Hoje eu morri, e há reunião de família. É um pouco desconcertante ver tanta gente e ouvir tanto barulho dentro de casa, onde durante tanto tempo morei só e onde quase nunca recebia visitas. Mas não tenho do que me queixar; na verdade, é muito bom ter a família reunida. Família e algumas outras pessoas, conhecidos que há muitos anos não via e que eu pensei que já nem se lembravam de mim. Lá vêm eles, um a um, param em frente ao caixão e dão uma última olhada no meu rosto enrugado, elogiam minha aparência e fazem algum comentário sobre minhas supostas qualidades. Só não há lágrimas derramadas, mas isso é normal, estranho seria que as houvesse.
É curioso ser, de repente, motivo para tanto alvoroço, depois de ter vivido solitária durante tantos anos. Houve muitos preparativos antes de que chegassem os convidados. As empregadas da minha filha limparam a casa, fizeram salgados e os arrumaram na mesa da copa, e minha neta Isabel maquiou-me e colocou este laço vermelho em meu cabelo cinzento. Acho que fiquei um pouco ridícula com este laço e com estes lábios pintados e estas bochechas rosadas, mas de que serve a vaidade depois da morte? Além disso, ninguém mais achou ridículo, e todos dizem que eu estou muito bonita, mais bonita do que eu estivera nos últimos anos, embora eu desconfie que é porque querem ficar com a lembrança de uma bonequinha inofensiva e maquiada e não da velha rabugenta e solitária que eu era. Seja como for, não acho de muita importância o que as pessoas dizem ou pensam, pois, em momentos como este, as coisas que alguma vez nos preocuparam se desvanecem num nevoeiro prazeroso de indiferença. Cá estou eu, deitada no meu caixão macio e gostoso, e até uns minutos atrás sentia-me tão sossegada e contente no meu descanso modesto e pacato, que cheguei a pensar que nada na vida me aconteceu de mais agradável que a morte.
Mas nada no mundo é permanente, nem o prazer nem o desgosto, nem mesmo depois da morte, e uns minutos atrás começou a surgir em minha mente uma tênue inquietação. As pessoas passam em frente ao caixão e exclamam: “Olha como está linda, parece uma rosa!”. “Parece uma rosa, parece uma rosa…” E, de tanto falarem em rosas, lembrei-me da minha roseira e, pela primeira vez desde que morri, senti um certo desassossego e lamentei ter morrido. Quem cuidará agora da minha roseira? Olhei cuidadosamente ao meu redor: ninguém. Lá estão meus filhos, meus netos… mas ninguém, eu tive a certeza, ninguém se interessará por uma roseira.
Ganhei essa roseira da minha mãe, no dia em que eu passei no vestibular, há tantos e tantos anos. Minha mãe era uma mulher simples, humilde, que nada entendia de estudos, mas que muito sabia da vida. Estava transbordante de orgulho e de alegria, seu sonho sempre foi ver sua filha se formar, queria que eu tivesse um destino diferente do dela. E para isso eu fiz infinitos esforços, trabalhei dobrado para poder pagar o pré-vestibular, estudei obsessivamente, passei noites e noites em vela.
Mas destino é destino, e ele é regido por forças alheias à vontade do homem, por criaturas celestiais ou do céu banidas, ou simplesmente pelo acaso, pelo absurdo, ninguém sabe por quê. Minha mãe adoeceu. Minha pobre mãe, depois de uma vida inteira de abnegação e labuta, veio adoecer no momento em que o único sonho de sua vida poderia ter-se realizado. Tive que desistir da universidade. Remédios, operações, tratamentos, tinha que pagá-los de alguma forma. Ou esperar que a saúde pública a deixasse morrer lentamente. Consegui outro emprego, saía cedo de manhã e só chegava à noite, para encontrar minha mãe deitada e sem forças, mas aguardando-me acordada e com um dificultoso sorriso. Enquanto a roseira floria, minha mãe enfraquecia, desvanecia-se lentamente, e eu enlouquecia porque o dinheiro nunca alcançava para pagar os remédios.
Foi então que cedi à pressão do meu chefe. Há vários meses que ele me cercava, fazendo de tudo para que eu deitasse com ele, prometendo aumentos e regalias e ameaçando-me com a demissão. Entrei em seu escritório na hora do almoço, e disse-lhe que precisava de um empréstimo, pois minha mãe estava morrendo e não tinha dinheiro para os remédios. Sorriu. E foi ali mesmo que perdi minha virgindade, de bruços sobre a mesa onde se espalhavam os materiais de publicidade das roupas da última moda. O pobre homem. Tão pequenos prazeres para tanta perda de humanidade. É tão pedregosa a estrada da vida, que nunca entendi por que tanta gente dedica seus dias a torná-la ainda mais dolorosa. Hoje ele está morto, como eu. Afinal, somos todos iguais.
Depois disso, não tinha por que me preocupar com os escrúpulos. Fazer com um, fazer com outro, tanto faz, é tudo mais ou menos a mesma coisa. Com o tempo a gente se acostuma, o ser humano é assim, acostuma-se a tudo. Pelo menos assim eu podia comprar os remédios e não ficar desesperada cada vez que o dinheiro acabava. Quando chegava de madrugada, e não havia sabão no mundo que tirasse a sujeira do corpo e da alma, ia molhar minha roseira, e ao seu lado ficava sentada muito tempo, maravilhada ao ver que suas pétalas continuavam vermelhas, verdes suas folhas, exuberantes suas formas delineadas no resplendor da alvorada, intocadas pela poluição do mundo.
Minha mãe morreu. Coisas do destino. Com remédios ou sem remédios, lá se foi, e eu fiquei com as mãos vazias e apenas uma roseira como lembrança.
Poderia, então, ter voltado aos estudos, ter realizado o sonho da minha mãe. Mas tinha as dívidas. E, além disso, estava grávida. Minhas amigas, colegas de profissão, recomendaram o aborto. Mas eu via minha roseira, a vida que brotava luminosa a cada dia, e soube que não poderia arrancar o fruto do meu próprio ventre.
Muitas vezes me perguntei se eu fui uma boa mãe. Mas isso foi antes. Depois, deixei de pensar nisso. De qualquer forma, não se pode mudar o passado. Mas agora, com a ociosidade da morte, voltam as perguntas há tanto tempo enterradas. Não, acho que não fui uma boa mãe. É difícil ser mãe e puta ao mesmo tempo, coisas antípodas.
De qualquer forma, tentei. Tentei muito. Tive três filhos: dois homens e uma mulher, todos de pais diferentes, anônimos, desconhecidos, frutos de encontros inconseqüentes. Eles nunca souberam, nem da sua origem nem da minha profissão. Inventei todo tipo de empregos e ocupações importantíssimas para justificar minhas ausências noturnas, coisas que só uma criança acreditaria. E criei um pai mítico para eles. Era marinheiro, viajava muito. Depois morreu, numa tempestade. Morte heróica, terminou se afogando para salvar uma menina. Era bonito, forte, honesto, uma beleza. Até eu acabei me apaixonando por ele, e tão convincente foi minha fantasia, que não me surpreenderia se daqui a pouco me encontrasse com ele, em algum recanto da morte, ainda cheirando a algas e maresia.
Suportei todo tipo de humilhações e atropelos. Coisas do ofício, coisas da vida. Sem falar dos remorsos, da angústia, da solidão. Dignidade: que estranho sabor tem essa palavra, como tantas outras, deste lado da morte. Coisas sem sentido, palavras sem peso, vazias. Mas fazem parte da vida. Na vida elas pesam, são coisas imensas. Passei a maior parte da minha vida tentando não perder minha dignidade, segurando-a com todas as minhas forças no meio da tormenta. E, quando sentia que a tinha perdido, minha roseira a devolvia-me. Porque, em minha roseira, morava minha mãe, sempre otimista, sempre florida, sempre ao meu lado, me presenteando com o vermelho das suas pétalas, sem julgamentos nem acusações, e me mostrando que até no esterco podem nascer coisas belas.
Durante anos e anos economizei tudo o que pude, sem deixar de mandar os filhos para a escola e comprar livros e cadernos e lápis de cor e tudo o que eles pudessem precisar para se tornarem pessoas honestas, livres, felizes. Ingenuidade pensar que alguém pode ser realmente feliz. A infelicidade faz parte da vida tanto quanto a fome. Sacia-se durante um tempo, mas, em algum momento, há de voltar. Sempre falta alguma coisa, o homem é sempre incompleto. No caso deles, faltou o cuidado, uma intimidade mais profunda e estável. Como disse, é difícil ser puta e mãe. Mas, sobretudo, faltou um pai de verdade. O pai mítico usurpou meu lugar. Comparavam-me a ele e, ao lado do herói das mil qualidades, eu fazia uma lamentável figura: uma mãe ausente que trabalhava em horários esquisitos, levantava ao meio dia, conversava com as flores e andava triste e melancólica a maior parte do tempo.
Quando tive suficiente dinheiro para largar de vez o ofício e abrir uma pequena vendinha, sentindo que por fim minha consciência poderia descansar, meus filhos me recriminaram. Achavam espantoso e inaceitável que sua mãe se resignasse a viver das rendas de um mercadinho miserável. Não trabalhava para uma firma importante? Não virava as noites projetando campanhas publicitárias e outras coisas imprescindíveis?
Que estranha é a morte. Eu, que pensava que ela era paz e descanso, vejo agora que é tudo o contrário. Depois de tanto tempo cultivando minha solidão, aprendendo a viver sem remorsos nem rancores, deu-me agora de pensar nestas coisas. Meus filhos se foram, depois de formados, para viver suas vidas longe de mim. Realizei o sonho da minha mãe, mas os sonhos raramente são como os sonhamos. Todos terminaram a universidade e nunca pensaram em agradecer meus esforços. Ao contrário, sentiram-se alegres de poderem afastar-se de mim, livres do peso de uma mãe fracassada. Juliano foi para Brasília, Felipe para São Paulo, e tão ocupados estão com seus muitos negócios, que nunca tiveram tempo para visitar esta velha que vivia enfiada nesta casa sozinha, falando com uma roseira como uma louca. Só Teresina ficou na cidade, mas ela não gosta de sair daquela cobertura dela, e muito menos vir aqui, porque não tem garagem e não gosta de estacionar seu carro novo na rua.
Meus filhos… Aí estão eles, em pé, perto da minha cabeça, conversando. Não sabem que posso ouvi-los e por isso conversam descontraidamente de seus negócios, de suas viagens e de suas últimas compras, conservando apenas o olhar baixo e a voz taciturna, para o resguardo das aparências e benefício dos convidados.
Não quero mais estar aqui. Quero que fechem este caixão e me levem para o Campo Santo e me metam num buraco e acabem com todos os discursos e me cubram de terra, para poder dormir em silêncio e esquecer minha vida e minha morte. Esquecer sobretudo que em alguns dias minha roseira também estará morta, e então será como se eu nunca tivesse existido. Porque, agora que o penso, minha vida pode se reduzir a isso: uma roseira no meio de um deserto de fracassos e desencontros. Mas que impertinência querer que uma vida valha alguma coisa, que dela algo fique para uma suposta posteridade. E o que é a posteridade, afinal, senão um trem de esquecimento que nunca pára, ou que pára em momentos como este, para despejar os seus mortos com solenidade e seguir seu eterno caminho de indiferença?
Lá vêm eles, meus filhos e meus netos, se despedirem pela última vez. Chegou o carro da funerária, agora vão fechar o caixão. Chegou a hora. E minha roseira? Morrerá, enfim, de sede, seca e esquecida, cinza como o resto do mundo? Minha roseira, minha pobre roseira, que será do mundo sem tua beleza? Meus filhos me olham, meus netos também, mas ninguém se atreve a tocar-me, a beijar minha testa fria. Foi-se minha paz e minha alegria de morta. Um pesar doloroso esmaga-me agora.
Fecha-se o caixão e preparo-me para dormir, e tento não pensar nos pés que pisarão minha roseira. Como é escura a escuridão! As vozes da minha família se ouvem longínquas, afasta-se já o barulho do mundo. Mas, de repente, abre-se novamente o caixão e aí está Felipe, meu filho, dizendo: “Esperem um momento”. Meu Deus! Cortou minhas rosas! Matou minha roseira! E agora coloca-as no meu peito e fecha-se novamente o caixão.
domingo, 6 de julho de 2008
CANTINHO DO CONTO: A ROSEIRA
Alejandro Reyes
Ilustração: Bel Borba
Alejandro Reyes é mexicano e mora em Salvador desde 1995. pertence à nova geração de ficcionistas da Bahia. Publicou os seguintes livros de contos: Vidas de Rua (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1997); O Lacandón (Salvador: Bureau Gráfica e Editira, 1997) e Contos Mexicanos (Salvador: A Romana, 2004). Seu romance inédito A Rainha do Cine Roma, obteve menção honrosa no Prêmio Sesc de Romance 2003. desde 2004, encontra-se em Berkeley, onde concluiu mestrado em Estudos Latino-americanos, na Universidade da Califórnia, sobre a realidade dos meninos de rua. Atualmente faz doutorado em Literatura Latino-americana, na mesma universidade, sobre literatura marginal – Brasil e México.
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