sábado, 10 de janeiro de 2009

SINGULARIDADE DE UM POETA MARCADO PELO HUMANISMO

AS INVENÇÕES

A vasta e variada obra de Gerardo Mello Mourão compõe uma das mais elevadas contribuições para a literatura contemporânea e consegue alcançar dimensões universais, como é de se esperar de toda alta escritura. Escreveu, com brilhantismo e erudição, em verso e em prosa (romances, contos, ensaios e biografias). Entre seus livros, destacam-se o romance O Valete de Espadas (1960), o livro de ensaios A Invenção do Saber (1983), a epopéia Invenção do Mar (1997) e a trilogia poética Os Peãs, composta pelos livros O País dos Mourões (1964), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977).

O Valete de Espadas, traduzido para vários idiomas, é um romance que está na pauta do surrealismo, mas em quase nada se assemelha ao realismo mágico latino. Sua profundidade, seus abismos indecifráveis, aproximam Gerardo de autores centro-europeus, como o Herman Hesse de O lobo da Estepe. O personagem principal, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, é um ser perplexo diante da irresidência do ser no mundo. Um dia, ao sair do hotel em que estava hospedado, percebe que está em uma cidade completamente desconhecida; no dia seguinte, acorda em um navio cujo rumo também desconhece. A epígrafe bíblica, logo no início do livro, adequa-se perfeitamente ao estado de coisas e às tensões da personagem: “Não conheço sequer o caminho”.

A Invenção do Saber, reunião de ensaios, é um convite ao pensamento. É também um libelo contra a idolatria tecnológica da atualidade e o seu culto da especialização – “o especialista é o individuo que sabe cada vez mais sobre cada vez menos”. E apresenta como contraposição uma cultura humanística, que, no momento, encontra-se desprestigiada, mesmo por aqueles a quem caberia defendê-la. Inclui, além de 30 artigos originariamente publicados na imprensa, palestras apresentadas em universidades brasileiras e estrangeiras, que abordam temas como a palavra, o poder e o saber.


A epopéia Invenção do Mar, Prêmio Jabuti de 1998, é considerada pelo crítico Wilson Martins como Os Lusíadas brasileiro, que o chama mesmo de Os Brasíliadas, em artigo publicado no jornal Gazeta de Curitiba.

De fato, Mello Mourão, por outros caminhos e de outras formas, alcança o sopro criador de um Camões, aliás, faceta essa que já havia logrado com Os Peãs. Ezra Pound percebeu na trilogia Os Peãs, iniciada com O País dos Mourões, que Gerardo tinha inaugurado o canto da genealogia da América. E esta é uma velha ambição cosmogônica: fazer, não a genealogia pessoal, mas a genealogia do seu povo, do seu mundo.
Passear pela seara da obra de Gerardo Mello Mourão é sentir o “aroma, maciez e música” de uma poesia maior. Nenhum outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e qualidade, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua obra. Somente os literatos de ouvidos cegos, que não conseguem alcançar o ritmo da sua poética poliédrica, é que não percebem a sua grandiosidade.
O próprio Drummond declarou-se “possuído de violenta admiração pelo imenso, dramático e vigoroso painel” da poesia de Gerardo, pois sabia do opus magnífico do bardo de Ipueiras que, “atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal da poesia”. Mello Mourão não cabe em moldes nem em escolas literárias. É singular. E vem construindo, solitário, a saga do povo brasileiro.

José Inácio Vieira de Melo


IAM CAINDO


Iam caindo: à esquerda e à direita iam caindo;
Alexandre e Francisco, meus bisavós tombaram,
o primeiro com sua farda de gala, seus botões de ouro e sua patente de coronel
e o outro com sua barba nunca mais alisada e sua bengala de castão de ouro.

Antes, caíam hierárquicos e cronológicos:
Manuel Martins Chaves na prisão do Limoeiro,
Ana, Eufrosina e Úrsula Mourão, da Canabrava dos Mourões, em suas camarinhas cheias de santos,
Antônio, com seus bordados de general nos campos do Paraguai,
um picado de cobra, outro sangrado a punhal, outro varado à bala, outro de maleita,
à esquerda e à direita foram todos caindo,
primeiro os que já eram lenda na memória dos velhos
depois os avós de meus avós,
porque antes tombavam hierárquicos e cronológicos.

Foi assim que tombou, ao lado de seu rifle, o Coronel José de Barros Mello, chamado "O Cascavel", meu tetravô,
e depois o Major Galdino, entre seu bacamarte e suas gaiolas de pássaros, depois,
meu outro avô, o capitão de cenho espesso sobre a tribo
ao talhe de seu tronco frondejando
a cabeça de Mellos e Mourões.

A esquerda e à direita iam tombando,
Úrsula, Francisca e tantas outras,
até cair meu pai.

Depois, começou a romper-se a ordenação da morte
e tombavam os tios e as crianças:
Etelberto, com seus negros cabelos lisos,
Raimundo prometera devolver à terra o que da terra houvera e tombou nela;
Elisa, Elvina e tu,
com teus oito anos e tua cabeça castanha;
tombaram um por um: Ignácia e Ladislau viveram cem anos e também morreram;
tombou Quintino e nunca mais
pela estrada de Águas Belas alazão levará
coronel tão galante e nunca mais na lua
da sela clavinote
tão certeiro;
tombou Quintino e antes dele porque
a morte ia deixando de ser hierárquica e cronológica
tombou no Maranhão Francisco apunhalado.

À direita e à esquerda iam caindo:
Hermenegildo, chefe político e farmacêutico no distrito do Livramento, ainda teve forças para se erguer, beber uma garrafa de aguardente, destruir a farmácia e escrever ao meu avô: "Compadre, vou morrer, os remédios não valem nada quando chega a hora; mando-lhe aquele relógio Patek que você aprecia e a corrente do mesmo, com dois patacões de ouro. Adeus, compadre, Deus o guarde com os seus,
do primo
ass, Hermenegildo".

Outros tombaram sem carta e sem notícia: meu tio e padrinho Antônio Ribeiro deu uma surra no capitão delegado de Polícia e desde a queda do Acioly
desapareceu para sempre,
como Raimundo Mourão, tombado a tiros num seringal do Amazonas: tinha sessenta contos no bolso, surrara todos os barraqueiros e ganhara
num sete de ouros
o dinheiro e as mulheres do cabaret:
pois morreu, com sua chibata na mão, com seus sessenta contos e com suas mulheres,
macho e inquebrável tombou.

À esquerda e à direita iam caindo:
Manuel
Mourão que registrara em seu nome todas as terras do cartório de Ipueiras,
dorme nelas:
Tobias
não tinha terra nenhuma
e matava bois no açougue e vivia disso,
tombou como um de seus bois;
à esquerda e à direita iam caindo
homens e mulheres: Tabajara, pai de Araci, Potiguara e Tupinambá,
fabricava aguardente e não bebia - morreu abstêmio, mas morreu;
o Major Borete Mourão, da Canabrava dos Mourões, destilava a sua no próprio fígado - morreu bêbado, mas morreu;
e Dondon e Cotinha e Missanta Mourão, senhora do Engenho Baixa Verde
e Gilberto e Toínho Mourão e as primas que morriam de parto e pariam filhos também destinados a cair um dia,
foram caindo todos, à esquerda e à direita.
E agora sei: não apenas os de meu sangue iam caindo, pois onde estão José Bento e Sinhá e o Coronel Dédo Catunda?
Onde está o caboclo Antônio Pixuna, com suas mandíbulas que varavam no dente uma cana caiana?
Foram caindo todos: à direita e à esquerda e em todas as cidades
Deolindo assassinado por Chico Monte em Sobral,
o velho Duíno em Minas Gerais, onde
também tombaram outros, Vicente
e sua mulher e Fernando no Espírito Santo e em Porto Alegre,
com a pensão que lhe dera o Governo, a filha de Antônio, general e herói da guerra do Paraguai,
comprava a sepultura, pois
sabia que ia tombar, como tombou:
e em toda parte e em todo tempo, todos,
Bela, Manrica, Sinsa, Torquato, Zezé, Nazária, Aprígio e Waldomiro,
Ignácio e Mariana e Atanagildo,
à esquerda e à direita iam caindo.

E ainda os que encontrei noutros caminhos também foram tombando:
esta é a bengala do Coronel Carvalhinho, pai do Senador e avô de Léa: tombou sem ela e Geraldino
apagou seus grandes olhos e o jovem
sacerdote barroco
Caetano
partiu-se
o grande Cristo de bronze se abatendo sobre
a jarra de porcelana azul
outrora azul do altar.

E tu mesma caíste, eu que te havia por
endereço do coração (e ainda
cantarei de ti, que agora tenho apenas o espanto da implacável derrubada
em que todos vão tombando em toda parte).

Em minha casa, em minha rua e na cidade e no país dos Mourões onde eram clavinotes
e nos outros países além dos mares,
o velho Nicolau, pai de Gofredo,
quem sabe Cuca, a tia de Raul,
e em Milão e em Berlim e na Provença
foram caindo.

Apalpa, meu amor, meu rosto apalpa,
não tombei:
sou eu.
Como venho dos mortos nem eu sei,
mas sei que na partilha me tocou
a herança de sobreviver;
vou devorando a terra com meus olhos
que a terra não comeu, a terra
que comeu tantos olhos e da qual
os meus hoje se nutrem.

Apalpa, meu amor, meu corpo inteiro,
sou macho e forte e em meus ombros de touro
porque não te levar na madrugada
e atravessar contigo as ruas desertas e as ruínas e as cidades
cobertas de hera onde
à esquerda e à direita eles tombaram e à beira
de um riacho ver teu ventre
crescer e irem surgindo
já de mãos dadas, já de pés em dança
rapazes e raparigas e a cantiga
de roda e a flauta de Mársyas e o ritmo
de tornozelos e ancas que Sextus Propertius foi o primeiro a introduzir na Itália e trouxe da Grécia para a Itália e Ezra para Idaho e das ruínas das cidades ver surgirem os pastos e os pastores da pedra das palavras?

Teu poeta e teu macho te carrega nos ombros
e à esquerda e à direita onde tombavam antes,
como um mágico de uma cartola irei tirando
de teu ventre inesgotável
os que não mais cairão, os que se irão
à esquerda e à direita incorporando. Pois
apenas esperavas a chegada de teu macho;
diz agora: era assim que o querias,
o vencedor da morte, o que enrijou os músculos
almoçando e jantando
a medula dos homens e das fêmeas
que à sua esquerda e à sua direita iam caindo,
era assim que o querias o que venceu a Dor?

Sou eu, amor, apalpa agora
minha boca pronta ao riso alegre,
minhas bochechas, apalpa-me
o sexo frondoso e fértil
e escancha as tuas pernas sobre o meu pescoço:
é tempo.

"Aos oito dias do mês de Janeiro do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil e novecentos e dezessete, eu, Manuel Guilhermino Moreira, recebi em meu cartório o Senhor Capitão José Ribeiro Mello que, acompanhado das testemunhas abaixo, declarou o nascimento hoje, a uma hora da madrugada, em sua casa, à Rua Padre Feitosa, nesta Vila de Ipueiras, de seu neto, o Inocente Gerardo Majella, do sexo masculino", etc.

E aqui restei: não venho
introduzir a dança na Itália,
trazer a dança da Grécia para a Itália
ou para qualquer outra terra de Europa:
sou o inocente do sexo masculino e venho
do país dos Mourões
comunicar-te a inocência e o pênis
erguido em lírio
vertical e puro sob os céus da Etrúria,
sob os céus da Toscana, às margens do Arno e junto
de Fiesole e San Minniato, sobre
os campos de Florença como o lírio
que deu nome à cidade e com que o rei de França agraciou
as armas da cidade.

Ao pênis de ouro que se erguer do lírio,
a rosa de teu ventre se abrirá,
e onde o touro pisar no chão dorido,
a rosa de teu ventre se abrirá,
e onde o lombo do touro se reclinar contigo,
a rosa de teu ventre se abrirá
ao pênis de ouro que se erguer do lírio
e der nome às cidades e agraciar
as armas das cidades.

Wovon kommen Sie?
Jawohl, Fräulein,
na noite em que eu chegar
hás de ver tua aldeia renana
acender nas alcovas a alfazema antiga.
Wovon kommen Sie?
Mas da alfazema e tua aldeia
me suspeita há séculos:
esperava por mim a rapariga
que acendia os olhos e a lanterna de ferro
sobre o portal da Hospedaria
"Ao Cavaleiro de Koenigswinter":
eu era sugerido às raparigas
esperando a noite e quanta vez
sonharam distinguir-me na lonjura
entre as tulipas e o trigo e as espumas do Reno e luar dele
sugerido
o süddeutsche Nacht!
o Heidelberge Nacht!
quem sabe eu chegaria a bordo de urna brisa,
de uma folha de outono, moreno
e torneado ao sopro
daquele tocador de flauta de louça
à porta do castelo de Brühl.

É certo que outros tentaram chegar antes de mim,
mas não me confundiste com eles;
de outros — nem os conheceste nem te conheceram,
o velho gangster não montava um cavalo do Texas:
na garupa da cadeira de rodas grunhiu:
"nossa fronteira está no Reno";
Beethoven surdo em sua casa de Bonngasse
ergueu-se e ergueu
ao ouvido sagrado o corno acústico
e o uivo do bárbaro não era
nem seu nome será em nosso idílio.
O nome dele, sim;
veio de Hailey, Idaho, U.S.A.,
a 30 de outubro de 1885
e em seus ombros, amada, partirias:
era belo demais e foste tu
que rendida a seus pés deste a garupa
e o raptado raptor — ó delícias de Cápua —
divino gigolô lambendo os seios
da deusa ao fim do outono,
nas mãos do Pan de Idaho
reencontra o verão ao céu toscano,
Rapallo azul e a primavera à voz
do Pan de Idaho:
e o que te pudera arrastar às ilhas puras
embala-se contigo en los Cantares
dolci canti pisani in blood and blue
e a minha rede, a rede
do filho dos Mourões
entre a torre de Pisa e a de Giotto
sopro de campanile se balança
il nostro Cavazere fú:
e ali virás para a última sesta latina e onde
o lombo do touro galopar contigo
a rosa de teu ventre se abrirá
ao pênis de ouro que se erguer do lírio
e der nome às cidades e agraciar
as armas das cidades.

O Abendland, Abendländische
Elegie!
Velho profeta alemão, vidente de olhos cinzentas,
teus olhos cinza em cinza desmanchados,
toldam de cinza a paisagem:
olha a nua banhista, esverdeadas peras,
olho a dança, olha
o elegíaco nada, o nada
de elegias e à madrugada
entre as virilhas olha
amanhecer o macho:
sou eu e em meu louvor
maduram-se laranjas e ananazes,
em meu louvor
as ondas bailam no oceano e sob
a verde umbrela dos coqueiros
Passo de Carnaragibe,
os cocos se arredondam
em meu louvor
e os cantadores na feira de São Gonçalo dos Mourões,
da Canabrava dos Mourões
e os cegos e os videntes e o gitano andaluz
entre o Atlântico e a montanha
empreendem na viola
a minha louvação:
e Hans Carossa, na aldeia hamburguesa,
o último hálito sopra dos olhos a última cinza,
compõe no próprio rosto a própria morte
em meu louvor.

E meus olhos
assíduos a defuntos como a vivos
começam a apalpar-vos:
quem será testemunha senão vós
de partida e chegada?
E que sou eu senão
a celebração de meu rosto
e que é meu rosto senão
a beleza que o amor talhara nalguns olhos?

Sempre os deuses precisam de um lugar e de uma companhia:
assim eu sou:
é sobre a terra de meu pai que me levanto agora
e a tantos
que à esquerda e à direita lhe caíram,
eu os chamo e suplico:
e altar e coro se incorporem
e assim
eu sou:
celebrado celebro dia e noite
a terra e as águas e as pessoas
e assim
E U S O U.


GERARDO MELLO MOURÃO

Um comentário:

Anônimo disse...

Zé Inácio, é impressionante o fôlego épico de Gerardo. E mais impressionante ainda é o lirismo que há nessa genealogia tribal do vate de Ipueiras. Parabéns por nos presentear com a poesia desse gigante da poesia universal.

Albérico Moreira