segunda-feira, 20 de julho de 2009

CANTINHO DO CONTO: A MESMA DE TEMPOS ATRÁS

Renata Belmonte


Se você me perguntasse, responderia assim: cresci observando minha mãe colecionar vestidos para o grande dia, a data do retorno que nunca aconteceu. Às vezes, me escondia em seu quarto, apenas para tentar ser parte de seus delírios, cada roupa uma nova dramatização para o fim da longa espera. Vestir-se significava experimentar um pouco da felicidade projetada em seus sonhos. Quando morreu, tive dúvidas sobre qual deles ela deveria usar. Optei pelo que comprou por último, um longo rosa seco com leves bordados em prata. Imaginei que em seu enterro, ela talvez conseguisse o que tanto almejava. Ledo engano. Em cada palavra sentida, a ausência do único que importava. De preto, despi-me para sempre da esperança de qualquer aviso. E fiz a escolha pela nudez, transformando-a em profissão.
Apenas se você me perguntasse, eu responderia. Convivo bem com silêncios, com a falta de explicações. Fui menina criada em cantos, tranças feitas pelas empregadas, órfã de pai, intervalo incômodo da vida da mãe. Por isso, diariamente, sou abandonada e não me importo.
Eles chegam sorrindo, camisas impecavelmente passadas, são suas mulheres que os vestem para nossos encontros. Fazem da mesma forma com as crianças, quando as arrumam para as festinhas de aniversário dos colegas. É uma longa tradição. Crescem acostumados a mandar, exigir, dispensar. Presto atenção em seus rostos redondos, escorregadios. Não, não há qualquer vestígio de remorso ou culpa. No final, quando já estão satisfeitos, colocam o dinheiro em cima da cômoda e vão embora agradecendo, repetindo as mesmas palavras que diriam para qualquer vendedor de cigarros. Alguns, enquanto caminham, ainda olham para trás, têm esperança de compreender o que lhes falta. Outros preferem ignorar a existência de razões. Em nenhum caso, sinto-me magoada ou comovida. Não me cabe essa parte. Compreendo muito bem o papel que represento na vida das pessoas.
A amante. Nada mais ou menos que isso.
Confesso que sabia que voltaria a me procurar. Esta porta sempre esteve aberta. Muitos são os que passam ou passaram por ela. Seria estranho que logo você fosse a exceção, o vácuo da minha história. Guardo ainda, num álbum de aspecto infantil, aquela nossa fotografia. Aquela em que estamos abraçados e felizes. Quando não me sinto vigiada, gosto de revê-la. Um dia feliz, eternizado em um pedaço de papel. Às vezes, chego até a recriar as sensações daquele momento. No entanto, não pense que faço o mesmo que minha mãe. Já lhe disse, muitos são os que deitam e deitaram na minha cama.
Sim, durante esses anos, estive lhe aguardando. Porque a sua vinda, o nosso encontro era uma coisa natural, previsível.
Apenas isso. A amante.
Olhe para mim. Não sou a mesma de tempos atrás.
Convido-o para entrar.
Novamente, nós.
Você, sapato preto de cromo alemão, passos fortes, mesmo perfume daqueles tempos. Reconheço-o, de pronto, através dos sentidos menos festejados. Chegou a hora. Sou golpeada, estremeço por dentro, fico gelada, sinto medo. No entanto, não demonstro qualquer surpresa ou ansiedade. Não me permito esse tipo de atitude insensata. Minha mãe dizia que chegaria a época em que eu a compreenderia, saberia o que era amar e sofrer. Sim, tenho esse homem na minha frente, só que não lhe concedo tamanha liberdade, possuo um enorme respeito por mim. Estou numa camisola clara, sento-me à beira da cama. Duas taças de vinho nos esperam, na pequena mesa de sempre. Peço que me informe sobre suas fantasias e desejos mais secretos. Ignoro-o quando me pergunta sobre as minhas preferências. Levanto-me, acendo um cigarro e fumo de forma sensual, como faziam as mulheres elegantes de antigamente, as mesmas que sempre ameaçavam minha mãe, em seus devaneios mais angustiantes.
Ela sempre soube que eu seria assim. Desde criança, quando me escondia em vestidinhos cor-de-rosa e repreendia a minha maneira de falar, já tinha certeza de que eu pertenceria a outra categoria.
Brindamos. Nossos cálices se chocam, interagem. Três goles para jamais esquecer. Uma nova chance. Nossos corpos, finalmente, se aproximam. E não há mais nada, além da pequena distância existente entre nós.
Faz silêncio, no universo. Em pouco tempo, começará mais um espetáculo de amor, vida e destruição. De longe, sei que alguns rezam para que nada de mal ocorra. Julgam o que sentimos, condenam meu comportamento. Outros, sim, aqueles que já viveram isso, aguardam ansiosos o momento do encontro, desejam reviver seus sentimentos pretensamente acabados. Tenho consciência de que com minha mãe é diferente, ela está em posição única, híbrida, confusa, dramática. Receia que eu consiga realizar o que ela sempre quis. Meu amante está diante de mim, meus anos de espera não foram em vão. Consigo vê-la, ao nosso lado, parada, observando dividida, cada ato, cada segundo. Sei que não chora, seu desespero é mudo, como o das santas arrependidas que povoavam o altar de nossa velha casa. Imagino que tenha uma vela nas mãos, apesar de não haver clareza sobre no pedido. Encontra-se em posição única, híbrida, confusa, dramática. Não sabe ao certo o que é mais forte, o amor, a inveja, a dor, o desejo ou o medo. Prevê que não haverá final feliz, em nenhuma das hipóteses. Seu vestido é longo, rosa seco com leves bordados em prata. Está pronta. Gostaria que tudo tivesse sido diferente em sua vida. No entanto, não há mais espera, chegou a hora. A menina cresceu, ganhou seios do mesmo tamanho dos seus, tem seus olhos, são seus olhos que estão fixos nos de seu amante. Apenas lhe resta aguardar. E, de alguma forma, torcer. Porque, afinal de contas, ainda são uma família.
Ponho meus lábios à disposição dos seus. Abro minha boca lentamente. Nossas línguas se acham. Nos beijamos.
Passamos a reconhecer nossos corpos. Sim, não sou a mesma de tempos atrás.
As roupas como tapetes, as peles nuas, juntas, desejando ser apenas uma. Toda a minha vida eu esperei por esse dia. O retrato, eles sorrindo, abraçados e felizes. Sinto-me muito mais bela quando estou perto de você. Ele sobre ela, o toque, as carícias. Os beijos, as línguas em choque, o hálito a denunciar seu passado, leve sabor do vinho, a bebida dos amantes. Como num filme. O cheiro, o cheiro dele, de seu perfume, de sua pele, o perfume da pele, o cheiro da pele dela e dele, não há mais como distinguir, individualizar. Vamos, faça o que quiser, meu corpo lhe pertence. Jamais se deve dizer isso a um homem, ela sabe, mas, desta vez, não se importa. As partes, os olhos fechados, os sussurros, gemidos, a intensidade, força, a força dos longos anos de espera, o prazer. O que Deus uniu, ninguém separa.
Desde que nasci, já estava escrito. Minha mãe sempre previu que, um dia, isso iria acontecer.
Ouço os latidos dos cães, logo compreendo: transmitem a notícia pela noite. Estamos em silêncio, todas as palavras foram mortas. Você permanece inerte, parado, não pronuncia qualquer gesto de carinho. É esse deserto que me faz, subitamente, perceber o motivo de sua demora: nos encontramos em lados distintos da cama. Como em todas as nossas vidas, nas quais pertencemos a lados opostos do mundo.
Sofro, sofro, sofro. Nem o relógio se compadece. Insiste em me dizer, repetir que, em alguns minutos, você irá embora. Do mesmo jeito, da mesma maneira que fazem todos os outros.
Procure saber qualquer coisa sobre mim, como foram os meus anos, se sou feliz, se tive um cachorro, se me formei, como entrei para essa vida, qualquer coisa, o mínimo, qualquer coisa.
São os cães, em seus uivos noturnos, que me avisam, relembram: a amante. Nada mais ou menos que isso.
E apenas se você me perguntasse, eu responderia.
Enquanto se veste, passo a me lembrar de minha mãe experimentando seus vestidos, glória e decadência, em questão de minutos. Estamos no final do grande dia, da data do retorno. Não há mais dramatização para o fim da longa espera. Ela se encontra rente à cama, linda em seu vestido rosa seco com leves bordados em prata. Finalmente chegou a boa hora.
Sim, pai, agora, você vai nos pagar.
Você coloca a quantia acertada sobre a cômoda. Acompanho-o até a porta. Vejo ir, sem olhar para trás, meu primeiro amante, aquele que me privou de tanta coisa, aquele que fez com que minha mãe, eternamente, me culpasse pelo seu abandono.
Trouxe-o, de volta, mãe. Pare de me atormentar. Fique em paz. Descanse em paz.
Como não estou sendo mais vigiada, revejo a fotografia mais bonita que já vi. Um dia de sol, no parque. Nós, abraçados e felizes. Não tenho certeza. Caso seja realmente você, os anos lhe foram bastante violentos. Aliás, para todos nós.


Renata Belmonte é advogada e escritora. Publicou os livros de contos Femininamente (Casa de Palavras, Prêmio Braskem Arte e Cultura 2003), O que não pode ser (EPP, Prêmio Cultura e Arte Banco Capital 2006) e Vestígios da Senhorita B (PP5, Cartas 2009) e participou das antologias Outras moradas (EPP, 2007) e Antologia Sadomasoquista da Literatura Brasileira (Dix, 2008).

Um comentário:

Gabriel Carvalho disse...

bonito conto, gostei mais do que o de cima...

Escrita dançante a dela.