domingo, 31 de janeiro de 2010

JIVM - SETE IRMÃS


Remedios Varo - Seventh sister


SETE IRMÃS
Para Remedios Varo


Essas sete musas mal-assombradas
de cabeleiras ruivas, encardidas,
são santas de bocetas encarnadas,
trazem entre as mãos minhas sete vidas.

As cabeleiras ruivas dessas musas
são trepadeiras místicas em rito,
um anelo claro como um oráculo
a escalar as formas breves do mito.

São sete noites vividas por Borges,
são sete fadas da ilha de Lesbos,
são sete acordes de Joaquin Rodrigo,
são sete facas de Aderaldo, o Cego.

Ah minhas sete irmãs, filhas de Safo,
lamber vossos cus é meu paraíso!
A plenitude de vossas entranhas
é o aconchego destes meus delírios.

Sete musas grávidas, musas graves,
a gravidade não pesa no abrigo.
A minha voz é um caminho cego
como Borges, Aderaldo e Rodrigo.

Ah minhas sete irmãzinhas serenas,
vamos jogar enquanto há tabuleiro,
sete damas-rainhas, sete Helenas,
sou vosso servo, vosso cavaleiro.

Musas oblongas, ventres salientes,
em vossas carnes quentes eu reparo,
de fora a fora, com prazer e encanto,
as sete faces de Remedios Varo.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Poema do livro inédito ROSEIRAL,
a ser publicado pela Escrituras Editora,
com lançamentos marcados para março e abril.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

SANGUE NOVO - PRISCILA FERNANDES



VOO PARA FORA DA ASA DA PALAVRA – Com um discurso que lembra bastante os enunciados da poesia de Manoel de Barros, PRISCILA FERNANDES mistura a argila da criação ao mesmo tempo em que mergulha para um vôo para fora das asas da palavra. E assim vai se inventando, melhor ainda, inventa seus passos. Priscila nasceu em Salvador, em 1986. Filha de pais velejadores passou sua primeira infância vivendo em alto mar. Mesmo em terra firme morou com sua família em diversos e inusitados lugares, como numa fazenda na Amazônia e na Suécia. Já há alguns anos de volta a Salvador, Priscila cursou Letras na UFBA e hoje estuda Psicologia e Psicanálise. Ainda não tem livro publicado, mas já escreveu centenas de poemas e mantém O blog Chafariz (http://pffernandes.blogspot.com/), onde publica seus textos em composição com obras plásticas de seu gosto. Participou da abertura da quarta edição do projeto Poesia na Boca da Noite (2007) e da Praça de Cordel e Poesia na 9ª Bienal do Livro da Bahia (2009).

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Como foi que a poesia entrou na sua vida? O que ela representa para você?

PRISCILA FERNANDES – Antes mesmo de aprender a ler e escrever eu tinha uma brincadeira: abrir os livros da casa e inventar o que lia. Uma vez aconteceu de ser um livro de poemas, tomei aquele susto! Me impressionei com a forma do texto, como contar uma nova história a cada página? E por que, de repente, as linhas eram quebradas por espaços vazios? Acho que foi aí que a poesia me invadiu, bem aí nesta pergunta. De alguma forma, depois de um tempo, entendi que aquilo ali era dizer mais com menos palavras, e ainda com vazios... Hoje o sentido da poesia para mim segue basicamente o mesmo, e a busca pela palavra exata, pela palavra enxuta, pela palavra imagem, a palavra coisa, a “despalavra”, é infinita. A palavra que bem-diz do impossível é o que me relaciona com a poesia.

JIVM – Ser poeta não é nada fácil. Ser mulher e ser poeta é mais difícil ainda? Por que?

PF – Concordo com todos que afirmam que a poesia é inevitável. Ela é algo que acontece, um ato, uma experiência humana. Penso ainda que a palavra é também doença, é o furo de existir, o limite da linguagem. Ser poeta é nomear isso, essa dor, essa incompletude. É fazer delirar o verbo, é exercitar o avesso das coisas, o contrário dos sentidos. Por isso também acho que a poesia está para além de gênero. Ser mulher e ser poeta é a minha condição existencial, não há nenhuma parceria e nenhuma incompatibilidade entre as duas instâncias. A mulher que sou está na minha poesia, ser mulher no mundo é tão difícil quanto ser o que quer que seja. Ser é difícil e é aí que a palavra começa, no “descomeço”.

JIVM – Quais são seus escritores referenciais? O que está lendo no momento?

PF – A primeira poeta da minha vida foi Cecília Meireles, bem antes de compreender o sentido dos seus versos eu já me apaixonei pelo ritmo e sonoridade dos seus poemas. Acho que seu livro Cânticos é um legado para a poesia, não deixo nunca de voltar a ele.
Manuel Bandeira e sua metapoesia me impressionou muito durante um determinado momento, as idéias em seus poemas mudaram definitivamente a minha maneira de encarar a escrita. Ana Cristina César me acompanhou também por um bom tempo, assim como outras poetas da angústia: Emily Dickinson, Silvia Plath, Virginia Woolf, Marguerite Duras.
Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, e.e. cummings e o espanhol Ángel Gonzáles são as obras completas que mais acessei na minha estante. Mas há poucos anos descobri Manoel de Barros e desde então ele e Caetano Veloso são tudo o que mais me impressiona em termos de poesia.
No momento estou lendo Anna Akhmátova e Mário Quintana, ambos pockets adquiridos em loja de conveniência por alguns reais. Além destes dois autores, os blogs de alguns poetas contemporâneos fazem parte da minha leitura diária. Entre eles Juan Iscla, José Inácio Vieira de Melo, Kátia Borges e Carlos Besen.

JIVM – O poeta cearense Francisco Carvalho diz que “o poeta diz as coisas como elas não são” e em outro poema afirma: “a prosa anda a cavalo/ a poesia voa”. Você se sente situada dentro desse contexto poético? O que essas afirmações despertam no seu eu-poético?

PF – Quase como Francisco Carvalho, penso que o poeta diz as coisas como elas não são (ditas). O poeta não é um construtor de verdades, nem um inventor de coisas. O poeta é um ‘desinventor”. Ele desinveste a roupa das palavras, diz os nomes por suas costas, pelo seu inverso. O exercício poético é fazer as coisas serem o impossível da língua.
Manoel de Barros diz que “Poesia é voar fora da asa.” e é quando leio isso que me situo enquanto poeta. Não me interesso por prosa ou poesia se elas não tiverem esse propósito, o de voar fora da asa da palavra, de alcançar a terceira margem do rio, a água da palavra.

JIVM – E agora, Priscila? O que mais?

PF – E agora Zé? O que mais que não um poema?

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.

(Manoel de Barros – O livro das Ignorãças)

TRÊS POEMAS DE PRISCILA FERNANDES













A LÍNGUA


Gravidade cor de chumbo
a pesar-me o céu da boca.
Enraízo ao dente um nome
que incha e desengonça.
Grávido de língua, o palato inflama,
umedece o dito num edema afônico.
Cuspo seco e a palavra murcha,
'desidrata o significado
até deixar umas letras'.



CONFISSÃO


Me penduro nessa parede
como um relato,
eu me refrato
e traio as mentiras.

As coisas que não podem ser ditas
- esculpidas na parede -
Decifram a escritura do mito
desmentem o enigma de gesso.

No avesso:
sou real em despedaços...



INSTITUTO DE LETRAS


As mulheres do instituto de letras
têm voz de canivete.

As mulheres do instituto de letras
da Universidade Federal
têm muito a gritar.

As mulheres do instituto de letras
da Universidade Federal da Bahia
morrerão um dia desses:
de câncer na garganta.

Como tem mulheres!
Como são das mulheres as letras,
a palavra, os ganidos.

Não sei como ainda restam vidros
e ouvidos
àquele bendito instituto.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

LINDA - 40


Parabéns, Linda Pastora. Bem-vinda à casa dos 40. Grato por contribuir, de maneira significativa, para o desenvolvimento da paciência em meu ser. Beijos. Com amor
JIVM



PASTORA
Para Linda Soglia


E ouvir uma guitarra
e contemplar teus seios
é minha profissão.
Gerardo Mello Mourão


E como esquecer tua flor?

Como poderei esquecer
que só tu tiras da flauta
os acordes mais saborosos?

E como esquecer
dos aromas de tua rosa?


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

domingo, 10 de janeiro de 2010

SANGUE NOVO - VÂNIA MELO



CANTIGAS DE AMOR E DE CABARÉ – A primeira vez em que vi VÂNIA MELO, não me contive e perguntei, usando um verso do poeta paraíbano Hildeberto Barbosa Filho: “Tu és mulher ou és o fogo do inferno?”, Ela não hesitou e respondeu: “O fogo do inferno”. E é mesmo! Mas é um fogo no qual todos querem se aquecer, pois trata-se do fogo da poesia, trata-se dos calores do amor. Vânia Melo nasceu em Salvador, em 1980. Possui graduação em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia e é especialista em História e Cultura Afro-brasileira pela Faculdade São Salvador. Participou de eventos de poesia como o Porto da Poesia, na VII Bienal do Livro Bahia (2005), o projeto Poesia na Boca da Noite (2005), a Praça do Cordel e da Poesia, na IX Bienal do Livro Bahia (2009) e Caruru dos Sete Poetas, em Cachoeira, Bahia(2009). Atualmente leciona Literatura e Língua Portuguesa. Pois bem, vamos sentir um pouco a força dessa poeta que é autora de suas cantigas de amor e de cabaré e que deixa transbordar em seus versos sensualidade e beleza.

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Vânia, João Carlos Teixeira Gomes, o famoso Joca, tem um poema que diz “A poesia não é um campo de flores./ A poesia é um campo de dores/ temores/ sobressaltos”. Para você, a poesia é um campo de flores ou de dores? E por quê?

VÂNIA MELO – Penso que a poesia é um campo de flores que cultivamos a partir de nossas dores. É a tradução do indizível, a escrita representativa de nossos sentimentos, vivências, aprendizados. A poesia é a palavra encantada que dá conta do que não damos, do intangível.

JIVM – Hoje, fala-se muito em literatura homoerótica, poesia negra, literatura feminina? O que você acha dessas classificações? Há realmente necessidade dessas divisões?

VM – Acredito que há a necessidade das escritas afirmativas enquanto legitimação da fala de um grupo que algumas forças contrárias ocultam. A partir do momento em que se atribuem nomes para formar grupos, há também interesses de grupos hegemônicos em rotulá-los para julgá-los e, por vezes, depreciá-los. Penso que a poesia é eficaz em alcance pela emoção e conscientização. Ela nos faz refletir e também apaixonar, logo cumpre diversos papéis frente à sociedade. A visibilidade positiva de grupos até hoje marginalizados vê na poesia a chuva de flores dissolvendo os males.

JIVM – Em seus escritos há um forte apelo sensual. O que lhe leva a escrever dessa maneira? E quais são as suas principais influências?

VM – Vejo meus escritos como uma liberação das forças que por vezes ocultamos por timidez ou medo. Sim, ocultamos no plural, pois acredito sermos senhores de energias poderosíssimas, entre elas, talvez as mais fortes sejam a do amor, do sexo e sedução. Tudo isso transformado em poesia e escrito por uma mulher ganha uma representatividade forte, visto que é sabido o papel atribuído à mulher em uma sociedade patriarcal e machista como a que vivemos. As coisas vêm melhorando e as mulheres têm um espaço maior pra falar, já somos autoras das nossas cantigas de amor e já não precisamos chamar nossos desejos de “amigo”; Hilda Hilst me diz isso, Florbela Espanca e Clarice Lispector também.

JIVM – Qual o sentido de escrever poesia num país que ignora seus poetas?

VM – O país precisa nos enxergar, ouvir o que temos pra dizer e, principalmente, compreender a importância de nossos escritos. Somos milhões entre cordelistas, repentistas, contistas... Porém é necessário apresentar cultura de modo mais efetivo para a população, desconstruindo ideias já impregnadas sobre Literatura em segundo plano ou em lugar algum e reavivar a importância da leitura, do teatro, da canção. Quando escrevemos, chamamos atenção para a conscientização, a magia, o encantamento, o deleite.

JIVM – Algum livro em vias de publicação? O que a poeta Vânia Melo anda fazendo?

VM – Na verdade, tenho uma gaveta cheia deles... Santas de Cabaré e Eu e barulho do nada são livros de poesia; além deles tenho dezenas de contos que renderiam, pelo menos, dois livros. Outros poemas com temáticas sensuais, algumas memórias e poemas sobre negritude também são produzidos com alguma frequência e já são um começo para outras obras.

TRÊS POEMAS DE VÂNIA MELO

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NEM FLORBELA, NEM CECÍLIA


Não tenho alma
Ela não sonha, nem fica perdida
Tenho olhos de lira
Que tocam quando te vêem
E desafinam quando me miras

Não tenho barcos, nem mãos, nem sonhos
Tenho um pezinho torto
Que corre quando tu olhas
E para quando não voltas.

Queria ser Florbela em meus comas
Queria ser Cecília em meus dias
Mas perdi os versos que te fiz
E acordei dos sonhos de menina por um triz.



CANTIGAS DE CABARÉ


Beijava a cara com um jeito de louco
Envolvia nas pernas, assim meio torto
Falava ao ouvido um segredo rouco
Suado, calado, caia meio morto

Fazia juras ocultas, assim meio bobo
Apertava malvado, batia um pouco
Como quem nada quer olhava seu braço
E com um gesto grosseiro jogava o laço

Pouco a pouco se ia no mesmo passo
Deixava um trocado e se ria palhaço
Saía contente, bêbado, em descompasso

Ficava sozinha, ligava a vitrola
Ouvia cantigas e cantarolas
Que falavam de mar e iam embora.



COISA DE IR EMBORA


Não traga males
Não faça drama
Traga seus olhos
Porque dos meus já não gosto
Traga sua boca, porque na minha, sabor já não há
Me dispa, se dispa

Não traga males
Não faça drama
Enlouqueça, entonteça
Fique em meu corpo
Volte à minha cama
Me vista de gozo, se vista de nu

Não faça malas
Não traga dramas
Obedeça, ceda
Fique em meus olhos
Volte em minha boca
Me vista de ouro, se vista depressa

Não traga malas
Não faça a cama
Entenda, atenda
Fique em meus pensamentos
Volte em meus sonhos
Me vista e não chore, se vista e não volte.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

JIVM - INVENÇÃO DA POESIA


INVENÇÃO DA POESIA
Para Gerardo Mello Mourão


Pele vestida, distribuída e refeita,
parto para o princípio do labirinto.

Parto e principio o labirinto.
Na sua duração se abre o círculo
do espanto.
(Onde o centro? Que duração?).

Musa, teu vestido tem os novelos
da formosura!

O partir desenrola a ausência
e a pausa para o instante se cumpre.
De meu bergantim de ouro eu te informo
um sorriso.

Musa, é sempre a plena estrela
que tem a cauda dos rouxinóis
e que traz a curva da tua sombra.
Em teu ponto começa a extensão do mar,
e teu ponto guarda o profundo início.

E parto,
que a peripécia não é chegar,
que o coração só tem um fim:
ao som do coro das sereias
cantar o ciclo da origem.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Do livro inédito ROSEIRAL, a ser publicado
pela Escrituras Editora, em março de 2010