domingo, 7 de setembro de 2008

MONTANDO NO BICHO MÍTICO PELAS TRILHAS DA IMAGINAÇÃO: UMA BREVE CAVALGADA EM A INFÂNCIA DO CENTAURO, DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Luciano Rodrigues Lima

PROÊMIO

Era uma tarde-noite quente. Eu e Lúcia perambulávamos pelas ruas cansadas e sofridas de Cachoeira, quando alguém me chama. Viro-me e vejo: Café Literário! Penso: duas boas coisas juntas. Muito mais. Entro e encontro pessoas recitando poesias na boquinha da noite. O poeta José Inácio Vieira de Melo, o fotógrafo e poeta Damário Dacruz e diversos jovens poetas lançando sementes no ar. Quando saímos de lá, meio inebriados, as ruas tortuosas de Cachoeira, antes apenas um cenário indecifrável, passaram a fazer sentido para nós.

POESIA PARA MONTAR E VIAJAR

Montar no centauro e sair por aí, ou ser o próprio centauro? Se o bicho mítico já é estranho e misterioso, imagine quando pequenininho, quem não gostaria de ver ou imaginar um? Tudo isso é possível dentro desse título, que, de si, já é um poema inteiro, pois poemas são gatilhos da imaginação; “A infância do centauro”, é um verso, é rítmico. Vamos montar no bicho e sair por aí.
José Inácio pratica poesia de diversos tipos - em primeira pessoa (“A sagração do mito”), falando de si mesmo e do próprio poeta que o habita, a partir de um mirante bem alto dentro dele mesmo, em segunda pessoa (“Epitáfio para um vaqueiro”, “Adorno”), quando o tu parece um faca cortando, aparando retilínea as palavras, em terceira pessoa (“Nascimento do poema”), como quem fala de fora de si mesmo, no infinitivo (“Metamorfose”), convidando o leitor à ação.
A poesia de José Inácio Vieira de Melo, a cada instante, perde a inocência das palavras e a recupera adiante. Explico. Um poeta pode tentar falar do mundo diretamente. Olhar ou sentir o mundo em torno e devolvê-lo em palavras diretas. Seria um diálogo poeta-mundo, sem mediação. Às vezes, porém, isto não é mais possível, devido à “floresta de símbolos” sobre a qual nos adverte Charles Baudelaire, no seu poema “Correspondences”.
Exemplifico. Em “Adeus”, José Inácio (o poeta dentro dele, é claro) parece falar diretamente com o seu passarim, lidando com a inocência das palavras, sem acordar as feras dentro delas, como se pudesse esquecer da carga semântica histórica que cada simples palavrinha traz. Ele reinaugura as palavras. Mas em “Quintanar” e “Epitáfio para um vaqueiro” e “Pedras amoladas, facas atiradas”, José Inácio é o poeta metalingüístico, algo modernista, praticando um intertexto com Mário Quintana, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto.

O LIVRO

Ao crítico não cabe elogiar ou detratar. Cabe-lhe apenas imiscuir-se no espaço entre a obra e o leitor, mediando-os tão pedagogicamente quanto possível. Descrevo, então, a obra. O livro se compõe de partes, com nomes sugestivos: Centauro, Testamento, Chave, Herança, Harém, Jardim, Romaria, mas não há restrição temática em cada uma das partes. Então, as páginas com os nomes podem soar como poemas de uma só palavra, ou palavras-poemas. A edição, pela Escrituras Editora, ilustrada pelo artista Juraci Dórea, é muito bem cuidada, possui prefácio de Ronaldo Correia de Brito, o qual demonstra conhecer segredos de poesia, e contra-capa de Gerardo Mello Mourão.
Ao ler o livro inteiro, tive sensações diversas: senti cheiro do mato do sertão (do sertão com gado, que é um tipo específico de sertão), pressenti o tom cavalheiresco medieval ainda presente na nossa cultura, reportei-me aos mitos bíblicos (“Jardim das algarobeiras”) e senti a atmosfera do cristianismo rústico em meio às pedras e espinhos do sertão nordestino, lembrando mesmo a própria Palestina (os sertanejos não são exilados em sua própria terra, como os palestinos?), entrevi o amor com o erotismo mitigado simbolicamente nas “touceiras de capim e éguas luzidias”, em “Gênese”, ou “no ritmo de vossas ancas”, em “Harém”, vi um poeta citadino intoxicado de palavras em “Zoada”. Encontrei o regional e o universal, o pessoal e o coletivo, imanência e transcendência, a linguagem e a metalinguagem, e diversos ritmos e métricas, ou melhor, formatações, termo mais apropriado para a poesia escrita em computador. O poeta contemporâneo é como o cantor que canta reggae, samba, bossa, baião e até rock. Mas não aconselho ninguém a ler A infância do centauro de uma só sentada. Penso que é melhor aproveitar um ou alguns poemas de cada vez, ou ler separadamente cada uma das partes a que me referi.
A infância do centauro é, na sua inteireza, uma busca: pelo “quem sou eu”, por “onde estou”, por “o que são as coisas” e pelo “o que significam as palavras”, enfim, pela impossível resposta para “o que é a poesia?”. È um passo em uma caminhada, um meio de caminho, um entre-lugar. Não chega ao destino, mas não volta atrás. Mas, nesse percurso, o leitor pode pegar carona no centauro, ou mesmo ser o próprio centauro, metáfora da poesia em movimento.

“CERCA DE PEDRA”: UM POEMA DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Quando leio criticamente um livro de poesia, gosto de comentar um poema, isoladamente. Acho que, lembrando mais detidamente de um poema, passo a incorporar melhor a poética daquele autor, e, assim, poder melhor exemplificá-la. Como escolher um poema? Ao acaso, pois o gosto pessoal pode ser arriscado. Não existem poemas melhores ou piores, em A infância do centauro. Existem diferentes poemas. Abri o livro sem olhar e, no cara ou coroa, entre os dois poemas do livro aberto deu “Cerca de pedra”.
Reproduzo-o:

CERCA DE PEDRA

Aqui, na Cerca de Pedra,
nesta noite caatingueira,
estou em silêncio, ouvindo
o silêncio das estrelas.

Li o poema auditiva e visualmente. Aos ouvidos soa como um hai-kai duplo. Visualmente é uma cena de noite escura (ou não) no sertão. No sertão, não! Na caatinga. Esta sim, embora menos pomposa, é bem nordestina. Aliás, vejo um vulto solitário sentado em uma cerca de pedra e a noite é de luar. Agora já não vejo mais a cena. Sou eu que estou lá, encostado na cerca de pedra, pois essas cerquinhas de pedra da caatinga não são lá tão boas para sentar. Pode doer nos fundilhos e prejudicar a meditação. Olho para cima e penso em Bilac, inevitavelmente, pois minha mente está povoada de outros poemas. Por instantes a noite silenciosa me envolve. A sensação é muito intensa e fugaz. Não se deve prolongar muito a estesia de um poema, para não desgastá-la. Às vezes a emoção é muito forte e é até perigoso mantê-la por muito tempo.
“Cerca de Pedra” é coisa de minutos, ou segundos. Você vai lá naquela noite silenciosa e volta logo. Senão, você pode se perder na caatinga, para sempre. Ou, mais provável, na caatinga escura e perigosa que já existe dentro de você.

REFERÊNCIAS

Melo, José Inácio Vieira de. A infância do centauro. São Paulo: Escrituras, 2007. 135 p.


Luciano Rodrigues Lima é natural de Salvador, Bahia. É doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor (UNEB e UNIFACS) e ensaísta. Ilustração: Gilvan Samico

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