sábado, 3 de maio de 2008

OS ABISMOS VARRIDOS PELO VENTO NORDESTE

Maria da Conceição Paranhos


Decifração de abismos revela-se um título de rara adequação para o novo livro de José Inácio Vieira de Melo, pois este é um poeta de face ansiosamente debruçada sobre os assuntos humanos, seja no domínio dos sentidos, seja nos territórios do espírito.
O filósofo tentaria descobrir o nexo das coisas humanas a partir de uma lógica causal, ou descrevê-las de modo fragmentário, como fazem alguns pensadores, a exemplo de Friedrich Nietzsche. O poeta, o poema como modelo do pensamento fragmentário, chega a uma visão daquilo que o Romantismo alemão de 1789 chamaria de progressive Universalpoesie. A definição de literatura feita por F. Schlegel, no seu celebrado fragmento 116 (Athenäum Fragment, 1789) vê a poesia como um processo inclusivo, o qual “ewig nur werden, nie vollendet sein kann” (só pode ser [um perpétuo] tornar-se, nunca completado à perfeição), pois sua demanda é de uma idéia que permita seu acontecer.
Esse jovem poeta dá sua contribuição a esse processar-se da poesia como um todo. Em seu livro, a experiência do abismo, conforme sua natureza intrínseca, corresponde à experiência do eu poético em proveito de dar forma aos conteúdos, mobilizando o leitor em favor de uma reconfiguração imaginária e simbólica do mundo. O questionamento dos dilemas humanos, em Decifração de abismos como em outros poetas dessa vertente, permite ao olhar do sujeito da experiência / ao poeta emergir para a periferia da leitura – na medida em que o leitor se percebe exercendo sua própria experiência de abismo. Então, este irá não só revivenciar essa experiência, mas ver, inclusive, aquilo que escapa à consciência do eu poético, do momento em que o corpo verbal passa a ocupar o lugar do objeto de desejo do outro, leitor. Assim, no desenrolar-se da leitura, a experiência do abismo é, simultaneamente, revivenciada, percebida e acrescida de dados do universo vivencial do próprio leitor que busca as significações contidas naquele corpo desejante, o texto poético.
A convivência com o amor, a morte, a solidão, a busca da própria identidade – temas universais da poesia – é invadida, na poesia desse poeta alagoano, pela “cor local” , como a viu a historiografia crítica da literatura brasileira, referindo-se à incorporação de elementos da paisagem nativa às formas – inclusive as formas poéticas – herdadas da tradição ocidental.
No caso da poesia de José Inácio serão os elementos e motivos do nordeste brasileiro, mais especificamente os de sua terra natal que se farão presentes, em especial aqueles desenterrados do tesouro da infância pela rememoração. Uma bela realização dessa tendência é o poema “Jardim das algarobeiras” (p. 44), que se situa na terceira parte do livro e a nomeia. Leiamos um pouco:

[...]
os pássaros cantam, e o seu vôo é mais que o canto;
a vaca muge, o cavalo relincha, a rã coaxa,
a cartilha estava certa; a cartilha só não
ensinou que o galo inaugura o dia,
e que as árvores (aqui, as algarobeiras,
mais que quaisquer outras – a não ser
aquele solitário pau-ferro) dançam,
dançam envolvidas por um louco dançarino.

[...]

Mas além disso há algo mais forte:
os caminhos... O vento é andarilho errante
que se apaixona pela flor de agora
e daqui a pouco pela flor seguinte
e a outra e a outra e,
é aquele capaz de uma noite de volúpia
com quem lhe abrir o coração,
porém seu coração jamais pertencerá a alguém
porque já nasceu possuído pela estrada.


Num modo descritivo, esse poema não se rende a uma primeira leitura. Aparentemente, vai destacando elementos da natureza circundante, enfatizando a presença da algarobeira naquela ambiência, e, gradativamente, chegaremos a perceber que a referência, na verdade, aponta para o próprio agir poético metaforizado na figura do vento. É ele, o poeta, o ser viajante, inquieto, “possuído pela estrada”, cujo coração pertence à vida ela mesma, e o modo como a vivencia é pela experiência da poesia. Outro traço digno de destaque aqui, pois comparece em várias das composições de José Inácio, é a enumeração assindética, como se lê no segundo verso do trecho citado. Esse traço, marca de seu estilo, irá ser usado em benefício da sua poemática. Veja-se, por exemplo, “A sagração do pecado” (p. 63) e “Anunciação” (p. 59) – este, um dos poemas mais bem realizados do livro como um todo. Nesse poema, o motivo da reminiscência da infância invade o tecido poético.
Aqui, e no livro como um todo, a infância se mostra com o mágico poder de alimentar o homem adulto, revelando o eu poético carregado de uma energia que se deixa ver, inclusive, na escolha de verbos de ação, aliados a complementos e adjuntos de uma área semântica com a mesma base comum – o movimento – cujo resultado se reverte em favor da visão do poeta como um ser capaz de mudar a face das coisas em sua “lerdice postedênica” como expressou um imenso poeta conterrâneo de José Inácio, Jorge Mateus de Lima (1893-1953), nascido em União dos Palmares, Alagoas.
Observe-se que, a despeito da evidente influência da escola poética que se deixa ver em João Cabral de Melo Neto, José Inácio vulnerabiliza-se à poderosa articulação verbal do autor de Invenção de Orfeu (1952). Não havia como ser diferente, fosse mesmo para negar, já que essa é a tradição de onde provém. No poema antes comentado, para citar apenas este, “Jardim das algarobeiras”, é a face submersa de Orfeu, do “Orfeu virgíneo” de Jorge de Lima, quem dita os versos.
Claro está que quando se fala de influência, em termos de Literatura Comparada, o que se faz é apontar as “famílias” ou “linhagens” eleitas pelo poeta no seu percurso criador. Observe-se que, como o próprio Jorge de Lima, José Inácio enfrenta corajosamente os desafios da tradição retórica (signo que nos marcou, poetas brasileiros, desde o berço), o que resulta em ineludíveis marcas neobarrocas em seu texto, mérito antes que demérito, segundo uma certa visão de fórmulas poéticas quereria.
Ao se apontar essas características como constantes em José Inácio, pretende-se mostrar algumas, dentre várias outras, que comparecem em sua ars poetica. Esse é um poeta de leitura extensa e continuada, percebe-se. É que ele busca formas e fôrmas diversas, numa abertura a várias espécies e modalidades, traço marcante em sua poesia desde Códigos do silêncio (2000) – seu primeiro livro publicado – quer nos poemas curtos, nos poemas longos quer nos poemas de forma fixa, como o soneto – o qual exercita com afinco, com ótimos resultados, como se lê em “Ave” (p. 70) e “Ladainha corporal” (p. 69), entre outras realizações.

Um corpo exangue prostrado ao sol,
o estômago esparramado no chão
tal qual bofes de cordeiro imolado
– e o lobo lambe os beiços.

O sangue jorra incessante a clamar justiça,
e o céu azul, tão-somente azul
sob os olhos do mês de setembro
– e o lobo lambe os beiços.

O que pode um corpo tombado
no desembesto de um dia qualquer?
O que pode essa forma inerte?

O que podem as goelas do lobo?
O que pode um lombo pisado?
Uma ferida aberta, o que pode?
(“Ladainha corporal”, p. 69).
Verifique-se a tendência à hipérbole, ao nível lexical, na escolha de vocábulos com o traço de animalidade; as perguntas retóricas; a mística barroca do sangue, meio a outras características desse tipo de estilo.
O comentário e a crítica da poesia não se fazem de generalizações apressadas, sabemos. A poesia ela mesma, em seu movimento erótico (Eros é o deus mais presente na poesia), se constrói com o detalhe, o particular, o contingente, ao modo próprio de cada poeta.
Os traços acima indicados caracterizam o verdadeiro poeta, distante em tudo do arranjador de palavras, ou metros e rimas se os houver, buscando construções de efeito. Diga-se de passagem: poetas (?) assim não sobrevivem à sua morte. Mesmo porque, quando não mais estiverem presentes, para articularem contatos no mundo da literatura, suas produções serão esquecidas. O trabalho do escritor não deixa espaço para encontros e tráficos de influências. A chamada “vida literária”, a qual se pode freqüentar quando o labor permite, com moderação e lucidez, é inimiga do poeta quando se torna uma preocupação constante em sua vida.
Após essa breve digressão, regressemos a José Inácio, poeta que se volta para a poesia com determinação e a trabalha incessantemente, querendo-se herdeiro de uma tradição a qual visita e investiga. Todavia, a marca de uma personalidade poética já emerge de seu texto, a despeito de sua juventude cronológica.
Buscar e buscar, eis aí José Inácio, o poeta, no gesto reiterado de reter o agora, o momento que passa – traço próprio à poesia lírica – captado também por meio do debruçamento no sonho.

Sonhei um poema feito de pedras,
pedras fluindo, fosse rio sereno,
de todos os tamanhos e matizes,
e eram duma beleza precisa:
roupa e linguagem de pedras.

Imerso no poema-pedra-rio,
o poeta – a pedra – a lapidar.
O que se via não era a pedra,
mas a poesia por dentro, além.
(“Canto de pedra”, p. 23).

José Inácio percebe muito bem que a linguagem – e dentro desta, sua língua natal – é um sintoma de fenômeno que a transcende: a atividade poética como um todo, incluído, naturalmente, o estágio pré-lingüístico. Por outro lado, é esse sintoma a marca diferencial, a prova-dos-nove do poeta, na medida em que mais adestra sua perícia de exprimir a vida com palavras, no mundo inelutavelmente histórico, feito de uma multidão de vozes e experiências, as quais capta e materializa com sua língua nativa. Observe-se que a intimidade do poeta com sua língua de berço torna-se a mais estreita possível, cada vez mais profunda à proporção que exerce sua função, escrevendo.
Nas cinco partes em que Decifração de abismos se divide, a preocupação dominante, por conseqüência, é a de auscultar a vida em sua força atordoante e situá-la no leito do poema. Aquela força, por vezes, fulmina o poeta e o lança num transe místico face à realidade experienciada.

[...]
tudo é o mesmo:
a esmo, o imenso ermo,

além da fúria de viver,
o meu peito palpita desesperado,
e a angústia não me deixa ver mais nada
– é o único e sempre acorde:
a dor que não se mede.
(“Assombro”, p. 71).

Aliada a essa vivenciação mística da realidade, surge como sombra pertinaz, no livro, o fantasma do destino, numa premonição agônica do futuro, como o poema-título encarna de modo extremado (“Decifração de abismos”, p. 67).
A par disso, percorre o texto a energia que rege uma orquestração de várias vozes, muita vez enraizada na experiência da terra natal. Se o leitor meditar sobre o poema “Ave”, um soneto, como antes indicado, perceberá uma poderosa atmosfera de religiosidade, numa cena da Sexta-Feira da Paixão, matizada ao estilo particular de José Inácio, que inova o tratamento do tema desenvolvido nos catorze versos. Esse poema ressoa, todo ele, em vozes e sons e em ruídos. Veja-se o 1° terceto:

O chocalho dos deuses anuncia ave:
hora das trancas, bulício de chaves,
e o menino deseja o leite santo.
(“Ave”, p. 70).

A musicalidade dos versos de José Inácio atravessa sua poemática como marca diferencial de estilo, aliás, como se lê no já referido poema “Anunciação”, ao lado de outros de valor semelhante, como “Invocação” (p. 57) e deste de agora, “Epitáfio para Guinevere”:

Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.
Não mais invadirei o vento montado no teu galope.

Que fique inscrito na tua lápide
o verso de lágrimas dos meus cavalos.

Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,
o relinchar da paixão pagã
dos cavalos que trago dentro de mim.
(p. 62).

Como não trazer à mente alguns dos poemas de Jorge de Lima – seja do Livro de sonetos, seja da Invenção, em que as figuras da égua e da vaca, relacionadas ao eterno feminino, comparecem para nos emocionar e encher nosso espírito de beleza?

Na atmosfera modal de Decifração de abismos como um todo, há uma tendência aspectual para o Subjuntivo ou para outros tempos “desejantes”, como o Futuro do Pretérito, mesmo quando apresentado por outros tempos do modo Indicativo. Em “A sagração do pecado” (p. 63), pode-se observar esse traço. O sintagma “eu quero”, reiterativo, comparece em cinco das seis estrofes do poema, cada vez para exprimir um desejo não cumprido no tempo e que chega ao final como doloroso apelo. Outro exemplo será o poema “Sentido” (p. 68), no qual a construção se inicia com uma modalidade aparentemente descritiva, enquanto subjazem à estrutura de superfície as impossibilidades.

Os homens vinham e havia um caminho.
Continuavam, e o prumo os esperava,
e eles seguiam acreditando nisso:
sempre rumar – sempre sempre sempre.

Os homens nunca chegavam a algum lugar,
mas iam eternamente em busca de,
pois não queriam nem suportariam
entender a verdade do lugar nenhum.

É também de desejo, expressado por meio da repetição, que se faz o poema “Ladainha corporal” (p. 69), em que as seqüências interrogativas, repetidas, deixam o sentido suspenso pelo recurso da pergunta. Pode-se afirmar que a pergunta retórica, como traço estilístico, é forte indício do movimento desejante do poeta. O mais das vezes o desejo é o de conferir sentido às palavras correntes na linguagem da sociedade de uso em que temos o infortúnio de sobreviver.
Mas o poeta quer viver, com sua ação renovadora. Em José Inácio, uma aragem fresca percorre o livro – mais que brisa, vento e Vento Nordeste, a varrer o pó da linguagem tributária.


Ilustrações: Ramiro Bernabó

Maria da Conceição Paranhos é poeta, contista e ensaísta. Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia. Ph.D. pela Universidade da Califórnia, Berkeley.

Ensaio publicado no jornal A Tarde Cultural, em Salvador - BA, em 21 de setembro de 2002.

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