Uma das obras mais estranhas e instigantes da literatura brasileira contemporânea, Trilogia da Maldição, de José Alcides Pinto, escritor cearense multifacetado, volta ao mercado editorial depois de anos de completo silêncio. Os livros que compõem a Trilogia – O Dragão, Os Verdes Abutres da Colina e João Pinto de Maria (Biografia de um louco) – foram publicados individualmente nas décadas de 60 e 70. São variações sobre a mesma história, mas que não seguem uma seqüência linear ou mesmo cronológica, daí o leitor poder optar em ler na ordem determinada pelo autor ou não.
O que une esses três livros é o espanto, e, sobretudo, a aldeia de Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito, uma espécie de Macondo situada nos confins do Ceará. O clima de pesadelo perpassa toda Trilogia, onde fatos disparatados acontecem a todo instante da maneira mais natural possível. Há, também, uma tensão narrativa que caminha para o delírio, para a loucura original. Lá encontramos padres irados com uma comunidade de morrinhas que vive a roubar bodes; um coronel dono de muitas terras e pai de toda aquela gente – como um patriarca bíblico –, e que deita com filhas e netas, seguindo apenas os preceitos das sagradas escrituras: “Crescei e multiplicai e enchei a terra”.
Alto dos Angicos é um lugar onde todas as pessoas, afora as que morrem de acidentes, vivem mais de um século, e só morrem aos pares; um lugar vigiado pelo diabo, os verdes abutres da colina, e que está na iminência do apocalipse. Esse é o universo de José Alcides Pinto, o poeta maldito do sertão do Acaraú.
O Dragão é a célula fundamental da saga de Alto dos Angicos, terra de origem do autor, onde se desenrola o processo romanesco que transforma o espaço histórico-geográfico da aldeia em espaço mítico, e o real passa a ser irreal e o natural, sobrenatural. Desenvolve-se em torno da figura do Padre Tibúrcio, um dos personagens principais dos três romances, que vai destrinchando a vida esquisita daquela povoação amaldiçoada.
Os Verdes Abutres da Colina conta a mesma lenda de O Dragão, perpassada por um aprofundamento que causa a inserção do leitor naquele mundo escatológico e mágico. É a história de Alto dos Angicos, fundada pelo coronel Antônio José Nunes, o garanhão luso. Embora viva um período de desenvolvimento no tempo dos aleatas e peripatas, a maldição continua a rondar o lugar. A sombra dos verdes abutres paira sobre a povoação, anunciando o inevitável: o fim dos tempos. Mas Alto dos Angicos parece fadada à eternidade, pois do nada, ou melhor, das cinzas, tal qual fênix, renasce, assim como a sua comunidade de seculares.
João Pinto de Maria, personagem titular do terceiro romance, é neto do garanhão luso. É homem que acredita no trabalho árduo e na honestidade, é um ser humano movido a trabalho. Sua religião é o trabalho. João Pinto viaja para o Amazonas. Ao voltar para Alto dos Angicos, compra todas as terras da região e passa a ser o homem mais poderoso. Mesmo com poder e prestígio continua na lida árdua. Nunca quis nada de ninguém, em contrapartida esperava que nada pedissem da sua fortuna. João Pinto de Maria vivia para juntar. E aí estava a sua loucura, mas uma loucura que caminhava para a santidade, pois pecava por desconhecer o que fosse pecado.
Autor de obra multiforme, José Alcides Pinto, poeta do escatológico e do surrealismo, comunga com Baudelaire, Lautréamont e Rimbaud. Na ficção, compartilha da forma de Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luis Borges e Júlio Cortazar, mestres latinos da literatura fantástica. Isso diz muito pouco sobre o autor de Trilogia da Maldição, apenas a leitura de sua obra é que pode esclarecer o seu gênio criador. Trilogia da Maldição é uma bênção dentro da literatura brasileira contemporânea. Deixar de ler a saga de Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito é que pode ser uma verdadeira maldição.
Resenha publicada no jornal Mercatto, em Salvador, em fevereiro de 2003.
Um comentário:
Meu caro Zé Inácio, gravo aqui meu lamento pela morte do Alcides Pinto. Sou releitor da Trilogia da Maldição, livro arretado e original. Fiquei emocionado com a poesia do AP, que desconhecia. Esta homenagem é mais que justa, e deveria ser ampliada muitas vezes. Meu abraço, (Carlos Barbosa)
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