sábado, 2 de agosto de 2008

RITA SANTANA - AZUL


AZUL


Sou de uma tristeza surda, funda.
Ando cansada das pernas,
Pois o meu amor brincou de picula,
E o sonho gargalhou migalhas nas toalhas de rosto,
Nas marcas pintadas do meu rosto,
Nas tralhas velhas da minha fotografia.

Ando azul porque não me reconheço gente.
Sou o próprio azul, simples, etéreo, incorpóreo,
Dos maios, dos setembros foscos de tanto sol,
De tanta ardência, dos poetas mais plácidos.
Azul dos palácios encantados, azul das moscas azuis,
Das estrias recobertas por cremes de milagres,
Azul da minha saudade-não-sei, de tanta coisa ida.
Tantas promessas me prometi,
Foram tantos os protestos advérbios,
Tantos esticamentos de veias,
Numa garganta de cobre fundido em ouro dos mais puros.

Estou em apuros porque sobrevivi até mais tarde,
Mas carrego mortes que desconheço porque sou pobre:
Deixei de estudar filosofia,
Deixei de fazer poesia,
Deixei de ir ao encontro do sol.
Perdi a maria-fumaça da minha infância,
Pra uma indústria de cacau.
Perdi os leões de mármore da minha infância,
Pras chácaras dos coronéis.
Perdi minha alegria
Pra essa incompetência diante da vida.

Não sei tratar dos amigos.
Sei tratar alguns peixes, mas dos homens não sei.
Suas escamas crespas,
Vísceras rubras demais pra minha paciência dilatada.
São flamas demais entre nós, os amigos.
Perdi e encontrei terezas, jorges, tonhos, miguéis, primos,
Aluguéis, janelas, gudes, bordados, assovios, cartas de amor,
Fraudes descartáveis, autorias duvidosas, alarmes, amores...

Perdi também palavras raras, livros,
Sonetos, versos de adolescer,
Pus, espúrios párias, pipas, chances,
Galhos secos ofertados à ilusão,
Sangue, suores, caldos de gozos raros,
Disparos de olhares que não vi,
Envelopes, vozes, madrinha, ruas, pessoas,
Esperanças, alianças, presentes,
Crianças, avós - todos os avós já perdidos - analices e luzias.
Faço qualquer coisa pra resolver
A inapetência diante da praticidade dos futurosos,
Dos que já deram certo, dos corretos, dos sem dores,
Dos bem-sucedidos, dos resolvidos, simplórios,
Dos que têm dor de dente
Mas não sabem o que é dor de alma.

Pois tenho urgência é de alegria, mansidão.
Sou um azul, azulzinho escuro, claro,
Azul céu, azul serpente, azul maçã,
Azul molho-de-tomate-elefante,
Azul clarinho, quase branco, azul amianto, azul-ami,
Azul trinta, azul balzaquiana louca, azul mulher, azul negra,
Azul esquisita, azul Rita, azul Dione, azul sul-da-Bahia,
Azul alegria, azul saudade,
Azul idade de envelhecer vez por todas,
Azul sem roupa, azul peruca, azucrinada, que nada!
Azul Ferreira Gullar, azul minha boceta cor-de-rosa,
Azul cerveja, azulilás, aliás, azul pirraça.


RITA SANTANA

3 comentários:

Kátia Torres disse...

Um dos melhores poemas que li, ultimamente. Parabéns!

Anônimo disse...

Um dos melhores poemas que li, ultimamente... bjs.

Dom Jorge disse...

Verdadeiro monumento, embora um único verso tenha me quebrado o sentimento de síntese.