"Meu cavalo e eu - Centauro do Sertão" - JIVM
O lirismo de José Inácio Vieira de Melo atinge-nos em nosso âmago, justamente por ser uma lírica atenta ao que o homem tem de mais fundo, mais intenso. Pungente, sem deixar de ser leve; existencial, sem abandonar a alegria viva, a poesia de José Inácio é bíblica, sacra, pois revela em nosso cotidiano um pergaminho de epifanias. Com efeito, há nesse lirismo, preciso e cortante, feito apenas de palavras necessárias, aquele vislumbrar em perpétuo encanto, tão característico das crianças e dos loucos. E é por comungar com esse olhar “auroral” da infância, dos delirantes, que a sua palavra desvela o mágico, o mítico, no chão batido do cotidiano. Há versos do poeta que são verdadeiro choque elétrico e nos cativa, emociona, com a precisão dos prestidigitadores; versos lapidares, nascidos já perfeitos, pois irrompem daquele “coração selvagem” joyciano, do inconsciente coletivo a nos desvelar no eterno mesmo, no velho a se renovar infinitamente, para sempre: “Para quem está no breu/ qualquer lampejo é alumbramento”, “Somente os olhos dizem/ o que as palavras sonham”, “a despedida é a véspera do encontro”, “os mitos vestem o meu nome”. Versos que já nascem como epígrafes da própria vida.
O encantamento da linguagem, a flamejante “alquimia do verbo” de Rimbaud, seduz-nos já no título do livro (e que título belo!) e em poemas dignos de serem antologiados entre os melhores feitos em nosso atual cenário literário. Esse é o caso do poema que recebe o mesmo título do livro:
Eu venho do caos primordial.
Percorri as searas da escuridão
(caminhos que não sei).
Desse tempo sem memória
nasce a consciência dos dias
(como não sei, invento).
Fantasma de barro,
preciso de um amálgama
e que teus olhos me afirmem.
Sou um centauro escarlate
e galopar na infância
é a minha metafísica.
Na poesia de Inácio o mítico desnuda a vida, abre possibilidades de existência capazes de dar um fundamento ontológico ao homem, esse mesmo homem, órfão, da pós-modernidade, massacrado pela tecnologia, pelas máquinas, pelo consumo. Nesse sentido, o mítico surge como fonte de existência, alimento de alma a nos humanizar, a nos trazer um gosto de sacralidade, de vivacidade. Por isso é bom lembrar as palavras de Gusdorf “o mito tem por função [...] justamente tornar possível a vida. É assim que ele dá um embasamento às sociedades humanas permitindo-lhes que durem.” Lembrando o sempre importante recado de Alfredo Bosi: poesia é resistência à reificação e, se assim é, a poesia de Inácio resiste aos nossos tempos de barbárie, permitindo a permanência da nossa sociedade. Poesia-esperança, poesia-louvor, poesia-vida, eis o que encontramos em A infância do Centauro. Eis o que encontramos nesse belíssimo poema, ponto alto de sua obra:
RIBEIRA DO TRAIPU
Ainda sinto o entardecer na Ribeira do Traipu,
ainda sinto a terra arada e fecundada pelos grãos de milho.
E, amanhã, quando chover, o verde fervilhará,
e sentirei o sabor das baixadas do Traipu
na espiga de milho assada na fogueira de São João,
na centelha azul da minha infância, na brasa dessa lembrança.
Na brasa da minha mão sinto a tarde queimando,
traduzindo mistérios em matizes rubros,
lá na Ribeira do Traipu, onde ficou aquele menino,
no meio do tempo, olhando pros quatro cantos,
sem entender nada, buscando voltar para onde não sabia.
Trago dentro o menino perdido nos beiços das estradas,
acocorado na beirada do Traipu, em época de enchente,
esperando um não sei quê passar, talvez um papagaio cego,
nos destroços do que foi uma mesa, a anunciar o caminho de casa.
Afirma Bahchelard “sempre sonhar será mais que viver”. É justamente por viver na nudez dos sonhos, por incendiá-los com o lume vivo da infância, que José Inácio nos brinda com a surpresa sempre nascente da poesia.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GUSDORF, Georges. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio, 1980.
MELO, José Inácio Vieira de. A infância do Centauro. São Paulo: Escrituras, 2007.
Alexandre Bonafim nasceu em Belo Horizonte. Atualmente mora em Franca, interior de São Paulo. É poeta, ensaísta e professor de literatura brasileira. Publicou os livros Biografia do deserto (2006) e A outra margem do tempo (2008).
2 comentários:
Alexandre Bonafim vai na essência da poesia de JIVM. Diz o que ela é: "Pungente, sem deixar de ser leve; existencial, sem abandonar a alegria viva, a poesia de José Inácio é bíblica, sacra, pois revela em nosso cotidiano um pergaminho de epifanias". Belíssimo! Parabéns!
faço coro as palavras de Jeovah, beleza e lirismo em supra sintonia!!
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