domingo, 17 de agosto de 2008

CRÔNICA - A BÊNÇÃO DO PAI

Ronaldo Correia de Brito

Ilustração: Zenival

No dia em que vim embora para o Recife senti um aperto no coração, a garganta travou, e os olhos encheram-se de lágrimas. Era lei na nossa casa que os filhos homens não podiam chorar. Eu tinha razões de sobra para abrir o berreiro: vinha para uma cidade grande e desconhecida, não tinha onde morar, nem matrícula eu havia feito no colégio. Tudo incerto para um menino de 17 anos que deixava a casa paterna, o paraíso verdejante do Cariri e sua gente acolhedora. Como na canção de Torquato Neto, minha mãe e meus sete irmãos me acompanharam até a porta. Abracei-os sem dizer uma única palavra, os dentes trancados. Se pronunciasse um singelo adeus, o açude represado de lágrimas romperia. Meu pai olhava-me firme, vigilante. Com ele planejara largar a vidinha feliz, conhecer outro mundo, arriscar a sorte. Tínhamos um projeto em comum: eu me formaria em medicina, traria os irmãos mais novos para estudar no Recife e ajudaria a educá-los.
Desde o ciclo migratório da década de 50, quando as fazendas sertanejas se esvaziaram dos seus moradores, meus pais compreenderam que não existia mais futuro no campo. Largaram o plantio de algodão, os criatórios de gado, as lavouras, e tomaram para si a tarefa de iniciar os filhos numa outra realidade. No que dependesse deles, todos nós freqüentaríamos a universidade. Sábia escolha do nosso pai, um homem que aprendeu a ler sozinho, e atravessou noites acordado, brigando com os enigmas do português e da aritmética. Por algum mistério que nunca desvendei, os livros eram objetos de fetiche na família, prestando-se verdadeiro culto aos tios letrados, homens sábios e faladores.
Foi meu pai quem me acompanhou até a garagem do ônibus, pois não existia rodoviária nesse tempo. Caminhava ao meu lado, solene e silencioso. Um carregador transportava na cabeça minha parca mudança, uma mala de couro e uma caixa de papelão amarrada com cordas de barbante. A mais franciscana pobreza. Não enxergava nada à minha frente, os olhos cegos de lágrimas. Lembrava a história que minha avó contava, dos três irmãos que abandonam o lar em busca de fortuna. A todos eles o pai perguntou na hora da despedida: – Você prefere muito dinheiro e minha maldição ou pouco dinheiro e minha bênção? Apenas o mais novo escolheu a bênção e pouco dinheiro, alcançando sucesso.
Eu não podia despedir-me do meu pai sem balbuciar o adeus, e sem pedir a bênção. Precisava ouvir de seus lábios a fórmula protetora do “Deus te abençoe”. Atravessava a cidade a pé, com a sensação de que me empurravam para o desterro. Nunca um trajeto me pareceu tão longo. Chegamos, o carregador instalou as bagagens no ônibus, recebeu o pagamento e deixou-nos sozinhos com meia hora de espera e constrangimento. Foi uma eternidade. Meu pai apertou minha mão, o máximo de afeto permitido entre nós, não me olhou, de modo que nunca soube o que sentiu naquela tarde. Na família, não existiam trocas de afagos e confidências, apesar dos fortes vínculos que nos uniam. Apertei a mão dele, e consegui pedir a bênção sem chorar. Ele me abençoou e parti sozinho. Sozinho, eu chorei horas seguidas e tive a primeira de muitas consciências, uma delas a de que era senhor do meu pranto.
As velhas fórmulas caíram em desuso, já não se pede a bênção a ninguém. Ah!, o poder mágico dessa invocação. Todas as noites, antes de dormir, escutava os irmãos gritarem dos seus quartos, para o quarto dos pais: “A bênção!”. Só calavam depois que ouviam o “Deus te abençoe”. As três palavras pareciam com o pano que nossa mãe estendia sobre as redes, nos protegendo dos respingos das chuvas, na casa de telhado alto. A fórmula não se referia ao Deus de nenhuma instituição religiosa, era apenas uma graça pacificadora, um sonífero sem droga. Todos te aplacavam ao ouvir um “Deus te abençoe”.
Chegaram os dias em que desprezei os costumes da família, virei o rosto para os velhos que cobravam o pedido de bênção, senti nojo das mãos descarnadas das tias, estendidas para que eu as beijasse. Morreu a geração de bisavós, depois caíram os avós, e já começaram as baixas nos tios paternos. Quando não restarem mais vivos na fileira dos pais, assumirei a linha de frente. Ninguém mais protegerá a minha retaguarda. Todos estarão depois de mim, ninguém mais antes de mim para abençoar-me. Agora, sou eu a abençoar.
Por esses dias, meu filho mais novo viajou para estudar na Inglaterra. Achei que a minha história se repetia em condições diferentes e por uma estrada bem mais comprida. Conversei com ele sobre seus projetos para o futuro. Ajudei-o a comprar as passagens, o curso, o seguro-saúde, a arrumar a mala. Levei-o ao aeroporto na companhia festiva dos amigos, da namorada, e de dos irmãos. Eu e minha mulher éramos as únicas pessoas graves na comitiva.
Meu filho transpôs o portão de embarque, tudo estava certo, não faltava mais nada. De repente, ele voltou até junto de mim, me estendeu a mão e pediu: “A bênção, pai!” Pronunciei o “Deus te abençoe” e a ordem do mundo se refez, uma ordem em que se recompõem os elos com o passado, sem nenhuma culpa pelas formas que o presente assume. Não sei o que meu filho sentia, nem em que pensava quando me pediu a bênção. Talvez tenha lembrado a história dos três irmãos, a que minha avó me contava, e contei para ele. Todas as experiências do homem são de algum modo análogas, está escrito no Eclesiastes, o livro em que aprendi a ler, ajudado por meu pai.


Ronaldo Correia de Brito nasceu em 1950, no Ceará. Formou-se em Medicina no Recife, onde reside. Além de atuar como crítico e jornalista, é autor de várias peças de teatro, inspiradas no teatro popular nordestino. Pela Cosac Naify publicou a história infanto-juvenil O pavão misteryozo (2004) e os livros de contos Faca (2003) e Livro dos homens (2005).

Crônica publicada na revista Continente Multicultural nº66, em junho de 2006, em Recife, Pernambuco.

2 comentários:

Anônimo disse...

Não pude deixar de chorar e de me lembrar de meu pai a quem eu sempre pedia a benção e beijava as mãos, na partida e no retorno. Quando eu esquecia, ele vinha e me abençoava. Lindo texto.

Elizabeth F. de Oliveira disse...

Não consegui represar o açude. Além de ser uma crônica emocionante, possui uma linguagem comoventemente poética. Um texto maravilhoso!