigoso mantê-la por muito tempo.
“Cerca de Pedra” é coisa de minutos, ou segundos. Você vai lá naquela noite silenciosa e volta logo. Senão, você pode se perder na caatinga, para sempre. Ou, mais provável, na caatinga escura e perigosa que já existe dentro de você.

REFERÊNCIAS

Melo, José Inácio Vieira de. A infância do centauro. São Paulo: Escrituras, 2007. 135 p.


Luciano Rodrigues Lima é natural de Salvador, Bahia. É doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor (UNEB e UNIFACS) e ensaísta. Ilustração: Gilvan Samico