Ronaldo Correia de Brito, José Inácio Vieira de Melo e Mayrant Gallo
Feira do Livro da Bahia – Salvador, 22 de agosto de 2003
José Inácio Vieira de Melo me apareceu ao lado do escritor Mayrant Gallo, numa feira de livros em Salvador. Nesse tempo, ele já havia escrito Códigos do Silêncio e Decifração de Abismos, mas revelava-se inquieto com o feitio de sua poesia. Foi o que me confessou enquanto andávamos em meio a um aguaceiro, procurando um lugar onde se abrigar.
Penso nos artistas que vivem o ofício da poesia e lembro de José Inácio. O escritor argentino Jorge Luis Borges afirma no seu Evangelho Apócrifo: A porta é a que escolhe e não o homem. José Inácio escolheu ser poeta.
Quebrar todo e qualquer cabresto,
romper a barreira da forma,
caminhar para além da palavra.
Tentando a impossível façanha de nos proteger debaixo de um único guarda-chuva, Mayrant, José Inácio e eu caminhávamos pelas ruas alagadas. As portas não se abriam, não passavam táxis, as roupas e os sapatos molhados aumentavam nosso desconforto. José Inácio falou-me da sua atração pela poesia popular e do chamado de uma outra poesia mais metafísica e moderna. Reconheci nele, em pleno século vinte e um, as mesmas contradições de vários poetas brasileiros: a mistura de um mundo arcaico com os anseios de progresso; um sentimento pastoral que se esvai e se mantém como recordação.
O chocalho, no pescoço
da vaca, anuncia:
– Eu estou aqui!
O relógio, na parede
da cozinha, adverte:
– Não escaparás!
Uma porta aberta. Entramos e sentamos. Os três não bebemos álcool, José Inácio por conta da permanente embriaguez com a poesia.
Já não quero saber do amargor do vinho,
sei que sou um bicho espalhafatoso.
– Quais são os principais elementos de sua poética? – pergunto a José Inácio, como se o entrevistasse.
Ele não me responde, mas sei que circula pelas cidades carregando o sertão em meio às roupas da mala. Que sua poesia evoca tempos remotos, enquanto celebra mundos em transformação. Que não se desfez dos instrumentos de velhos versejadores, homens comuns que faziam da poesia a sobrevivência.
Vai, poeta
com tuas facas
destrincha a carne
e nela passa o sal
e estende-a ao sol
A chuva continua caindo. É provável que eu me resfrie. Olhamos a cidade de Salvador, quase a nordeste, quase a sul, e rimos de nosso estranhamento no mundo. Onde nos situamos? José Inácio nunca sabe se mora numa fazenda de criação de gado ou se está perdido em periferias. Em qualquer latitude que se mova é o mesmo poeta com sua bagagem de pastoral e modernidade. Alguém que busca se aproximar de um imaginário de poeta, onde se misturam Jorge de Lima, João Cabral, Francisco Carvalho, Cecília Meireles, Gerardo Mello Mourão, Vinícius de Moraes, cantadores populares e profetas bíblicos. Incansável, insone e vagante, não para de cavar em busca do veio de ouro da poesia.
Os livros foram lidos e tudo já foi dito:
resta o silêncio – este corvo doido,
resta a folha de papel em branco
urubuzando minhas dores,
buscando os meus anagramas.
Ronaldo Correia de Brito nasceu em 1950, na cidade de Saboeiro, no sertão dos Inhamuns, no Ceará. Formou-se em Medicina no Recife, onde reside. Além de atuar como crítico e jornalista, escreveu em parceria com Antonio Madureira e Assis Lima as peças teatrais Baile do Menino Deus (1983), O pavão misterioso (1985), Bandeira de São João (1987) e Arlequim (1990), todas lançadas em cd pelo selo Eldorado. Pela Cosac Naify publicou os livros de contos Faca (2003) e Livro dos homens (2005).
Essa crônica é o prefácio do livro A infância do Centauro (2007), de JIVM.
Penso nos artistas que vivem o ofício da poesia e lembro de José Inácio. O escritor argentino Jorge Luis Borges afirma no seu Evangelho Apócrifo: A porta é a que escolhe e não o homem. José Inácio escolheu ser poeta.
Quebrar todo e qualquer cabresto,
romper a barreira da forma,
caminhar para além da palavra.
Tentando a impossível façanha de nos proteger debaixo de um único guarda-chuva, Mayrant, José Inácio e eu caminhávamos pelas ruas alagadas. As portas não se abriam, não passavam táxis, as roupas e os sapatos molhados aumentavam nosso desconforto. José Inácio falou-me da sua atração pela poesia popular e do chamado de uma outra poesia mais metafísica e moderna. Reconheci nele, em pleno século vinte e um, as mesmas contradições de vários poetas brasileiros: a mistura de um mundo arcaico com os anseios de progresso; um sentimento pastoral que se esvai e se mantém como recordação.
O chocalho, no pescoço
da vaca, anuncia:
– Eu estou aqui!
O relógio, na parede
da cozinha, adverte:
– Não escaparás!
Uma porta aberta. Entramos e sentamos. Os três não bebemos álcool, José Inácio por conta da permanente embriaguez com a poesia.
Já não quero saber do amargor do vinho,
sei que sou um bicho espalhafatoso.
– Quais são os principais elementos de sua poética? – pergunto a José Inácio, como se o entrevistasse.
Ele não me responde, mas sei que circula pelas cidades carregando o sertão em meio às roupas da mala. Que sua poesia evoca tempos remotos, enquanto celebra mundos em transformação. Que não se desfez dos instrumentos de velhos versejadores, homens comuns que faziam da poesia a sobrevivência.
Vai, poeta
com tuas facas
destrincha a carne
e nela passa o sal
e estende-a ao sol
A chuva continua caindo. É provável que eu me resfrie. Olhamos a cidade de Salvador, quase a nordeste, quase a sul, e rimos de nosso estranhamento no mundo. Onde nos situamos? José Inácio nunca sabe se mora numa fazenda de criação de gado ou se está perdido em periferias. Em qualquer latitude que se mova é o mesmo poeta com sua bagagem de pastoral e modernidade. Alguém que busca se aproximar de um imaginário de poeta, onde se misturam Jorge de Lima, João Cabral, Francisco Carvalho, Cecília Meireles, Gerardo Mello Mourão, Vinícius de Moraes, cantadores populares e profetas bíblicos. Incansável, insone e vagante, não para de cavar em busca do veio de ouro da poesia.
Os livros foram lidos e tudo já foi dito:
resta o silêncio – este corvo doido,
resta a folha de papel em branco
urubuzando minhas dores,
buscando os meus anagramas.
Ronaldo Correia de Brito nasceu em 1950, na cidade de Saboeiro, no sertão dos Inhamuns, no Ceará. Formou-se em Medicina no Recife, onde reside. Além de atuar como crítico e jornalista, escreveu em parceria com Antonio Madureira e Assis Lima as peças teatrais Baile do Menino Deus (1983), O pavão misterioso (1985), Bandeira de São João (1987) e Arlequim (1990), todas lançadas em cd pelo selo Eldorado. Pela Cosac Naify publicou os livros de contos Faca (2003) e Livro dos homens (2005).
Essa crônica é o prefácio do livro A infância do Centauro (2007), de JIVM.
Um comentário:
Caro cavaleiro de Fogo , li no A Tarde , teu poema, A casa dos Meus Quarenta Anos,Quanto alumbramento pelos varedos destes teus 40.Um abaraço, e me diga como fazer para reservar um cd?
Georgio Rios,georgiorios@gmail.com
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