sábado, 31 de janeiro de 2009

CANTINHO DO CONTO: A PROVA FINAL

Carlos Ribeiro




Roberto tinha um defeito. Melhor dizendo: Roberto, segundo sua mulher, Marli, tinha um grande e único defeito. Era uma peculiaridade, um traço do caráter que, no início do relacionamento, há distantes 20 anos, parecera a ela uma virtude, mas que, com o passar do tempo, tornara-se algo exasperante. Para não dizer: algo verdadeiramente insuportável.
O grande problema, dizia Marli, era que Roberto, em nenhuma circunstância, se irritava. Nunca perdia a paciência. Jamais respondia às reclamações que ela, freqüentemente, lançava-lhe à cara. Em nenhum momento dirigia-lhe sequer uma palavra um pouco mais dura, com o mínimo tom de rispidez.
No início, Marli considerava isto uma vantagem especial, um presente dos céus. Principalmente naquele tempo em que viviam a fase dourada de descobertas e encantamentos. Não havia, ainda, grandes dívidas a saldar, problemas com filhos. Não havia a convivência diuturna, o dormir e acordar juntos, o esperar na porta do banheiro, as idiossincrasias mútuas, os desentendimentos cotidianos.
Marli considerava-se uma privilegiada. Roberto era uma recompensa à sua persistência. Fora a única filha dos Andrades, a casar, segundo achava-se na época, tardiamente, aos 28 anos. Mas valera a pena esperar. Ele era o exemplo mais bem acabado, que se possa imaginar, de um gentleman. Nunca esquecia de abrir a porta do carro, de puxar a cadeira no restaurante, de enviar-lhe flores e tantas outras delicadezas cotidianas, geralmente esquecidas no correr da vida em comum.
Assim procedeu, ano após ano, sem dar-se conta de que se acumulava, em Marli, como camadas de pó, nas paredes de uma caverna, uma certa apreensão, que, pouco a pouco, evoluía para uma impaciência, e daí para uma intolerância, manifestada nas mínimas coisas: no atraso, para ela insuportável, de alguns segundos, para um encontro; num sorriso, que considerava ridículo; numa frase, que achava inconveniente; numa palavra ou gesto qualquer, que precipitava, subitamente, para a surpresa dos que conviviam com o casal, um inferno de xingamentos, gritos e admoestações. E, finalmente, na conclusão fatal de que ela sabia, sim, o que ele queria. Suas verdadeiras intenções...
A revelação viera de chofre: Roberto queria fazê-la perder a razão. Percebera, finalmente, que havia algo mais por trás daqueles sorrisos, daquelas atitudes gentis – como um pântano oculto por trás de perfumados jardins. Lembrava-se sempre do que lhe dizia a avó: “Minha filha, não existem homens perfeitos”. Por isso, quanto mais perfeitos lhes parecessem, mais cuidado deveria ter. Mais necessário seria vigiar cada um dos seus passos. E assim procedeu. A partir daquele momento, cada gesto de Roberto passava a ser um sinal, vestígio de alguma coisa repulsiva, que se gestava, no silêncio das tardes, entre as sombras dos móveis na sala; mas que, mais cedo ou mais tarde, viria à tona, em toda a sua assombrosa monstruosidade. O perigo era iminente. Ela não podia perder o controle. Não podia ficar esperando que o pior finalmente acontecesse. Tinha que fazer alguma coisa. Se ele ainda reagisse às suas agressões! Se ainda mostrasse sua verdadeira face... poderia haver, quem sabe, uma chance de entendimento. Cabia a ela, num último e desesperado gesto de amor, mostrar quem ele realmente era.
E o fez. Foi numa morna sexta-feira, que ela o recebeu, carinhosamente, à porta da casa, quando ele chegou, à noite, do trabalho. Havia anos que não o beijava. Que não sorria o riso encantador, aquele que tanto o fascinara nos primeiros anos do relacionamento. Que não lhe preparava um jantar, na varanda, com a vista para o mar, da sua bela casa, em Ondina.
Roberto custou a acreditar. Então, acontecera o milagre? Comeu, sorridente, a macarronada, e a sobremesa de figos em calda, que ela mesma preparou. Falou das dificuldades no trabalho, mas também das chances que despontavam. Chegou a desenterrar os velhos planos. Quem sabe, no próximo ano, fariam, juntos, aquela viagem ao Oriente? – aquela que ele sempre dissera que faria, um dia, antes de morrer?
Roberto falou, contou casos, riu e fez-lhe seguidas declarações de amor, até perceber que havia algo estranho em Marli – na forma como ela sorria, no jeito fixo de olhar para ele, na maneira distante como reagiu, quando ele falou sobre a sensação desagradável que, subitamente, lhe acometia; a dor no estômago, as palpitações, o suor frio, os pedidos para que chamasse a empregada (mas ela estava de folga, naquela noite), o médico...
Mas, já não havia tempo. Ao compreender, finalmente, o que se passava, Roberto pensou, pela primeira vez, em dizer uma palavra ríspida à sua linda e querida mulher. Chegou a sentir o impulso, tantos anos reprimido, de agredi-la, de fazê-la ver o seu desespero. Mas conteve-se a tempo. Sentiu apenas uma dor aguda, no coração, ao perceber que não poderia mais protegê-la de si mesma.
Marli permaneceu, silenciosa, diante dele, testemunhando a agonia lenta do homem que um dia amou – esperando, inutilmente, a prova final de que ele ainda a amava, a palavra dura, o gesto violento que enfim o redimisse.


Carlos Ribeiro (Salvador – 1958). Jornalista, ficcionista e doutorando em literatura pela Universidade Federal da Bahia, é autor de sete livros, dentre os quais O Chamado da Noite, O Visitante Noturno, Abismo e Lunaris. Participa das antologias e coletâneas Geração 90: Manuscritos de computador, Contos cruéis, Antologia panorâmica do conto baiano - século XX, Quartas histórias, Capitu mandou flores: Contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte e Travessias singulares: pais e filhos. Co-edita a revista de arte, crítica e literatura Iararana. É membro da Academia de Letras da Bahia e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB/Cachoeira. O conto "A prova final" faz parte do livro inédito Contos de sexta-feira, que tem publicação prevista para este ano.

Um comentário:

Anônimo disse...

Fabuloso.
Achei interessante ele não mencionar nada dos "sentimentos reprimidos" do marido até aquele momento. Fica ali, nos sofrimentos silenciosos do homem, aquela segunda história de que você tanto fala, Inácio.