sábado, 19 de julho de 2008

A SAGRAÇÃO DO CAOS

Igor Fagundes


No oracular A infância do centauro, poemário do alagoano-baiano José Inácio Vieira de Melo, um certo Delfos nascido em Olho d'água do Pai Mané adivinha-me no único verso de Quarto da bagunça: "Eu não sei nem por onde começar". Porque todo começo (cosmo) parte sempre de uma "bagunça" (caos) e a ela retorna na intermitência poética da vida, não-saber é o próprio iniciar caótico do verbo que não sabe "ser quase" e jamais se sacia, jamais nos sacia, sedentos incuráveis que somos. Não obstante, as algaravias deste livro-quarto-das-balbúrdias consistem, ao revés, no "registro da fala do silêncio" e levam-me, desde já, ao fracasso de dizê-lo e "dizê-las por inteiro". Afinal, ninguém consegue falar ou escrever sobre o silêncio, uma vez que só é possível falar ou escrever violando-o. Por isso não se sabe nunca, em poesia, "por onde começar": começa-se. E recomeça-se a cada vez, sem chance alguma de chegança. O ansiado "onde" é justamente este "não sei" a partir do qual emerge e imerge todo - poético - saber; todo sabor que intenta saturar-se de palavras quando "um silêncio de lá, de longe - das plagas interiores" as "abrasa" e "as queima antes de serem".
À semelhança de um "escarlate" que viaja "por todo o Cosmo em busca de uma resposta" e transita "em todas as partes que estão além das partes todas", adentro este quarto da bagunça "como quem entra num bar" e "sai bêbado caindo pela falta de chão". Confessar que "em minha mão pulsa o nó do espanto" é reconhecer, na desordem, o que nela se verte em seu próprio elogio: os minuciosos "segredos da poeira" a "andar para cima e para baixo"; o desejo de "beijar minha sombra", de assumir "todas as formas" para "amanhã ser informe" e especular que "somente os olhos dizem/ o que as palavras sonham" no instante em que o poeta, o leitor, um poeta-leitor se reconhece (ou se desconhece) perdido entre papéis misturados, canetas sem tinta, bilhetes rasgados, gavetas e armários abertos, vestes sem cabides, sapatos sem cadarços, cigarros sem cinzeiros, janelas emperradas, chaves sem baús, cofres violados e outros órfãos de senhas. Vem "do caos primordial" a poesia e, em Vieira de Melo, tal mitofania se faz tema ao percorrer "as searas da escuridão" e ver "o mundo pelos olhos da esfinge". Não lhe cabe decifrar - arrumar o "quarto" - e, sim, perpetuar-se "enigma", "um lugar/ onde os nossos mistérios possam descansar". Onde possamos transgredir o que outrora afirmamos, já que nem os olhos são capazes de dizer o sonhado pelos nomes. Silenciosas, as retinas talvez só gritem o que nelas se impronuncia: nunca acham o que procuram e o que nos procura se diz tão-somente em oráculo sob vendas: "Eu só acredito nas coisas que não vejo".
Esta, a crença da flecha erguida pelo centauro: ver o invisível, tanger o intangível, na certeza de que o azul do céu se tinge do fato de que ele não é céu nem azul; de que, indiscernível das patas, jamais segue longe, acima, mas como o imanente incolor que doa todas as possibilidades de cor e as converge na aquarela alquímica da vida: "vento, fogo, terra e água/ tudo uma coisa só". Com um quê de Empédocles e outro de Moisés, a página de José Inácio Vieira de Melo prossegue qual um Mar Vermelho em pleno Egeu, e por onde também deságuam os rios áridos ou a seca lacrimosa de um nordestino - humano - sertão.
A infância do centauro não se anuncia na condição de etapa existencial ora ultrapassada. Na medida em que não cessamos de aprender a falar, a pensar, a descobrir, amanhecemos, a cada amanhã, infantes na "sagração dos mitos". Bíblicos ou pré-socráticos em Vieira de Melo, ou nem isso, para além disso, pós-inácios, posto que "não medem o tempo" e se apossam, como "herança" e "testamento", do "buraco, o vazio" exímio no "meio do caminho" de nosso presente. E é buscando, de dentro desse abismo, aquilo que será, paradoxalmente, sua ponte, que os desígnios de um Delfos Vieira de Melo fazem-nos sentir tamanha saudade dos lugares em que nunca (mas sempre) estivemos.


Resenha publicada no jornal Rascunho, em julho de 2008, na cidade de Curitiba, Paraná.

Igor Fagundes é poeta, jornalista, ator e dramaturgo. Mestre em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicou os livros Transversais (2000), Sete mil tijolos e uma parde inacabada (2004) e Por uma gênese do horizonte (2006).

Um comentário:

Anônimo disse...

Bela crítica, que riqueza de vocabulário, o estilo josécasteliano... A tua escrita é lírica, poética e profunda, Você está ali, pau-a-pau com os grandes, os melhores. Então meu querido, parabéns! Você merece! Que coisa linda!
... adivinha-me no único verso de Quarto da bagunça: "Eu não sei nem por onde começar". Porque todo começo (cosmo) parte sempre de uma "bagunça" (caos) e a ela retorna na intermitência poética da vida, não-saber é o próprio iniciar;

Não obstante as algaravias deste livro-quarto-das-balbúrdias consistem, ao revés, no "registro da fala do silêncio" e levam-me, desde já, ao fracasso de dizê-lo e "dizê-las por inteiro". Afinal, ninguém consegue falar ou escrever sobre o silêncio, uma vez que só é possível falar ou escrever violando-o;

O ansiado "onde" é justamente este "não sei" a partir do qual emerge e imerge todo - poético - saber; todo sabor que intenta saturar-se de palavras quando "um silêncio de lá, de longe - das plagas interiores" as "abrasa" e "as queima antes de serem.


Saiba que estou muito orgulhosa de ter você como amigo.


Beijos

Vera Sarres