quarta-feira, 16 de abril de 2008

A INFÂNCIA DO CENTAURO

Francisco Carvalho


O poeta alagoano José Inácio Vieira de Melo, residente em Jequié, Estado da Bahia, é confessadamente um nômade. Não se enclausura em gabinetes à espera de que os poemas lhe caiam das nuvens, à maneira de bátegas que despencam do céu. Viaja pelo Brasil inteiro para dialogar com poetas de tendências as mais diversas, e nisso se emparelha com os menestréis dos tempos antigos, que recitavam poemas e canções nos palácios dos reis ou nas assembléias e praças públicas, onde filósofos de todas as tendências discutiam suas teorias sobre a origem do universo.
Em texto publicado na contracapa do livro, Gerardo Mello Mourão, falecido recentemente, faz elogios explícitos à poesia de José Inácio. Segundo palavras do vate das Ipueiras, sabedor de muitos idiomas e profundo conhecedor do legado cultural de numerosos países, “José Inácio Vieira de Melo sabe que o poeta é o fundador dos seres. Só ele pode trazer dos abismos a decifração de todas as formas do ser, para expressá-las na linguagem pura da metáfora". Dono de memória privilegiada, recita poemas inteiros de autores de sua predileção, sem omitir palavras ou pausas rítmicas dos textos poéticos. Nas abas do livro, testemunhos de poetas e críticos literários de expressão nacional são unânimes em destacar o alto nível das ficções poéticas do livro A Infância do Centauro, publicado em 2007 pela Escrituras Editora, de São Paulo.
Divididos em sete partes, os poemas de José Inácio exploram temáticas que vão dos labirintos do cotidiano às perplexidades da metafísica. Em Metamorfose (p. 45), o poeta deseja “Olhar bem dentro do azul / e ver a morte da borboleta / libertar o amarelo”. Em Rastros (p. 131), “O poeta traz os segredos da poeira. / Em sua mão pulsa o nó do espanto: / um sorriso bêbado de eternidade: / um poema”. Em Romaria (p. 118), estruturado em redondilha maior, JIVM rende homenagens a repentistas e trovadores nordestinos, que de alguma forma trazem de volta a imagem sonora dos cancioneiros de uma época perdida na noite dos tempos e cujos acordes ainda ressoam aos nossos ouvidos. “Dentro de mim, nas lonjuras, / bem dentro do meu juízo, / um romeiro caminhando / em busca do que preciso”.
Hélio Pólvora, conhecedor minucioso das técnicas do verso, observa que JIVM, apesar das inquietações que eventualmente comprometem a transparência de certos poemas, “insiste na fidelidade às raízes por via de uma emocionalidade acentuada”. Hildeberto Barbosa Filho, lúcido comentarista do fenômeno poético, é de opinião que a escrita do poeta “não se esgota no mero formalismo, na medida em que o Autor também possui o universo memorial da terra e da origem”. Lêdo Ivo também elogia o poeta alagoano. Manifesta a impressão de que a poesia de José Inácio Vieira de Melo, embora vincada de certa aridez, “esconde e guarda uma chuva secreta”.
De quando em vez fala-se em poeta urbano, em contraposição àquele que celebra os acontecimentos da terra, os chamados poetas telúricos. Tal modo de pensar, salvo melhor juízo, não passa de uma falsa questão. Até porque, do ponto de vista ético, o homem da cidade e o homem do campo são biologicamente da mesma matéria, além de possuírem a mesma estrutura psíquica. Bastaria lembrar o Autor de Guerra e Paz, para quem ser universal é cantar a sua aldeia. E que dizer dos contos imortais de Tchecov, cuja temática põe em relevo os conflitos e angústias dos camponeses russos, esmagados pelas engrenagens burocráticas dos poderosos?
Grande parte dos poemas de JIVM é dedicada às coisas do campo. Aos “vaqueiros de todos os ventos, / montados no Relâmpago e no Trovão”... Em Dança das Redondilhas (p. 35), o poeta nos convida a “cantar um galope / no coração da caatinga, / dizer palavras de luz / nos versos de sete sílabas, / caminhar passo acertado: / cadência de redondilhas”. Na página 108, este minúsculo auto-retrato da subjetividade: “Eu, / que venho de tempestades / anuncio a calmaria. // A violência / que existia em mim / rasguei na bala”.
Não são muitos os poetas que dedicam versos aos animais. Poetas eróticos, desde tempo imemoriais, tangem as cordas de seus alaúdes em louvor dos encantos de suas amadas. Dante coloca Beatriz Portinari nos vértices do paraíso. Camões celebrou as amadas em sonetos imortais. Bocage o fez de modo diverso, em versos impregnados de lubricidade. José Inácio Vieira de Melo escreve epitáfio para uma “égua de olhos azuis”: “Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis. / Não mais invadirei o vento montado no teu galope. // Que fique inscrito na tua lápide / o verso de lágrimas dos meus cavalos” (p. 93). Num poema de reverência à autoridade paterna, o poeta beija-lhe as mãos “como uma árvore / beija suas raízes”.
José Inácio Vieira de Melo, menestrel do país dos nordestinos, cavalga o poema desde A Infância do Centauro, entidade mitológica que, segundo os léxicos, era metade homem e metade cavalo. Sua escrita poética tem o ímpeto das águas represadas nos açudes do Nordeste. Atento aos conflitos da terra e do homem, seus versos desenham a prostituta com a leveza de quem derrama bálsamo numa ferida: “Os anelos / os cachos / que poderiam / ser metáfora / não passam / de labirintos”. Para encerrar essas breves considerações, nada melhor que esta chave de ouro, burilada pelo próprio poeta: “No âmago de tudo o quês sentes... / Mas não adianta me perguntar, / eu também estou procurando”.


Ilustração: Juraci Dórea.

Francisco Carvalho é poeta e ensaísta. Publicou, entre outros, Quadrante Solar (1982) – Prêmio Nestlé de Literatura, Girassóis de Barro (1997) – Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, Memórias do Espantalho (2005) e Corvos de Alumínio (2007).

Resenha publicada no suplemento Correio das Artes, editado por Linaldo Guedes, em João Pessoa, Paraíba, na edição de março de 2008; e na revista O Escritor n°118, da UBE, em abril de 2008, em São Paulo - editada por Izacyl Guimarães Ferreira.

VERÔNICA DE VATE: FLORISVALDO MATTOS

CELEBRAÇÃO POÉTICA
Por Cleberton Santos

Foto: Ricardo Prado
Florisvaldo Mattos (Uruçuca, 8 de abril de 1932) iniciou sua criação poética ainda na adolescência quando publicou no jornal A Voz de Itabuna e no Diário da Tarde de Ilhéus. Depois prosseguiu para Salvador, dando continuidade à sua carreira literária ao publicar, por volta de 1956, seus poemas na revista Ângulos. Mas foi na revista Mapa que o escritor grapiúna consolidou sua presença literária na Bahia da época.
Em 1962, Florisvaldo Mattos participou de uma importante antologia da novíssima poesia brasileira organizada pelo poeta e crítico Walmir Ayala, na qual afirmou o antologista: ...alto e maduro discurso de justiça. Generoso como a própria Bahia, seu verso denso trepida de sensuais proparoxítonas. Canto vestido de couro, com um laivo de ódio e um gesto de revanche. Resistência poética da melhor qualidade em nossa novíssima poesia.[i]
Com o lançamento do seu primeiro livro Reverdor (1965), volume de poemas de temática agrária, recebeu as palavras incentivadoras do romancista baiano Jorge Amado, num artigo publicado no Suplemento Dominical do Diário de Notícias (31 e 01 de novembro de 1965, Ano XC, Nº 19668, Salvador / BA, p. 02.), do qual transcrevemos um pequeno trecho: Tão trabalhado e obtido em sua busca, tão realizado em sua forma de evidentes exigências e duro labor, denso de um conteúdo vegetal e agrário, sendo livro de nosso tempo e nossa realidade, “Reverdor” situa de imediato e de vez, o poeta entre os primeiros de sua geração e não deixa momento de dúvida sobre sua vocação e sua permanência nos quadros mais altos de nossa poesia.
No ano de 1975, publicou seu segundo livro Fábula civil, reunião de poemas de tonalidade urbana, mas ainda com a presença do mundo campesino. Em 1995, tomou posse na Academia de Letras da Bahia, na cadeira nº 31, e na oportunidade foi saudado pelo poeta e acadêmico João Carlos Teixeira Gomes que pronunciou as seguintes palavras: A Academia de Letras da Bahia acolhe hoje com satisfação e honra um dos mais representativos intelectuais da sua geração, Florisvaldo Mattos. Iluminado pelo dom da palavra escrita, tem sabido usá-la para destacar-se como jornalista e como poeta, em ambas essas atividades imprimindo marcas de um vigoroso talento.[ii]
Publicou, através do Prêmio Copene de Cultura e Arte, o livro A caligrafia do soluço & poesia anterior (1996), com ilustrações do artista plástico Calazans Neto, editado pela Fundação Casa de Jorge Amado. Neste livro o poeta reuniu poemas dos seus dois livros anteriores e aproveitou para publicar os seus primeiros textos, escritos entre 1953-1954, com o subtítulo de Noticiário da Aurora. Nas orelhas desse livro, escreveu João Carlos Teixeira Gomes: Alta poesia, em suma, de requintada fatura, de um dos poetas mais importantes da sua geração, na Bahia ou no Brasil. Pela riqueza de certos processos metafóricos um construtor de verdadeiros prodígios verbais.[iii]
Em 2000, publicou Mares anoitecidos, no qual o autor conjetura, em clave épico-lírica, sucessos e desventuras da presença dos holandeses na Bahia. Sobre esta obra, o acadêmico Ruy Espinheira Filho afirmou: Nestas novas composições, como em outros momentos de sua aventura literária, Florisvaldo Mattos exerce com mestria sua épica e sua lírica (as quais, repito, às vezes se dão em amálgama), cantando lugares e gentes da sua vivência, da sua afetividade, e, poderosamente, celebrando armas e barões assinalados, cujo sangue e sonhos coloriram um terra e uma era – e colorem hoje, como se no calor da hora, uma grande e luminosa literatura.[iv]
Em 2001, publicou Galope amarelo e outros poemas, uma seleção feita por Ruy Espinheira Filho e lançada no projeto das comemorações ao Centenário de Nascimento do Poeta Sosígenes Costa. Em resenha de jornal, manifestou-se o escritor e crítico paranaense Miguel Sanches Neto: Publicado mais na Bahia, e só isso justifica não ter um nome nacional, Florisvaldo Mattos (1932) é um poeta requintado, com um verbo a um só tempo claro e preciso, aliando assim dois grandes modelos locais, a transparência do cordel e o domínio barroco da linguagem.[v]
Em pleno vigor poético e dono de uma obra em constante burilação, presente em várias antologias brasileiras e estrangeiras, este poeta baiano representa uma das mais importantes vozes da poesia brasileira contemporânea. E ao leitor cabe partir em busca do tesouro que é a palavra lírica de Florisvaldo Mattos:


ALERTA


A nenhuma parte
levará o caminho.

Nem ouves o canto das nuvens
nem a pedra tombada a teus pés.

Defines-te em teu enigma.
Em busca de outro limite
vagueias na penumbra
das inconclusas auroras.


FLORISVALDO MATTOS


Cleberton Santos é poeta, crítico literário, mestre em Literatura e Diversidade Cultural e professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

[i] AYALA, Walmir (org.). Antologia da novíssima poesia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Cadernos Brasileiros, 1962.
[ii] GOMES, João Carlos Teixeira. Saudação a Florisvaldo Mattos. Revista da Academia de Letras da Bahia. Salvador, março, 1993, nº 43.
[iii] GOMES, João Carlos Teixeira. Um construtor de prodígios. In: MATTOS, Florisvaldo. A caligrafia do soluço & poesia anterior. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 1996.
[iv] ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Emoção e alumbramentos. In: MATTOS, Florisvaldo. Mares anoitecidos. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000.
[v] SANCHES NETO, Miguel. Um mestre à margem. A Tarde, A Tarde Cultural, Salvador, 29 jun. 2002.

terça-feira, 15 de abril de 2008

FLORISVALDO MATTOS - A CABRA

Ilustração: Calasans Neto


A CABRA


Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim — luz e presença
de reinos pastoris antes servidos —,

teu peito residência da ternura
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.


FLORISVALDO MATTOS

JIVM - GÊNESE

G Ê N E S E


Ilustrações: Juraci Dórea

Sabe, moça da encruzilhada,
quando te encontrei foi um assombro.
Tu trazias estampada no semblante
a indagação que me acompanha.
O mais espantoso é que também
eras a resposta que sempre busquei.

Não aquela resposta exata, matemática.
A verdade que tua chegada me trouxe
foi a das abelhas zunindo no romper da aurora
em busca do mel das flores das algarobeiras,
foi a dos cavalos galopando na boca da noite
sonhando com touceiras de capim e éguas luzidias.

Ah, moça, tu estás no centro da Rosa dos Ventos,
pra onde deres o passo é caminho o que há.
A gente olha pra cima e não vê limite:
é tudo um azulão que não acaba mais.
Mas basta dá meio-dia, o limite aparece,
e não é longe não: bem na boca do estômago.

Sabe, vou te dar um chapéu do tamanho do céu,
que é pra te proteger dos devaneios solares
e pra que todos te percebam e apontem para ti:
“olha lá a moça que sombreia o mundo”.
E todos vão te olhar e todos vão te aplaudir
e o arco-íris vai ficar preto-e-branco de inveja.

Aí, um passarinho, desses bem miudinhos
que trazem uma sanfona de cento e vinte no peito,
vai aparecer e assobiar uma cantiga doce:
e a gente, espiando bem dentro dos olhos,
começa a sentir um monte de estrelas pipocar.
É isso, quando te encontrei, nasci.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

segunda-feira, 7 de abril de 2008

A INFÂNCIA DO CENTAURO EM IRAMAIA

No próximo sábado, dia 12 de abril, às 20 horas, estarei lançando meu livro A infância do Centauro na Câmara de Vereadores de Iramaia, cidade que fica incrustada no âmago da Bahia – final da caatinga e início da chapada. O evento está sendo organizado pelo vereador Tunga e pelo professor Gilberto. Vai contar com a apresentação do texto A poesia de José Inácio Vieira de Melo, da professora Edna Leal, secretária de educação e cultura do município de Maracás, e com um recital de poemas de A infância do Centauro, apresentado pelo Grupo Concriz. Fica lançado aqui o convite a todos os amigos e apreciadores da minha poesia.
JIVM

O GALOPE POÉTICO DO CENTAURO

Luciano José


Jornalista e escritor, nascido em Olho d'Água do Pai Mané, povoado de Dois Riachos, Alagoas, em 1968, está radicado na Bahia desde 1988. Publicou seu primeiro livro de poesia em 2000, com o título Códigos do Silêncio, Decifração de Abismos (2002) e A Terceira Romaria (2005). Seu livro mais recente, A infância do Centauro (2007), tive oportunidade de conhecer quando esteve em Palmeira dos Índios na intenção de divulgá-lo.
O trabalho literário de José Inácio expressa alguns elementos significativos como se fora fios de tons diversos que, ao se entrecruzarem, vão formando o tecido consistente e primoroso da sua produção poética. O modo de compor o poema se mistura à percepção da realidade pela via dos mitos e aos componentes pertencentes à tradição oriental (oásis, faraó, harém, hieróglifo). No entanto, como a fala da mitologia costuma estar em sintonia com a religião, percebemos a expressão de sentimentos e crenças na mensagem de Cristo e no legado de seu ensinamento. Além disso, é conveniente lembrar que sua poesia, nostalgicamente, faz referências as suas vivências, personagens com quem se relacionou (ou ainda se relaciona) e coisas próprias do universo da vida do homem sertanejo, na constatação de elementos como a caatinga, o vaqueiro, a fogueira, o mandacaru, o chão rachado, os açudes. No entender do poeta, todas essas coisas são "totens do Sertão", mas quando se referem aos caramujos (os bois de sua boiada), com seus respectivos nomes, passam a ser "totens da infância".
Também se destaca na sua produção o momento em que a poesia pensa em si mesma, numa reflexão metalingüística (Nascimento do poema), assim como o que ela representa para o poeta (Dois momentos e Rastros). No templo do poeta que José Inácio é, não podemos deixar de destacar as presenças marcantes de Mário Quintana, Cecília Meireles e Jorge de Lima. Isso sem contar a sacada formidável com a figura de João Cabral ao defini-lo como "poeta doido de pedra".
Outro elemento importante na sua obra é a louvação da figura feminina como deusa que encanta, provocando delírios e êxtases, revelados no poema Imagem. Contudo, a metáfora entra em cena quando o termo "égua" tenta traduzir não só a sensualidade da mulher, mas a sua luta pela conquista da emancipação, comparada à "égua baia que não conhece cabresto".
Portanto, a poesia de José Inácio revela as contradições contidas no ser quando pretende romper às amarras do destino (Ausência e Glória), quer se afirmar em toda sua plenitude (Encruzilhada) e, diante da indefinição do lugar nenhum, almeja chegar em algum lugar (Sentido). Para finalizar, propomos uma questão: o trabalho poético de Inácio tem possibilidade de perdurar? Sim, o que possui qualidade, consistência e expressão clara de vida tende a ser duradouro. Neste sentido, sua capacidade criadora atinge o auge com A infância do Centauro, na medida em que nos proporciona vibrações variadas e momentos de uma beleza cativante.


Ilustração: Juraci Dórea

Luciano José é poeta e professor de Filosofia na Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL).

Resenha publicada no jornal Tribuna do Sertão, no dia 12 de novembro de 2007, em Palmeira dos índios, Alagoas.

VERÔNICA DE VATE: ELIZEU MOREIRA PARANAGUÁ

ELIZEU MOREIRA PARANAGUÁ nasceu na cidade de Castro Alves, em 1963. Reside em Salvador desde 1981. Publicou os livros Poema Terra Castro Alves (1992), onde são cantados as ruas e becos de sua cidade, e O Fogo do Invisível (2006), trabalho que apresenta a profundidade da sua poética existencialista. Participou das antologias Sete Cantares de Amigos (2003) e Concerto Lírico a Quinze Vozes (2004). Editou, ao lado de José Inácio Vieira de Melo, a revista CEPA/Poesia, no biênio 1999/2000. Idealizou e coordenou os projetos Imagem do Verso (2000/2001) e Expressão da Poesia (2003/2006), em Salvador. Seus poemas têm sido publicados em importantes revistas literárias, como a Iararana, e suplementos culturais, como o A Tarde Cultural e o Panorama da Plavra. Ruy Espinheira Filho afirma em Poema Terra Castro Alves que "Lar é de onde se vem - diz o poeta T. S. Eliot. O que se vê, aqui, neste Poema Terra Castro Alves de Elizeu Moreira, é o canto do que partiu, do que se aportou do lar – e agora, através dos seus versos, realiza a viagem inversa, retornando ao mundo de onde veio. Elizeu Moreira Paranaguá canta a sua terra, mas canta sobretudo sua própria emoção ao evocar uma vida. " Sobre O Fogo do Invisível o crítico e poeta Antonio Carlos Secchin comentou: “Luz, fogo, brasa e outros signos ígneos pontuam a poesia de Elizeu Moreira Paranaguá, que, num mundo vazio de deuses, delega à fúria do verbo poético a missão de substituí-los.” Elizeu Moreira Paranaguá vais se apresentar no projeto Uma Prosa Sobre Versos, na próxima sexta-feira, dia 11 de abril de 2008, na cidade de Maracás, na Bahia. (Fotografia do poeta: Ricardo Prado).


O SOM E O SENTIDO


O som que se ouve
vem da lagoa
que abriga os seres.

O som que se espalha
invade a casa azul
cujo telhado é forrado
de estrelas e de palhas.

Ouço vozes que aprofundam
o sentido
entre os pássaros
e os grilos.

Ouço vozes que se harmonizam
entre o ruído
do Universo
e a Pedra Só.


ELIZEU MOREIRA PARANAGUÁ

PROJETO UMA PROSA SOBRE VERSOS


A cidade de Maracás, também conhecida como Cidade das Flores, tem dado uma atenção especial para a educação e cultura, seja através da realização do projeto Pétalas, no qual se apresentam artistas de todas as vertentes, tanto da zona urbana como da zona rural, ou a criação uma frondosa trilha na nascente do rio Jiquiriçá. Essas iniciativas aliadas a uma orientação pedagógica, além de despertar a consciência do coletivo para a preservação da natureza e sua fruição, têm também despertado outros interesses, como é o caso da leitura, sobretudo de autores baianos contemporâneos, tanto de prosa como de poesia.
E seguindo essas diretrizes, o professor e poeta Edmar Vieira, diretor de cultura do município, idealizou o Projeto Uma Prosa Sobre Versos, realizado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura junto à Prefeitura Municipal de Maracás. O projeto apresenta ao público de Maracás nomes representativos da poesia contemporânea da Bahia. A estréia de Uma Prosa Sobre Versos foi no dia 14 de março, quando Auditório Municipal de Maracás recebeu mais de 600 pessoas que assistiram atentamente a apresentação do jovem e premiado poeta Cleberton Santos. A próxima apresentação vai acontecer no dia 11 de abril, com o poeta Elizeu Moreira Paranaguá.
Elizeu Moreira Paranaguá nasceu na cidade de Castro Alves, em 1963. Reside em Salvador desde 1981. Publicou os livros Poema Terra Castro Alves(1992) e O Fogo do Invisível (2006). Participou das antologias Sete Cantares de Amigos (2003) e Concerto Lírico a Quinze Vozes (2004). Idealizou e coordenou os projetos Imagem do Verso (2000/2001) e Expressão da Poesia (2003/2006), em Salvador.
O projeto vai até o mês de setembro, e além de Cleberton Santos e Elizeu Moreira Paranaguá, os próximos poetas a se apresentarem serão Lita Passos, Antonio Carlos de Oliveira Barreto, Roberval Pereyr, Rita Santana e José Inácio Vieira de Melo.
Cada apresentação conta com a participação de músicos da cidade de Maracás e com um recital de poemas do autor de cada mês, apresentado pelo Grupo Concriz, que conta com a direção do poeta e professor Vitor Nascimento Sá. O Grupo Concriz tem conquistado um grande respaldo da sociedade maracaense, pelo rigor técnico e pelo encanto dos seus recitais, nos quais a palavra poética é transmitida para a platéia com toda a sua força de expressão e o respeito que merece.
O Projeto Uma Prosa Sobre Versos acontece no Auditório Municipal de Maracás, começando sempre às 19h 30min, com entrada franca, sempre em uma sexta-feira de cada mês.

Programação:

14/03/2008 – CLEBERTON SANTOS
11/04/2008 – ELIZEU MOREIRA PARANAGUÁ
09/05/2008 – LITA PASSOS
06/06/2008 – ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA BARRETO
11/07/2008 – ROBERVAL PEREYR
08/08/2008 – RITA SANTANA
05/09/2008 – JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Mais informações:
Edmar Vieira – (73) 3533 2080 – edmarvieira1@gmail.com

JIVM - ADORNO

Ilustração: Ramiro Bernabó

A D O R N O
Para Jorge de Lima

A tua cabeça ainda vai ser um enfeite lá em casa.
A tua cabeça ainda vai ser o jarro da minha mesa;
e a encherei de lápis e canetas que escreverão flores:
cabelos rosa em tua cabeça decepada.
E as oito cadeiras de pinho – sóbrias, sérias –
sorrirão de ti; sorrirão tanto até que as lágrimas
brotem aos borbotões e inundem toda a casa.
E aí o peixe que existe em tua cabeça
vai sair pelo ermo do mar procurando, procurando,
pois os peixes também estão perdidos.

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

terça-feira, 1 de abril de 2008

A POÉTICA DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Antonia Torreão Herrera


A Infância do Centauro é o quarto livro de poesias de José Inácio Vieira de Melo* que constrói seu lugar na lírica de língua portuguesa. José Inácio é um poeta que oferece ao público os momentos poéticos nas diversas fragmentações do eu lírico e nas imagens do mundo construídas no poema. Numa dicção própria, vem se afirmando mais uma voz lírica da contemporaneidade. Na lírica moderna aparentemente não há modelo a seguir, o que leva a se buscar referenciais nas poéticas consagradas para situar o novo poeta ou para avançar na realização artística. Todavia, há pontos de convergências que marcam as conquistas e as estratégias da lírica no mundo moderno, desde Baudelaire, que funcionam como diretrizes para a liberdade criadora da poesia. O que à primeira vista aparece como facilidade não se dá, contudo, como fácil, pois que, para se conseguir um ritmo próprio, no meio das dissonâncias e versos livres já tão explorados, o poeta tem que apurar o ouvido e caçar as palavras, pois há sempre um outro ouvido a perceber o eco de um ou de outro poeta. E é natural que assim seja. Não procuro, portanto, outras vozes, mas o timbre em que eu possa identificar a poética de José Inácio Vieira de Melo.
Percorrendo seus poemas, em seus livros éditos, até esses de A Infância do Centauro, recém-editado, posso ler a trajetória dos registros de um eu lírico que se produz nas escolhas lingüísticas, nas construções de imagens, nos motivos recorrentes, no modo como se apropria dos temas de sempre da lírica: o homem, a terra, a natureza, o outro, a vida e a morte.
O poeta lírico é aquele que canta – e digo canta porque esse lugar comum da fala é muito significativo de como as palavras soam dentro do poeta – canta um tempo, um espaço ou a convergência dessas duas dimensões: o momento, seja pessoal ou não, vivido ou imaginado, inventado, despertado por uma leitura, por uma contemplação, por uma dor ou por uma alegria, enfim pela sua interlocução com a vida, no modo como ele a sente. É também lugar comum falar do sentimento poético, do modo de ver, sentir, perceber esses momentos.
O halo poético está nas coisas, no mundo, nos momentos ou são acrescidos a eles pela forma poética construída que permite ao leitor perceber aquilo que, sem esse intermédio, não era visível? A poesia está nas coisas e o poeta a traduz em imagens poéticas, está na percepção do poeta que percebe o dado comum como extraordinário e lhe confere poeticidade, ao transformá-lo em signos artísticos, ou está no leitor que lê na fatura artística, mediante conexões e percepções de sentidos, a poesia das imagens? E ainda, quando se diz momento poético, é o momento vivido no ato, no fato ou o vivido no processo, no ato de criar?
O leitor entra no reino poético mediante a leitura de poemas que fazem vibrar em seu corpo o momento poético apreendido. O poeta vive no universo da poesia ou nele penetra no ato de construção?

O que faz José Inácio em sua poesia, o que constitui sua poética e como ele vive sua poesia? Primeiramente, o que já foi dito. Sua poesia está umbilicalmente ligada ao povoado de seu nascimento: Olho d’Água do Pai Mané. Seu universo poético torna presente as algarobeiras, os mandacarus, o vaqueiro, o gado, o cavalo, os elementos telúricos de sua vivência, do homem e sua terra, o campo, a tradição popular. Depois a necessidade intrínseca do indivíduo José Inácio de fazer poesia para se situar no mundo, para dar sentido à sua vida. O filão existencial, a angústia do homem urbano, sem fé, sem finalidade, arranhando as palavras em busca de si: “Vivo a buscar o signo que me presentifique, / que, uma vez enunciado, seja por si. / Estou exausto de ser uma representação” (Encruzilhada). Nesse entrecruzamento, tentarei delinear os dois filões subterrâneos que alimentam suas construções poéticas e dão o tom de sua dicção: o da materialidade sensual, carnal e da transcendência mística, numa confluência de valores que não se conflituam, mas que se unem harmoniosamente em imagens. Exemplo dessa convergência é: “Tem um bicho dentro de mim que quer / pular para fora de tudo e ser aurora”. (Encruzilhada)
Assim, poesia para José Inácio é como o ar que ele respira. Seu olhar é um olhar interessado. Do que se vive, pode-se recortar a poesia. Trata-se também de um homem de livros, sempre pronto a ler, ouvir e dizer os versos do outro. É um ser empenhado nos trânsitos da lírica, em sua veiculação. O poeta põe sua poesia em marcha e torna viável o seu circuito. Do campo para a cidade, da cidade para o campo: os dois pólos de seu poetar.
Poesia é feita com palavras e nos situamos no mundo por intermédio dessa simbolização ímpar que nos constitui como ser humano: a linguagem, nossa ponte com o fora, com o real, com a natureza. As palavras, todavia, arrastam com ela uma história, uma cultura, configurações e condicionamentos, falam em nós mais do que as falamos. A utopia poética é nos apoderarmos das palavras para representar os momentos e consagrá-los em formas que os perenize. E é no paradoxo de torná-los impessoais que o poeta os faz tão intensamente sentidos nas imagens que os evocam.
Duas palavras retiradas da poesia de José Inácio podem ser suficientes para definir o que articulei acima. Estou focalizando o livro A infância do Centauro, no entanto elas já percorrem os livros anteriores. A primeira é centauro e as imagens decorrentes dessa palavra-símbolo e a segunda escarlate, adjetivo que se torna substantivo, no sentido de substancial quando cria em torno dela uma esfera reverberativa de significações relacionadas à primeira. Os fragmentos do mundo são organizados liricamente em torno das reverberações dessas duas palavras. O centauro escarlate remete de imediato para o sujeito lírico que simboliza com essa imagem seu estatuto poético. De imagem-símbolo ela passa a objeto emblemático, que circunscreve a natureza do eu lírico que se delineia ao longo da produção poética de José Inácio. Há todavia seu contraponto que se manifesta nas inflexões contemplativas e transcendentais. O sujeito lírico representado pelo centauro escarlate canta euforicamente a vida e suas manifestações de modo laudatório, num ritmo de descoberta dos mistérios das coisas nas palavras e vice versa das palavras nas coisas. É o movimento poético de recuperar a corporalidade da linguagem, criando palavra para um objeto inexistente.

O centauro como emblemático do sujeito poético reúne os traços míticos, clássico, anacrônico, que estabelece liame entre o sujeito biográfico proveniente do sertão de Alagoas com o sujeito construído pelo leitor-escritor que se institui como poeta e como tal com referências mitológicas, literárias, citadinas. A identificação com o cavalo, suporte de uma caracterização local, forte elemento temático da poesia de José Inácio, dá concretude espacial e temporal ao universo poético construído pelo poeta e remete para as origens que dão consistência à sua experiência de vida, seus recortes, suas vivências, sua infância. Esse eu poético será, pois, atravessado por imagens de cavalos e éguas, vacas e pastos, os seres moventes que caracterizam o espaço-tempo de sua infância, de seu presente. A simbiose que faz com o ser mítico do poeta e com o ser humano que nele se incorpora dinamiza a palavra-imagem centauro para um espaço-tempo atual, resgatando-o da referencialidade apenas literária, mitológica, aprisionada a uma cultura clássica e ao reino da fantasia. Humanizando o centauro na metade homem que lhe cabe como correlato do poeta e tornando viável sua metade cavalo, pondo-o em contato com cavalos e éguas de uma referencialidade concreta, conquanto que poética, mas sempre delineada numa zona de experiência vivida, o centauro ganha uma dimensão particular, pessoal e dá feição singularizada ao poeta.
O título do poema que abre o livro, Centauro Escarlate, define, pois, de imediato um perfil desse sujeito poético que quer “galopar, galopar, galopar”. Diz, mediante a metáfora do centauro do ser incerto do poeta: humano, de instinto animal, metafísico, mítico, homem desejante e criança fantasiosa. Escarlate remete à sinonímia vermelho que por associação sugere fogo, presente na palavra ígneo e conseqüentemente no nome Inácio. O sujeito biográfico se reescreve no sujeito poético, fazendo convergirem nessas duas palavras os motivos recorrentes de sua poética. A idéia de estrela vinculada à constelação austral, cuja estrela mais brilhante é Alfa do Centauro, consolida a imagem emblemática do sujeito poético na figura do centauro. Do mais concreto ao mais abstrato, do físico ao metafísico, o sujeito lírico percorre, ao longo de seus poemas, a zona das sensações, do erotismo, dos desejos de um ser inquieto por viver com o ímpeto e o vigor de um cavalo, arrefecido pelo verniz literário que o transforma em centauro, cavalo humanizado, domado, a refrear seus ímpetos e sensualidade e a viagem pelo espaço-tempo do universo, da existência, na imaginação presente na infância e mantida no homem pela mágica da poesia. Assim como esta expresso no poema Oração de um grávido do livro Decifração de Abismos: “Que o meu filho / quando olhar para uma / estrela / não veja apenas uma / estrela”.
O centauro que equivale a cavalo e a montaria que o conduz em suas buscas e em seu ato de decifrar o mundo faz parte também do enigma que é o próprio poeta, responde por sua materialidade e transcendência: “E quando for noite alta / e os acordes de uma aquarela / luzirem dentro de teu espírito, / deixa o centauro que habita em ti / galopar, galopar, galopar / e transcender a ti e as tuas explicações.” (Centauro Escarlate). A imagem da estrela está sugerida nos verbos luzir e transcender e no substantivo noite. O centauro que habita equivale à imagem do verso: “dos cavalos que trago dentro de mim.” do poema dedicado a uma égua que morreu, Epitáfio para Guinevere, migrado do livro Decifração de Abismos. No poema que dá nome ao livro: A infância do Centauro, o poeta se auto-define, definindo assim a sua poética: “Sou um centauro escarlate / e galopar na infância / é a minha metafísica.”, reunindo nessa estrofe os motivos de seu fazer poético: infância relacionada à retorno às origens e a valores ancestrais arraigados no campo, nos códigos do sertão com signos materiais da lide dos homem com a terra e os animais, e centauro, como já visto, liame para os dois, contendo em si o imaginário infantil e a força erótica, no sentido de força vital do homem-cavalo.

O poema Harém representa uma formatação mais significativa das imagens que identificam esse sujeito lírico às forças provenientes do lado animal do centauro: “Vinde, minhas éguas, vosso faraó vos espera! / Puxem meu carro de fogo pelos céus dos êxtases, / harmonizem vossas forças e me conduzam, / em galope soberano, pelos reinos dos encantos. Vinde, minhas éguas, luzindo na imensidão! / No ritmo de vossas ancas é que se inaugura / a saga do meu império e os nomes do meu nome: / Cavaleiro de Fogo, Centauro Escarlate.” Atente-se para a mistura de elementos sensuais, carnais, e espirituais, transcendentes, tais como harém, éguas, meu carro de fogo, galope, ancas com céus dos êxtases, reinos dos encantos, luzindo. O poema finaliza atribuindo os nomes que definem o sujeito poético, nomes-títulos de poemas, sujeito assim configurado também como ser de palavras. Em Ladrona de cavalo surge a mesma temática dos desejos remetidos para a esfera do animal, associado, a desejo sensual e à perda do objeto de desejo. Em Cavaleiro de Fogo, poema trazido de A Terceira Romaria, as imagens do eu lírico são construídas em torno do elemento fogo, semanticamente presente em: escarlate, filho do sol, verbo incandescente, fogueira encarnada, rubi no coração, labaredas do sertão, ígneo, Inácio, motivando as metáforas disseminadas em seus poemas. A idéia de boneco de barro que remete à Origem, “cozido nas labaredas do sertão” contrapõe a materialidade à espiritualidade, no contraponto: “recebo o batismo da estrela rainha”. Ao final do poema, ‘um pássaro de prata, / prenhe de encantos e de signos,” vem saudar o auto-nomeado; “cavaleiro, corcel e dragão.” Esse o ser mitológico, múltiplo que recolhe signos para encontrar sua identidade. No poema Encruzilhada, há um verso significativo dentro dessa esfera semântica: “Ah se eu fosse o sol não arderia tanto!”
É interessante notar em Cavaleiro de Fogo e em outros poemas de José Inácio Vieira de Melo que há sempre um elemento arrefecedor que freia os impulsos instintivos desse sujeito cavalo-fogo-dragão-macho, freio simbolizado aqui pela água, pelo pássaro prateado, uma cor fria, e pela estrela. À ação de cavalgar, levado pelo vento, justapõe-se à contemplação das estrelas. Não há em sua poesia um elemento transgressor ou uma revolta da criatura contra o criador. Trata-se de uma poesia solar, não disfórica que ganha dimensão de consagração e conclama à vida, à força da vida. O poema Marcação delineia, pois, a esfera desse sujeito que se insere de modo relativamente harmonioso no universo, tocado, certamente pela angústia de dizer ante a insuficiência da linguagem e o sentimento do mundo: “Um matuto sem eira nem beira, / labutando com palavras, / vaquejando boiadas de signos / por caatingas labirínticas / numa peleja sem fim. Invoca o gado invisível / numa toada aflita, / e grafa com pena e tinta / aquilo que a poesia marca, / a ferro e fogo, em sua alma.”. A linguagem do poema organiza os elementos sonoros, rítmicos e imagéticos circunscrevendo a figura do poeta e do seu fazer poético.
Um outro motivo primacial associado à esfera semântica da infância são os poemas dedicados aos filhos, de onde emerge a figura do pai, amoroso, e que louva a vida que viceja em seus descendentes e os conduz ao reino da poesia, da imaginação. Pai que sustenta, com responsabilidade, os valores de sentimento paterno e filial oriundos do sertão de Alagoas. Nessa perspectiva, a poesia de José Inácio é uma poesia de resgate desse universo vivenciado na infância e consagrado na lírica.

O poeta vive, pois, duplamente a poesia: vivencia no seu modo de sentir e perceber a vida e na sua lide com as palavras, no ato de fazer, no qual inventa, falseia, aproxima coisas e momentos díspares para, num esforço de artista, obter o efeito que nos encanta. O efeito, o artefato, a fatura artística é produto do trabalho e da inspiração, das palavras que cada um tem como seu tesouro pessoal, lidas, ouvidas, e que estabeleceram consigo próprio um liame, uma ressonância e que o definem, o constituem: como homem, no território do falante ou do escrevente, do ser poético no território da poesia, da escrita. E com elas um ritmo, um tom, um som, a presença afetiva do eu lírico. No conjunto de poemas de A infância do Centauro há uma busca incessante de si, de se reconhecer como enigma, de se estabelecer como poeta e fundamentalmente de construir seu imaginário poético, ligando o céu e a terra, o lá e o cá, o sertão e a cidade, a infância e a idade adulta nos signos poéticos, ao modo como está dito, simplesmente, em Cerca de pedra, presente nesse novo livro, todavia poema do livro A Terceira Romaria: “Aqui, na Cerca de Pedra, / nesta noite caatingueira, / estou em silêncio, ouvindo / o silêncio das estrelas.”
Quero concluir este breve ensaio, retomando o aspecto solar da poesia de José Inácio, citando um excelente poema-homenagem que sendo um epitáfio traz, todavia, a cor da vida, a cor local do sertão, a vitalidade e o movimento do seu duplo, o vaqueiro: “Os vaqueiros de todos os tempos / te recebem e te consagram / do outro lado do Grande Sertão. Os vaqueiros de todos os ventos, / montados no Relâmpago e no Trovão, / marcam tua saga no couro do Tempo. E a chuva também quer falar de ti / e abóia teu nome nas telhas da noite / e inscreve tua alegria na paisagem.” (Epitáfio para um vaqueiro).
A interlocução com o Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa abre uma clareira no poema que expande os signos na vastidão do sertão. A imagem couro do tempo é de um achado primoroso porque consegue realizar o princípio mesmo da linguagem do poema em seu arranjo lírico, poético, operando a superposição da seleção na combinação, nas duas vertentes estruturantes da língua, a similaridade e a contigüidade, conforme já nos ensinou Jakobson. Trata-se do discurso alógico e inventivo da poesia que aponta para uma lógica própria na dimensão paradoxal das imagens. O tempo, no qual se registra a saga do vaqueiro, ganha na horizontalidade sintática um elemento de natureza similar ao cotidiano do vaqueiro, couro, que confere intimidade e teto, materialidade, a um elemento abstrato e absoluto perante a contingencialidade humana, o tempo.
O poeta, ele mesmo, é primeiro que tudo um leitor, um bom leitor, que pode ler a poesia que está nos poemas ou fora deles e dar forma à sua leitura. Esse dar forma significa também nomear o momento, o sentimento, o observado, recorrendo à esfera do imagético, à riqueza inusitada das metáforas, aparentemente desorganizando a estrutura da língua para reorganizá-la em uma estrutura mais coesa, que comunique o mais que se lhe oferece poeticamente. Desse modo, o poema é um suplemento que se oferece ao real ao representá-lo e também um suplemento de nomeação que se oferta à língua. Ambos um acréscimo, um mais que dignifica a busca do homem na decifração dos signos da vida, da linguagem, do mundo e de si. A infância do Centauro é, pois, um mais que se acresce à nossa lírica, nos possibilitando ler os signos do sertão e do ser poético que nele se constrói.


* Os livros anteriores de José Inácio Vieira de Melo são: Códigos do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e A terceira Romaria (2005).

Ilustrações: Juraci Dórea.

Antonia Torreão Herrera é Professora de Teoria da Literatura, Criação Literária e Literatura Dramática do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP).

Ensaio publicado na revista Literatura, editada por Nilto Maciel, no Ceará, na edição Nº34, em fevereiro de 2008.

VERÔNICA DE VATE: SALGADO MARANHÃO

SALGADO MARANHÃO (José Salgado Santos) nasceu em Caxias, no Maranhão. Ainda adolescente, mudou-se com os irmãos e a mãe para Teresina. Escreveu artigos para um jornal local e conheceu Torquato Neto, que o incentivou a ir para o Rio de Janeiro, o que fez no ano de 1972. Estudou Comunicação na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Terapeuta corporal, foi professor de tai chi chuan e mestre em shiatsu. Inicialmente, teve seu nome vinculado em publicações como "Ebulição da escrivatura -Treze poetas impossíveis" (Ed. Civilização Brasileira, 1978, RJ), coletânea que reuniu diversos poetas, como Sergio Natureza (assinando Sérgio Varela), Antônio Carlos Miguel (sob o pseudônimo de Antônio Caos), Éle Semog, Mário Atayde, Tetê Catalão, entre outros. Publicou poemas e artigos na revista "Encontro com a Civilização Brasileira" (1978). Nos anos seguintes, publicou: "Aboio" (cordel/ Ed. Corisco -Teresina - 1984), "Punhos da serpente" (poesia/ Ed. Achiamé, RJ, 1989), "Palávora" (poesia - Ed. Sette Letras, RJ, 1995), "O beijo da fera" (poesia - Ed. Sette Letras, RJ, 1996) e "Mural de ventos" (poesia - Ed. José Olympio, RJ, 1998). Em 1998, ganhou o prêmio "Ribeiro Couto", da União Brasileira dos Escritores (UBE), com o livro "O beijo da fera". No ano seguinte, com o livro "Mural de ventos", foi o vencedor do "Prêmio Jabuti", da Câmara Brasileira do Livro, dividido com Haroldo de Campos e Gerardo Mello Mourão. Em 2002, publicou "Sol sangüíneo". Sobre este livro, declarou Antonio Carlos Secchim "Numa dicção arraigadamente pessoal, Salgado Maranhão, em Sol Sangüíneo, atinge o (até agora) ponto máximo de sua obra, num conjunto coeso de poemas". É também letrista de música popular brasileira, tendo parcerias e gravações com Vital Farias, Ivan Lins, Paulinho da Viola, Elba Ramalho, Zizi Possi e Ney Matogrosso, entre outros.


ATEMPORAL



no fim da linha
o que sobra é a poesia:
construção sobre ruínas
plasmada em palavras
e silêncios.

quem saberá os limites
da beleza e do desespero?

a vida em sua face oculta
sobrevive de engordar serpentes.

o amor em sua loja de ourives
(relume)
a lapidar o inatingível.

no avesso do dês/haver
o que resta
é o infinito não-ser
em seu azul atemporal.


SALGADO MARANHÃO

VERÔNICA DE VATE: TANUSSI CARDOSO

TANUSSI CARDOSO é carioca. Formado em Jornalismo, Direito e licenciado em Inglês. Poeta, contista, crítico literário e letrista, seu nome é verbete da “Enciclopédia de Literatura Brasileira” (Fundação Biblioteca Nacional) e do “Dicionário Cravo Alvim da Música Popular Brasileira”.É Presidente do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro (SEERJ).Além de publicado em dezenas de Antologias, tem 6 livros de poesia editados: “Desintegração”(ed. do Autor, 79/RJ); “Boca Maldita”(ed. Trote, 82/RJ), prefaciado por Leila Miccolis; “Beco com Saídas”(ed. Edicom, 91/SP), prefaciado por Socorro Trindade; “Viagem em Torno de” (Ed. 7Letras, 2000-2ª ed. 2001), pelo qual recebeu o “Prêmio ALAP de Cultura”, além do “Prêmio Capital Nacional 2000”, prefaciado por Salgado Maranhão; “A Medida do Deserto e outros poemas revisitados” (ed. Íbis Libris, 2003/RJ). Em 2006, representou o Brasil no Segundo Festival Latinoamericano de Poesia “Ser al fin uma palabra”, dentro do Dia Mundial da Poesia, na Cidade do México, onde lançou “EXERCÍCIO DO OLHAR” (Ed. Fivestar), prefaciado por Gilberto Mendonça Teles e Luiz Horácio Rodrigues, finalista do Prêmio Nacional de Poesia Cidade de Juiz de Fora 2003 e eleito o Melhor Livro de Poesia de 2006, no Congresso Latino Americano de Literatura, em São Francisco de Itabapoana / RJ.Sua fortuna crítica tem sido avaliada positivamente por grandes críticos, escritores e poetas brasileiros, além de ter poemas publicados na Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, EUA, Itália, México, Portugal e Uruguai, e traduzidos para o francês, espanhol e italiano. Vencedor de importantes prêmios literários, a nível nacional e internacional. Em 2007, foi agraciado com o “Troféu Marcio Carvalho”, no “XI Festival Carioca de Poesia”, organizado pelo Grupo Poesia Simplesmente; e recebeu, em homenagem ao Centenário de Miguel Torga, diploma e Medalha de Honra, outorgados pelo ELOS CLUBE DE LEIRIA, Portugal, e pela ALAP, “pelos relevantes serviços prestados à Língua Portuguesa e à Cultura Lusófana”.É Membro Titular do PEN-CLUBE DO BRASIL, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Associação dos Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro (APPERJ).


O TÊNUE FIO DO TEMPO


o menino, o pai e o violino
unidos, únicos, sozinhos

árvores num jardim de delícias
dedos de brinquedos do destino

delicados, os gestos do pai
ensinam ao menino o violino

cordas num mesmo abraço
sons de um mesmo sino

(só a vida determina
a equação dos caminhos)

não se sabe onde doeu o grito
quando o elo foi perdido

o menino cresceu do pai
entre solidões e atritos

e nunca mais se tocaram
como se toca um violino


TANUSSI CARDOSO

JIVM - NARCISO

N A R C I S O

Já não quero saber do amargor do vinho,
sei que sou um bicho espalhafatoso.
Assim vou, degrau por degrau,
lavando o sal do mar de meus olhos,
tirando os véus, despetalando as máscaras.
Qual lâmina d’água decepará a dúvida?
Qual sonho inscreverá a verdade?

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Fotógrafo: Ricardo Prado