Do silêncio, de lá é que surge a palavra de José Inácio Vieira de Melo. Como o vazio que toma conta dos viajantes, o silêncio invadiu a alma do poeta quando em fecundação, ainda na construção do seu primeiro livro. O que torna a poesia de José Inácio tão forte e incisiva é o fato de que ele compreende, desde cedo, o que compõe a gênese de qualquer escritor: o seu próprio silêncio, componente que revela a inquietude dos que refletem sobre si e sobre o mundo. Porém, mais que calar-se, o que o forma é a capacidade de transformar o silêncio em símbolo. Por isso é que ele se inaugura (Códigos do Silêncio, 2000) com uma poesia que revela toda a sua capacidade de codificar os próprios segredos.
O que mais tem falado em mim é o silêncio,
mas um silêncio plural – de fogo –
que com sua língua escarlate abrasa as palavras
e as queima antes de serem.
(...)
O silêncio, este que fala e de que tanto falo,
é um hieroglífico poema,
e estes versos: tradução e codificação.
Depois da descoberta dos signos de seu sigilo, continuou a escrever. E se misturou às vozes de outros seres, deixou que usassem sua garganta para o ecoar de outros versos: versos patativos, cabralinos, bíblicos. Foi assim que gerou e pariu Decifração de Abismos (2002) e A terceira Romaria (2005).
Agora, o poeta já está no seu quarto livro: A Infância do Centauro (São Paulo: Escrituras Editora, 2007). Nos dois últimos capítulos dessa publicação, incluiu cinco poemas do seu primeiro livro, quinze do segundo e vinte do terceiro. Aliás, ele já havia feito algo semelhante em A terceira Romaria. Parece que faz questão de mostrar como tem sido sua trajetória.
Vieira de Melo nunca foi um formalista, nunca se prendeu a esta ou aquela corrente literária, nem tem dado, até o momento, mostras de que pretende fazer isso. Embora não esconda sua predileção pelos versos livres, também não se deixou levar pelos pseudo-vanguardistas que macaqueiam caricaturalmente as rupturas propostas na década de 20, evidentemente ultrapassadas. Assim não tem medo de arriscar-se, com “Romaria”, em redondilhas típicas da tradição poética do sertanejo: “O caminho que percorro / não é o da Rosa dos Ventos, / pois ele surge do nada, / de acordo com o momento”.
Aí é que se percebe a maturidade e o equilíbrio de um escritor que reconhece a poesia atual como a reunião de toda a história literária, um poeta que não se guia por extremismos. O seu constante caminhar tem sido guiado, como ele mesmo afirma nos versos acima, pelas curvas e espantos que encontra em sua vereda de aprendizagem. Mantém, entretanto, uma invejável coerência em seus quatro livros, superando-se em cada um deles.
Leitor assíduo, visita os jardins da poesia, dos mandacarus e das algarobeiras, colhendo aqui e ali o pólen da inspiração. Porém não deixa de se alimentar fortemente daquilo que foi a sua infância, a sua gente, sua história e formação. José Inácio é, esteja onde estiver, o catingueiro, o vaqueiro, o aboiador dos desertos e dos labirintos sertanejos. O tempo inteiro está no seu nascimento em Olho d’Água do Pai Mané, na infância em Palmeira dos Índios, na adolescência da Bahia, em Maracás. O vaqueiro, que leva em si, o persegue e o constrói. Em “Marcação”, tange na memória todo o gado de sua história; marca a si mesmo com o ferro eterno da poesia.
Um matuto sem eira nem beira,
labutando com palavras,
vaquejando boiadas de signos
por caatingas labirínticas
numa peleja sem-fim.
Invoca o gado invisível
numa toada aflita,
e grafa com pena e tinta
aquilo que a poesia marca,
a ferro e fogo, em sua alma.
O sertão e o sertanejo são uma constante em sua obra. O centauro de que tanto fala nada mais é do que o vaqueiro e o seu cavalo fundidos num único e harmonioso ser. No prefácio de Decifração de Abismos, já era elogiado por essa ligação tão forte que tem com suas origens. “Se alguém quiser ser universal”, escreveu Ruy Espinheira Filho, parafraseando Tolstoi, “que escreva sobre sua aldeia”. Ruy ainda acrescenta naquela introdução que, mais que sobre sua aldeia, JIVM escreve com as emoções oriundas de lá.
Mas há algo mais a ser dito sobre essa última publicação. Percebemos, pelo menos, duas características que devem ser consideradas em A infância do Centauro, por se tratar de traços distintivos em relação aos outros três livros. A primeira é a entrada, com maior freqüência, de poemas curtos, poemas de dois ou três versos como “Pureza” e “A Interrogação de Moisés” e, até mesmo, com um único verso, como é o caso de “Quarto da bagunça”: “Eu não sei nem por onde começar...”
A outra peculiaridade que merece alusão é o aprofundamento em questões metafísicas e espirituais. Esse não foi um acontecimento súbito, pois se trata de uma característica já observada desde Códigos do Silêncio. Contudo, os questionamentos filosóficos ganham força a cada publicação e, como já era de se esperar, mais do que nunca o poeta busca a si dentro do sertão de si mesmo e do universo: “Eu preciso de um espelho: / olhar no fundo dos olhos / e ver bem dentro de mim: / quero beijar minha sombra // (...) Sou a criação de Deus: / barro que sonha odisséias. / Em minha íris o Cosmo”.
E o que esperar de um poeta em constante edificação? Que rumo levará a escritura desse centauro das plagas sertanejas? Embora as coisas vindouras tenham a dúvida por essência, a coerência de José Inácio Vieira de Melo nos permite arriscar que os sertões continuarão a rondar os seus textos, que o mergulho filosófico ficará cada vez mais intenso e que este concriz continuará fazendo aquilo que talvez seja o papel do poeta contemporâneo: “Quebrar todo e qualquer cabresto, / romper a barreira da forma, / caminhar para além da palavra”.
Vitor Nascimento Sá é poeta e professor de Literatura. É um dos criadores e dirigentes do Grupo Concriz (http://grupoconcriz.blogspot.com), equipe de poetas e recitadores da cidade de Maracás, na Bahia.
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