domingo, 31 de agosto de 2008

PROJETO UMA PROSA SOBRE VERSOS - A CASA DOS MEUS QUARENTA ANOS EM MARACÁS

Quinta-feira, 4 de setembro, participarei do projeto Uma Prosa Sobre Versos, em Maracás, a cidade das flores, lugar maravilhoso onde vivi por 10 anos. Na ocasião, encerramento da temporada de 2008, lançarei meu cd de poemas A casa dos meus quarenta anos. Dentro da programação do evento, o Grupo Concriz, composto por 12 jovens, dirigido pelo poeta Vitor Nascimento Sá, vai apresentar um recital com 35 poemas meus inéditos. Além do Grupo Concriz, Antonio Carlos de Oliveira Barreto, Carlos Barbosa, Edmar Vieira e Elizeu Moreira Paranaguá, poetas amigos meus, recitarão poemas do cd. O projeto Uma Prosa Sobre Versos conta com a coordenação do poeta e professor Edmar Vieira, diretor de cultura do município de Maracás. Após os recitais, falarei sobre meu percurso literário e responderei as perguntas da platéia.

JIVM

domingo, 24 de agosto de 2008

UM ATIVISTA DA POESIA

Helena Ortiz

Foto/Divulgação/Ricardo Prado

LANÇAMENTO - José Inácio Vieira de Melo lança poemas em CD para festejar seus 40 anos de idade.
O poeta nasceu no povoado alagoano Olho d'Água do Pai Mané e veio para a Bahia aos 20 anos, em 1988.


Ao completar 40 anos e festejá-los com a edição do cd "A casa dos meus quarenta anos", José Inácio Vieira de Melo pode olhar para trás (e nós também olhamos) e ver que tem uma carreira construída.
Tão jovem ainda, apenas 40 anos, muito pouco para se mensurar a carreira de um poeta. Talvez seja uma temeridade fazê-lo, uma vez que muitos estréiam, publicam poemas em uma ou outra antologia, mas, porque o público escasseia ou porque perdem o ímpeto, vão fazer outra coisa. Não é o caso de JIVM, porque ele não escolheu ser poeta. Foi escolhido pelo anjo torto, talvez num sopro de vento mais forte, talvez com a primeira flor de algorobeira, quando se viu diferente dos outros. Surpreendeu-se, talvez, quando menino, algumas vezes não entendeu, por muito jovem, até que o tempo ensinou-o a decifrar alguns enigmas e ele aceitou a missão de menestrel contemporâneo.

NA BOCA DA NOITE - Desde seu livro de estréia, Códigos do Silêncio, em 2000, José Inácio não parou mais. Seria excessivo que eu escrevesse sobre a sua poesia e os livros que vieram depois, Decifração de abismos e A terceira romaria, até A infância do Centauro, porque sobre ela (e eles) já escreveram nomes honrados e prestigiados do nosso pródigo cenário literário: Astrid Cabral, Marco Lucchesi, Francisco Carvalho, Lêdo Ivo, Izacyl Guimarães Ferreira, Igor Fagundes e seu admirado Gerardo Mello Mourão, hoje em outras paragens e sobre quem versa a tese de mestrado de José Inácio. Ao lado de tais nomes, o meu apareceria apagado, por poucos saberes acadêmicos. Mas há uma face que posso destacar, que me interessa muito, e me reporta a Lucchesi quando fala em "atitude de poeta". Falo do José Inácio ativista, coisa mais rara no ofício.
Uma outra força lhe foi legada: a capacidade de inventar oportunidades. E trabalha com isso na área mais difícil das artes. É o que se chama hoje de agitador cultural, aquele que idealiza, aglutina, organiza, sai a campo e realiza.
Durante quatro anos JIVM esteve à frente do Poesia na Boca da Noite, no restaurante Grande Sertão, em Salvador. Isso significa dizer que convidou, agendou (a agenda era feita no início do ano) fez contatos, juntou material, entrevistou e divulgou uma quantidade de poetas, fazendo com que aparecessem, conhecessem seus pares e tivessem espaço para mostrar o próprio trabalho; editou, junto com Aleiton Fonseca e Carlos Ribeiro cinco números da revista Iararana, além de organizar o concurso de poesia da revista; selecionou, organizou e editou a antologia Concerto lírico a quinze vozes, capa de Almandrade, novamente abrindo espaço para os novos poetas, um belo trabalho a que dedicamos as páginas centrais do panorama, com texto que tive o prazer de assinar.
Quando vi a revista pela primeira vez, e as outras, ou quando recebi a antologia era sempre uma alegria e eu pensava: José Inácio estava ali, organizando o movimento, segurando a bandeira dos predestinados, engolindo sapos e ouvindo mais não do que sim. Mas José Inácio é mais sim do que não, e quando menos se esperava, ali estava o trabalho concluído.
Em época de Olimpíadas, não seria ele uma das nossas maiores vitórias? Algum dia daremos a necessária atenção à mens sana, ou pelo menos a igual atenção que se dá ao corpore sano?
José Inácio esteve muitas vezes nas páginas do panorama: por ocasião dos lançamentos dos seus livros, porque foi finalista do Concurso Astrid Cabral, porque realizava. Sobre ele escreveram no jornal Marcus Vinicius, Mayrant Gallo, Ronaldo Correia de Brito, Hélio Pólvora e Izacyl Guimarães Ferreira. Também esteve no Rio para a comemoração dos seis anos do panorama – uma festa da escrita que terminava para dar vez ao jornal virtual – uma pena!
No período, muitas coisas aconteceram, boas e más, como são as coisas.
Amigos que se distanciaram, outros que se aproximaram, a chegada de mais um filho, a correria da vida, de carro ou a galope, sempre a poesia pulsando.
O centauro deixa a infância. José Inácio, aos 40 anos, voa. E lê, continua lendo, recitando ou cantando, graças a uma prodigiosa memória, os poetas de sua vida. Os poetas de todas as vidas, que só existem se os poetas de hoje não deixarem de cantá-los.

DIVULGADOR DE POESIA - Eu diria que por seu temperamento, José Inácio está mais para Castro Alves do que para Jorge de Lima, mas bem que podiam ser seus os versos: "um cavalo todo feito em chamas / alastrado de insânias esbraseadas / pelas tardes sem tempo ele surgiu / e lia a mesma página que eu lia".
Por tudo isso podem comemorar todos aqueles que sabem o quanto é importante (e difícil) dar a conhecer, sem parar, a produção poética brasileira, a despeito dos que dizem que não se produz nada de novo no Brasil. A cultura é feita pela mediania, e não nos é dado decidir hoje quem será importante amanhã. É temeroso fazê-lo. Muitas promessas se tornaram cinzas e alguns nomes, aparentemente apagados, fizeram-se grandes com o tempo.
O artista é o profeta do seu tempo e só o futuro lhe fará justiça. O que é preciso, hoje, é trabalhar, e disso, José Inácio é exemplo.


Helena Ortiz é poeta, contista e editora do jornal Panorama da Palavra e da Editora da Palavra. Publicou os livros Em par (2001) e Sol sobre o dilúvio (2005), entre outros.

Resenha publicada no A Tarde Cultural, em Salvador, Bahia, em 23 de agosto de 2008

Lançamento do cd de poemas "A casa dos meus quarenta anos",
de José Inácio Vieira de Melo
LDM Livraria Multicampi, Rua Direita da Piedade, Salvador - BA
13 de setembro de 2008 (sábado), das 10 às 14 horas

JIVM - A CASA DOS MEUS QUARENTA ANOS

Ilustração: Conceição

















A CASA DOS MEUS QUARENTA ANOS

Assim é a casa dos meus quarenta anos,
assombrada e sóbria como um bacurau.

Em seus largos cômodos,
habitam uma enorme solidão
e muitas vontades de vida.

É noite e estou em meu quarto
urdindo meus infinitos à eternidade.
Eu – apenas eu – eu.

Lá fora, uma sinfonia de questionamentos:
grilos, sapos, rãs na sua intermitente litania
enlouquecem meus fantasmas.

A minha casa, às três horas da madrugada,
tem os olhos bem abertos – esbugalhados sertões –
e os seus fantasmas, somatórios do eu,
vão se arrumando do jeito que podem.

Um, no quarto ao lado,
implora para que desatem o nó da forca.
Não suporta mais as folhas da algarobeira
chorando o seu destino.

No quarto do outro lado,
outro choraminga suas dores, suas pernas quebradas,
o sangue escorrendo para o nada
(esse espectro dói demais e a sua grande
novidade é saber que vai morrer).

No quarto derradeiro,
os morcegos dormem sossegadamente
e seu mundo não é de cabeça para baixo.
No quarto derradeiro da casa dos meus quarenta anos,
os morcegos adubam o terreno e aguardam a chegada
de mais um dia, de mais um ano.

E assim, no bater das asas do galo pedrês,
o choro do recém-nascido.

E de dia a casa dos meus quarenta anos
é cheia de janelas azuis abertas para o azul.
E uma multidão de ventos vem assobiar dentro dela,
vem renovar os ares, sacudir os quadros nas paredes,
jogar meus retratos pelo chão.
Ventos dadaístas
a remexer nos meus poemas, mudar seus versos,
rearrumar suas estrofes.

E o dia vai crescendo com uma claridade medonha,
e as telhas da minha casa abrem os olhos
e olham para o alto e se benzem e dizem amém
(cada telha da casa dos meus quarenta anos
é um olho aceso espiando dentro de suas cores).

E há momentos em que tudo que é bicho se cala
e a casa mais parece um cemitério.

A casa dos meus quarenta anos é caiada de branco
e tem janelas azuis abertas para o azul.

A casa dos meus quarenta anos – cemitério de ilusões.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

PAINEL DA LITERATURA BAIANA CONTEMPORÂNEA

Na próxima sexta-feira, dia 29, estarei na cidade de Amargosa, para falar da poesia contemporânea da Bahia e para lançar meu livro A infância do Centauro (2007), a convite do professor André Galvão, meu colega de mestrado na Uefs.
Para fazer minha explanação usarei como base duas antologias: A paixão premeditada (2000), organizada por Simone Lopes Tavares e Concerto lírico a quinze vozes (2004), organizada por mim.
A primeira, apresenta 16 poetas da geração sessenta, dos quais destacarei cinco: Antonio Brasileiro, Ildásio Tavares, Maria da Conceição Paranhos, Myriam Fraga e Ruy Espinheira Filho.
A segunda, traz 15 poetas que começaram a publicar a partir de 1995, chamados por alguns de geração noventa e por outros de geração 2000, da qual também destacarei cinco nomes: Ângela Vilma, Edmar Vieira, Elizeu Moreira Paranaguá, Goulart Gomes e Kátia Borges.
Encerrarei, falando de meu livro A infância do Centauro.
JIVM

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

JOSÉ INÁCIO E A POESIA QUE CHOVE

Ronaldo Correia de Brito

Ronaldo Correia de Brito, José Inácio Vieira de Melo e Mayrant Gallo
Feira do Livro da Bahia – Salvador, 22 de agosto de 2003

José Inácio Vieira de Melo me apareceu ao lado do escritor Mayrant Gallo, numa feira de livros em Salvador. Nesse tempo, ele já havia escrito Códigos do Silêncio e Decifração de Abismos, mas revelava-se inquieto com o feitio de sua poesia. Foi o que me confessou enquanto andávamos em meio a um aguaceiro, procurando um lugar onde se abrigar.
Penso nos artistas que vivem o ofício da poesia e lembro de José Inácio. O escritor argentino Jorge Luis Borges afirma no seu Evangelho Apócrifo: A porta é a que escolhe e não o homem. José Inácio escolheu ser poeta.

Quebrar todo e qualquer cabresto,
romper a barreira da forma,
caminhar para além da palavra.

Tentando a impossível façanha de nos proteger debaixo de um único guarda-chuva, Mayrant, José Inácio e eu caminhávamos pelas ruas alagadas. As portas não se abriam, não passavam táxis, as roupas e os sapatos molhados aumentavam nosso desconforto. José Inácio falou-me da sua atração pela poesia popular e do chamado de uma outra poesia mais metafísica e moderna. Reconheci nele, em pleno século vinte e um, as mesmas contradições de vários poetas brasileiros: a mistura de um mundo arcaico com os anseios de progresso; um sentimento pastoral que se esvai e se mantém como recordação.

O chocalho, no pescoço
da vaca, anuncia:
– Eu estou aqui!

O relógio, na parede
da cozinha, adverte:
– Não escaparás!

Uma porta aberta. Entramos e sentamos. Os três não bebemos álcool, José Inácio por conta da permanente embriaguez com a poesia.

Já não quero saber do amargor do vinho,
sei que sou um bicho espalhafatoso.

– Quais são os principais elementos de sua poética? – pergunto a José Inácio, como se o entrevistasse.
Ele não me responde, mas sei que circula pelas cidades carregando o sertão em meio às roupas da mala. Que sua poesia evoca tempos remotos, enquanto celebra mundos em transformação. Que não se desfez dos instrumentos de velhos versejadores, homens comuns que faziam da poesia a sobrevivência.

Vai, poeta
com tuas facas
destrincha a carne
e nela passa o sal
e estende-a ao sol

A chuva continua caindo. É provável que eu me resfrie. Olhamos a cidade de Salvador, quase a nordeste, quase a sul, e rimos de nosso estranhamento no mundo. Onde nos situamos? José Inácio nunca sabe se mora numa fazenda de criação de gado ou se está perdido em periferias. Em qualquer latitude que se mova é o mesmo poeta com sua bagagem de pastoral e modernidade. Alguém que busca se aproximar de um imaginário de poeta, onde se misturam Jorge de Lima, João Cabral, Francisco Carvalho, Cecília Meireles, Gerardo Mello Mourão, Vinícius de Moraes, cantadores populares e profetas bíblicos. Incansável, insone e vagante, não para de cavar em busca do veio de ouro da poesia.

Os livros foram lidos e tudo já foi dito:
resta o silêncio – este corvo doido,
resta a folha de papel em branco
urubuzando minhas dores,
buscando os meus anagramas.


Ronaldo Correia de Brito nasceu em 1950, na cidade de Saboeiro, no sertão dos Inhamuns, no Ceará. Formou-se em Medicina no Recife, onde reside. Além de atuar como crítico e jornalista, escreveu em parceria com Antonio Madureira e Assis Lima as peças teatrais Baile do Menino Deus (1983), O pavão misterioso (1985), Bandeira de São João (1987) e Arlequim (1990), todas lançadas em cd pelo selo Eldorado. Pela Cosac Naify publicou os livros de contos Faca (2003) e Livro dos homens (2005).

Essa crônica é o prefácio do livro A infância do Centauro (2007), de JIVM.

domingo, 17 de agosto de 2008

CRÔNICA - A BÊNÇÃO DO PAI

Ronaldo Correia de Brito

Ilustração: Zenival

No dia em que vim embora para o Recife senti um aperto no coração, a garganta travou, e os olhos encheram-se de lágrimas. Era lei na nossa casa que os filhos homens não podiam chorar. Eu tinha razões de sobra para abrir o berreiro: vinha para uma cidade grande e desconhecida, não tinha onde morar, nem matrícula eu havia feito no colégio. Tudo incerto para um menino de 17 anos que deixava a casa paterna, o paraíso verdejante do Cariri e sua gente acolhedora. Como na canção de Torquato Neto, minha mãe e meus sete irmãos me acompanharam até a porta. Abracei-os sem dizer uma única palavra, os dentes trancados. Se pronunciasse um singelo adeus, o açude represado de lágrimas romperia. Meu pai olhava-me firme, vigilante. Com ele planejara largar a vidinha feliz, conhecer outro mundo, arriscar a sorte. Tínhamos um projeto em comum: eu me formaria em medicina, traria os irmãos mais novos para estudar no Recife e ajudaria a educá-los.
Desde o ciclo migratório da década de 50, quando as fazendas sertanejas se esvaziaram dos seus moradores, meus pais compreenderam que não existia mais futuro no campo. Largaram o plantio de algodão, os criatórios de gado, as lavouras, e tomaram para si a tarefa de iniciar os filhos numa outra realidade. No que dependesse deles, todos nós freqüentaríamos a universidade. Sábia escolha do nosso pai, um homem que aprendeu a ler sozinho, e atravessou noites acordado, brigando com os enigmas do português e da aritmética. Por algum mistério que nunca desvendei, os livros eram objetos de fetiche na família, prestando-se verdadeiro culto aos tios letrados, homens sábios e faladores.
Foi meu pai quem me acompanhou até a garagem do ônibus, pois não existia rodoviária nesse tempo. Caminhava ao meu lado, solene e silencioso. Um carregador transportava na cabeça minha parca mudança, uma mala de couro e uma caixa de papelão amarrada com cordas de barbante. A mais franciscana pobreza. Não enxergava nada à minha frente, os olhos cegos de lágrimas. Lembrava a história que minha avó contava, dos três irmãos que abandonam o lar em busca de fortuna. A todos eles o pai perguntou na hora da despedida: – Você prefere muito dinheiro e minha maldição ou pouco dinheiro e minha bênção? Apenas o mais novo escolheu a bênção e pouco dinheiro, alcançando sucesso.
Eu não podia despedir-me do meu pai sem balbuciar o adeus, e sem pedir a bênção. Precisava ouvir de seus lábios a fórmula protetora do “Deus te abençoe”. Atravessava a cidade a pé, com a sensação de que me empurravam para o desterro. Nunca um trajeto me pareceu tão longo. Chegamos, o carregador instalou as bagagens no ônibus, recebeu o pagamento e deixou-nos sozinhos com meia hora de espera e constrangimento. Foi uma eternidade. Meu pai apertou minha mão, o máximo de afeto permitido entre nós, não me olhou, de modo que nunca soube o que sentiu naquela tarde. Na família, não existiam trocas de afagos e confidências, apesar dos fortes vínculos que nos uniam. Apertei a mão dele, e consegui pedir a bênção sem chorar. Ele me abençoou e parti sozinho. Sozinho, eu chorei horas seguidas e tive a primeira de muitas consciências, uma delas a de que era senhor do meu pranto.
As velhas fórmulas caíram em desuso, já não se pede a bênção a ninguém. Ah!, o poder mágico dessa invocação. Todas as noites, antes de dormir, escutava os irmãos gritarem dos seus quartos, para o quarto dos pais: “A bênção!”. Só calavam depois que ouviam o “Deus te abençoe”. As três palavras pareciam com o pano que nossa mãe estendia sobre as redes, nos protegendo dos respingos das chuvas, na casa de telhado alto. A fórmula não se referia ao Deus de nenhuma instituição religiosa, era apenas uma graça pacificadora, um sonífero sem droga. Todos te aplacavam ao ouvir um “Deus te abençoe”.
Chegaram os dias em que desprezei os costumes da família, virei o rosto para os velhos que cobravam o pedido de bênção, senti nojo das mãos descarnadas das tias, estendidas para que eu as beijasse. Morreu a geração de bisavós, depois caíram os avós, e já começaram as baixas nos tios paternos. Quando não restarem mais vivos na fileira dos pais, assumirei a linha de frente. Ninguém mais protegerá a minha retaguarda. Todos estarão depois de mim, ninguém mais antes de mim para abençoar-me. Agora, sou eu a abençoar.
Por esses dias, meu filho mais novo viajou para estudar na Inglaterra. Achei que a minha história se repetia em condições diferentes e por uma estrada bem mais comprida. Conversei com ele sobre seus projetos para o futuro. Ajudei-o a comprar as passagens, o curso, o seguro-saúde, a arrumar a mala. Levei-o ao aeroporto na companhia festiva dos amigos, da namorada, e de dos irmãos. Eu e minha mulher éramos as únicas pessoas graves na comitiva.
Meu filho transpôs o portão de embarque, tudo estava certo, não faltava mais nada. De repente, ele voltou até junto de mim, me estendeu a mão e pediu: “A bênção, pai!” Pronunciei o “Deus te abençoe” e a ordem do mundo se refez, uma ordem em que se recompõem os elos com o passado, sem nenhuma culpa pelas formas que o presente assume. Não sei o que meu filho sentia, nem em que pensava quando me pediu a bênção. Talvez tenha lembrado a história dos três irmãos, a que minha avó me contava, e contei para ele. Todas as experiências do homem são de algum modo análogas, está escrito no Eclesiastes, o livro em que aprendi a ler, ajudado por meu pai.


Ronaldo Correia de Brito nasceu em 1950, no Ceará. Formou-se em Medicina no Recife, onde reside. Além de atuar como crítico e jornalista, é autor de várias peças de teatro, inspiradas no teatro popular nordestino. Pela Cosac Naify publicou a história infanto-juvenil O pavão misteryozo (2004) e os livros de contos Faca (2003) e Livro dos homens (2005).

Crônica publicada na revista Continente Multicultural nº66, em junho de 2006, em Recife, Pernambuco.

domingo, 10 de agosto de 2008

JIVM - BÊNÇÃO


B Ê N Ç Ã O

Para Aloísio Vieira de Melo


Meu pai,
beijo suas mãos,
não como um homem
pretende beijar as de Deus,
mas como uma árvore
beija suas raízes.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

sábado, 2 de agosto de 2008

VERÔNICA DE VATE: RITA SANTANA

RITA Verônica Franco de SANTANA, nasceu em 22 agosto de 1969, na cidade de Ilhéus, na Bahia.
A ESCRITORA: Publicou seus contos no Diário da Tarde, de Ilhéus e no suplemento cultural do jornal A Tarde, de Salvador, no período em que era editado pelo poeta Florisvaldo Mattos; foi uma das coordenadoras do projeto Universidade em Verso, na UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz). Em 2004 publicou o livro de contos Tramela através da Fundação Casa de Jorge Amado, com o prêmio Braskem de Cultura e Arte Literatura – 2004, para autores inéditos. Em 2005 participa da antologia Mão Cheia. Em 2006 publica o livro de poesia Tratado das Veias, através de seleção feita pelo selo As Letras da Bahia, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Em 2005 participa da Bienal do Livro da Bahia no projeto Porto da Poesia, organizado pelos editores da revista Iararana. Em 2007, participa da Bienal do Livro da Bahia no Café Literário.
A ATRIZ: Atuou em algumas peças infantis, com destaque para PLUFT, O FANTASMINHA, de Maria Clara Machado, com direção de Pedro Mattos (Ilhéus - 1987/89), interpretando a Mãe de Pluft. Participou de recitais de poesia e feiras culturais no interior da Bahia, explorando o teatro de rua, ao ser uma das fundadoras do grupo “Caras e Máscaras” (Ilhéus - 1990/95). Integrou o elenco de DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, adaptação do romance homônimo de Jorge Amado, com direção de Fernando Guerreiro (Ilhéus/Salvador - 1992), interpretando Dionísia de Oxóssi. Integrou o elenco da primeira fase da novela RENASCER, produzida pela Rede Globo de Televisão (1993), interpretando a personagem “Flor”. Pequena participação no filme TIETA DO AGRESTE, de Cacá Diegues (1995), interpretando a personagem Tonha (jovem). Integrou o elenco de ERA UMA VEZ UMA MATA, espetáculo infantil de Rita Brito, com direção de Jorge Borges (1998), vivendo a Caipora. Integrou o elenco da montagem FAUSTO ZERO, clássico de Goethe, no Teatro Vila Velha, com direção de Marcio Meirelles (1999), representando Margarida, a amada de Fausto. Integrou o elenco do curta PIXAIM, sob a direção de Fernando Belens (2000), interpretando Adalice. Participou do longa ESSES MOÇOS (2002), dirigido por José Araripe, interpretando Marli. Participou do longa EU ME LEMBRO (2002), dirigido por Edgard Navarro, onde interpretou Lene. Integrou o elenco do episódio “O VESTIDO DE OTÁLIA”, produzido pela TV Globo e dirigido por Sérgio Machado, interpretando a mulher de Cravo na Lapela, em 2002. Em 2006 atuou no filme “JARDIM DAS FOLHAS SAGRADAS” de Póla Ribeiro.


AI DE MIM!


Deu de abrir comissuras na minha pele,
Porque ele partiu.
E nunca mais voltou pra minha alcova,
Pro meu convento de moça,
Pra minhas paúras,
Pra minhas pioras de noiva,
Pros meus pincéis de Almodóvar,
Pra minha cova roxa.
Eu fico esperando volta.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!

Deu de abrir fissuras na minha boca,
Porque ele partiu.
E eu fiquei oca,
Fiquei seca,
Virei louça,
Vivi morta.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!

Deu de abrir fendas no amor,
Porque ele partiu,
E nunca mais voltou.
Eu sucumbi ao sol:
Comi calêndulas,
Girassóis feridos,
Flores de abóboras,
Serpentes de vidro.
Abri a porta e gritei:
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!


RITA SANTANA

RITA SANTANA - AZUL


AZUL


Sou de uma tristeza surda, funda.
Ando cansada das pernas,
Pois o meu amor brincou de picula,
E o sonho gargalhou migalhas nas toalhas de rosto,
Nas marcas pintadas do meu rosto,
Nas tralhas velhas da minha fotografia.

Ando azul porque não me reconheço gente.
Sou o próprio azul, simples, etéreo, incorpóreo,
Dos maios, dos setembros foscos de tanto sol,
De tanta ardência, dos poetas mais plácidos.
Azul dos palácios encantados, azul das moscas azuis,
Das estrias recobertas por cremes de milagres,
Azul da minha saudade-não-sei, de tanta coisa ida.
Tantas promessas me prometi,
Foram tantos os protestos advérbios,
Tantos esticamentos de veias,
Numa garganta de cobre fundido em ouro dos mais puros.

Estou em apuros porque sobrevivi até mais tarde,
Mas carrego mortes que desconheço porque sou pobre:
Deixei de estudar filosofia,
Deixei de fazer poesia,
Deixei de ir ao encontro do sol.
Perdi a maria-fumaça da minha infância,
Pra uma indústria de cacau.
Perdi os leões de mármore da minha infância,
Pras chácaras dos coronéis.
Perdi minha alegria
Pra essa incompetência diante da vida.

Não sei tratar dos amigos.
Sei tratar alguns peixes, mas dos homens não sei.
Suas escamas crespas,
Vísceras rubras demais pra minha paciência dilatada.
São flamas demais entre nós, os amigos.
Perdi e encontrei terezas, jorges, tonhos, miguéis, primos,
Aluguéis, janelas, gudes, bordados, assovios, cartas de amor,
Fraudes descartáveis, autorias duvidosas, alarmes, amores...

Perdi também palavras raras, livros,
Sonetos, versos de adolescer,
Pus, espúrios párias, pipas, chances,
Galhos secos ofertados à ilusão,
Sangue, suores, caldos de gozos raros,
Disparos de olhares que não vi,
Envelopes, vozes, madrinha, ruas, pessoas,
Esperanças, alianças, presentes,
Crianças, avós - todos os avós já perdidos - analices e luzias.
Faço qualquer coisa pra resolver
A inapetência diante da praticidade dos futurosos,
Dos que já deram certo, dos corretos, dos sem dores,
Dos bem-sucedidos, dos resolvidos, simplórios,
Dos que têm dor de dente
Mas não sabem o que é dor de alma.

Pois tenho urgência é de alegria, mansidão.
Sou um azul, azulzinho escuro, claro,
Azul céu, azul serpente, azul maçã,
Azul molho-de-tomate-elefante,
Azul clarinho, quase branco, azul amianto, azul-ami,
Azul trinta, azul balzaquiana louca, azul mulher, azul negra,
Azul esquisita, azul Rita, azul Dione, azul sul-da-Bahia,
Azul alegria, azul saudade,
Azul idade de envelhecer vez por todas,
Azul sem roupa, azul peruca, azucrinada, que nada!
Azul Ferreira Gullar, azul minha boceta cor-de-rosa,
Azul cerveja, azulilás, aliás, azul pirraça.


RITA SANTANA

OS VEIOS POÉTICOS DA MULHER DE HOJE

José Inácio Vieira de Melo

Dois anos depois da publicação de seu primeiro livro de contos, Tramela, um dos vencedores do Prêmio Braskem de Cultura e Arte – Literatura – 2004, para autores inéditos, da Fundação Casa de Jorge Amado, chegou o momento de Rita Santana estrear na poesia com Tratado das Veias, uma publicação do Selo Editorial Letras da Bahia.
O livro, que vem referendado por Hélio Pólvora e por Aninha Franco, é composto de setenta poemas, nos quais Rita exterioriza o seu potencial lírico. Mas o lirismo de Rita Santana nada tem de doce, ameno, nada tem de contenção. A poeta imprime em seus versos uma força transbordante, um intenso jorrar de sensações, e é erótica e é política e é debochada.
Em um dos poemas iniciais, “Abandono”, Rita dá o tom que perpassa todo o livro. Faz um inventário dos cacarecos de sua caminhada, como quem faz uma revisão da vida, uma limpeza. Essa atitude de desprendimento, esse ajuste de contas, proporciona uma catarse, uma abertura para o novo, para o que vier: “Deixo aqui minhas vontades. (...)/ Precipito-me em deixar-me aqui também,/ e seguir sem mim, pois que fico. (...)/ Deixo-me vestida de ausência.”
Mais adiante, no poema “Azul”, Rita começa tratando peixes, à maneira de Adélia Prado, e termina fazendo uma embolada com Ferreira Gullar. E em tom de sarcasmo, o céu azul maranhense da infância do poeta vai emprestar sua cor para a “boceta cor-de-rosa” do eu-lírico da musa grapiúna. E a poeta abre o baú, e mais uma vez se expõe, ao enfileirar seus encontros e desencontros: “Perdi e encontrei terezas, jorges, tonhos, miguéis, primos,/ Aluguéis, janelas, gudes, bordados, assovios, cartas de amor,/ Fraudes descartáveis, autorias duvidosas, alarmes, amores...”
O veio erótico de Rita predomina no seu tratado, mas no bojo do erotismo ressoa um desejo de reconhecimento de seus prazeres. Uma poesia que grita – berra mesmo – a emancipação dos pudores, seja na ladainha “Ai de mim!” (“Abri a porta e gritei:/ Ai de nós, mulheres feias!/ Ai de nós, mulheres tortas!”) ou mesmo em “Bênção” (“Sou mulher de agora, de hoje,/ Tenho hábito de galo e caprichos de galinha.”).
Em Tratado das Veias encontramos uma jovem poeta delirante, que homenageia, ao decorrer dos poemas, as influências que lhe são caras. Então, Hilda Hilst, Orides Fontela, Cora Coralina e Adélia Prado pairam nos ares poéticos de Rita Santana. Outra voz que se assemelha à de Rita é a de Elisa Lucinda. Nas duas poetas, é perceptível a entonação teatral, a disposição para a oralidade de seus versos. Essa característica, muito provavelmente, se dá pelo fato de ambas serem atrizes.
Quanto ao aspecto formal, a própria autora é quem esclarece o seu “Mosaico” poético: “Sou uma fulana doida,/ de palavras grossas e versos malacabados.” E mais, em “Brechó”: “Rasgo-me em palavras, xingamentos, palavrórios, orações,/ Abuso do vocabulário:”. Ou, ainda, em “Violino”: “Sou dos excessos!”. Essa estranha poética confere a Rita Santana um largo espaço para a criação – palco de muitas possibilidades e de muitos riscos, que podem trazer algo de novo. E o novo é quase sempre estranho.
Com Tratado das Veias, Rita Santana passa a fazer parte do mais novo time de poetas baianas, poetas que publicaram seus livros de estréia, tiveram boa acolhida entre seus pares e deixaram uma grande expectativa em relação às suas obras vindouras. Dentre elas, estão Kátia Borges, com De volta à caixa de abelhas (2002), e Fabrícia Miranda, com Ritos de espelho (2002).
Em Reflexões sobre poesia e ética, o poeta grego Konstantinos Kaváfis, fala sobre o receio que alguns escritores têm em abordar determinados assuntos “porque temem ofender os preconceitos”. Rita Santana não tem medo dos preconceitos, é uma poeta de voz firme e traço pungente, está armada de verbos que rondam seu chão como estrelas. Seu compromisso é consigo, com as coisas em que acredita e com a arte. Rita Santana é constante em sua busca, por isso cativa a todos aqueles que insistem em perseguir acreditando em um sonho: “Quando chega a primavera, eu viro chuva/ e saio a te buscar por toda a terra”.


Resenha publicada no jornal A Tarde Cultural, em Salvador-BA, em 11 de novembro de 2006