sábado, 10 de maio de 2008

CANTINHO DO CONTO: O CANTO DE ALVORADA

Aleilton Fonseca


O dia já clareava, com os avisos dos pássaros. A hora certa do canto de Alvorada. Era um belo galo, senhor absoluto da primeira hora da manhã. O nome era um batismo de fé num futuro de glórias. Alvorada, desde frangote, já dominava o terreiro: distribuía bicadas nas canelas dos galinhos que ousassem desafiá-lo. Mestre Ambrósio, anos a fio a criar galos de raça, saberia a hora certa de fazê-lo descer à rinha para brigar. Criador experiente, em cada ninhada escolhia o filhote que daria um lutador imbatível durante várias temporadas. Muita fama, algum dinheiro, sensação e certeza de que a rinha continuava firme, apesar da recente proibição. Na cidadezinha, um lugar sem outros atrativos, muitos gostavam das rinhas, nos finais de semana. Era a única diversão de peões, feirantes, pedreiros, vendeiros e até de algumas pessoas influentes, que ajudavam a manter a rinha funcionando.
Mestre Ambrósio confiava no futuro de Alvorada. Aquele galo, sim, o melhor de todos. Ia ser, com certeza. Na hora certa, quando estivesse preparado, com esporões em riste, entraria na arena para estraçalhar. Com apostas de favorito, transformaria em pinto qualquer um dos valentões calejados de pelejas e vitórias. Os freqüentadores da rinha acompanhavam o crescimento do galo, admiravam-se da dedicação do tratador e de sua fé na força do animal. Alvorada já era famoso na praça, antes mesmo de iniciar sua carreira de glórias. Era conhecido dos maiores apostadores, que já viviam na expectativa de assistir a sua grande estréia. Alguns arriscavam uma proposta pelo futuro campeão, ouvindo todos a mesma resposta firme do treinador:
— Este galo eu não vendo por dinheiro nenhum.
O galo já valia uma fortuna. Promessa certa de grande desempenho. Os apostadores queriam vê-lo em ação, mas mestre Ambrósio não tinha um qualquer de pressa. Já adulto, o animal estava forte e arisco, não encontrava páreo nas lutas de treinamento. Do alto de seu canto, agitava as asas com firmeza e harmonia, riscava o chão, marcando seu território, absoluto no terreiro. Galos experientes, com vitórias contadas, apanhavam, baixavam a crista diante das bicadas e dos esporões do futuro campeão. Mestre Ambrósio sorria satisfeito. Tinha certeza, já previa os lances das melhores brigas no meio da rinha. Alvorada faria estrago, invencível anos e anos. Ia ser, mas na hora certa. Por enquanto, esperassem.
Ambrósio sabia: era preciso ter calma e calcular o momento certo da estréia. Uma coisa era o terreiro, calmo e arejado. Outra coisa era a rinha, o círculo apertado, o barulho da platéia, a pressão dos olhares. Alvorada tinha força de brigão, mas ainda não estava pronto: faltava muito pouco.
O criador tinha uma afeição diferente por esta ave. Era o resultado de muitos cruzamentos de galos de raça com as fêmeas mais ariscas. Desde que deitara aqueles ovos de casca áspera, mais dura que o normal, tivera a intuição de que um deles daria um macho dos melhores já produzidos no seu terreiro. Acompanhou o choco passo a passo, cuidou para que a galinha não demorasse de voltar ao ninho, para que os ovos não esfriassem nem gorassem. As semanas se passavam; agia ali a natureza, com seu ciclo perfeito. O futuro galo de briga ia-se gestando.
Quando os ovos começaram a se romper, um deles exigiu bicadas mais fortes do filhote. Ele veio à luz, estreou um pio repetido, forte, meio esganiçado, desde já imponente. Era um bom sinal. Certeza de canto firme e asas poderosas. Por coincidência ou cuidado, Ambrósio estava por perto e ajudou a alargar a saída, afastando as cascas com a unha. Riu satisfeito ao receber a primeira bicada do filhote em seu dedo. Ali estava, talvez, o animal tão esperado.
Mestre Ambrósio tocava há tempos o negócio da criação de aves de raça. Mas o que o empolgava mesmo eram os galos de briga, paixão herdada do velho pai. Nas tardes de sábado, a rinha era como um estádio. Os aficionados chegavam de vários pontos da cidade, com seus animais de estimação super bem-tratados, transportados em tipóias típicas, bordadas por suas mulheres ou encomendadas às costureiras das vizinhanças. Eram interessantes essas peças, com suas abas, com alças semelhantes às de sacolas de tecido, um bojo onde se colocava o corpo do animal e com dois furos paralelos, por onde passavam as pernas que iam pensas, pelas ruas, ou em guidões de bicicletas.
A rinha fazia parte da tradição do lugar, funcionava ali há mais de cinqüenta anos. Um grupo de trabalhadores do interior de Sergipe ali se estabelecera, trazendo a novidade. O finado mestre Jorge, pai de Ambrósio, trouxera da terra natal, junto aos patrícios, os primeiros galos de raça e de briga, com a idéia e o sonho de tocar uma rinha. Começou com a cara e a coragem, devagar, com dedicação e vontade. O negócio foi prosperando aos poucos, com a criação e a venda de aves de raça. Mestre Jorge foi desenvolvendo seu tino de treinador, ganhou a experiência de preparar os frangotes para a luta. Os bichos, uma vez adultos, bem nutridos com milho e ração preparada em casa, tornavam-se pequenos gladiadores de pena.
A rinha era um templo: espaço de consagração e decepção, entre vitórias e derrotas. Ali começava ou acabava a fama de um galo de briga e de seu dono ou tratador. Tal como uma praça de touros, a rinha se desenhava enquanto palco de vida e morte. Os animais se enfrentavam com uma fúria silenciosa, olho no olho, crista a crista, a bicadas e golpes de esporões afiados. O sangue e as penas, num ruflar de asas ariscas, cristas dilaceradas, os pescoços arrepiados. As batalhas levavam horas e se transformavam em tema de discussões, dias e dias. Nas paredes, algumas fotos antigas, outras mais recentes, os assentos de madeira em volta, como uma pequena galeria de circo. Era uma arena trágica para os galos, o deleite dos amantes do estranho esporte.
O galo que perdia o combate cambaleava até cair. Moribundo, ia para os tratos com ervas e ungüentos que pudessem recuperá-lo aos poucos, se agüentasse. Curado, poderia mais tarde retornar à rinha para as grandes revanches. Porém, se morresse em combate, ia direto para a chamada panelada de sábado, degustada pelos participantes do esporte, regada a cerveja. Já os vencedores cresciam no conceito de todos. Seu dono amealhava considerações. As apostas subiam cada vez mais. O animal pegava valor no preço, como subia o valor de um canário que cantasse melhor após a primeira muda de penas.
O tempo glorioso de Mestre Jorge passou. O velho tratador não resistiu à decepção de ver o seu melhor galo, pelo qual chegara a enjeitar uma oferta alta em dinheiro vivo, perder uma luta e morrer na rinha. Trovão caiu feio, sangrado por um franguinho de primeira luta. Um golpe de sorte, um puro acaso. O velho Jorge entendeu o pressentimento que tivera naquele dia. Não tivera tempo de fazer a simpatia especial que dava mais força ao galo. Subestimara o inimigo, e Trovão morreu. O tratador, chateado demais, quebrou as regras: não deixou que levassem Trovão à panelada daquele sábado. Enterrou o galo no terreiro, como um ente querido, ao lado de seu saudoso cachorro perdigueiro. Depois disso, o velho Jorge perdeu a graça, ficou triste e desanimado. Não preparou nenhum outro galo de briga. Morreu com essa tristeza, sem jeito que se desse.
Mestre Ambrósio herdou o lugar do pai. Desde menino já acompanhava o velho, ajudava no trato diário das aves, aprendia a profissão por vivência e entusiasmo. E agora, experiente e afamado, sabia que cada galo tem a hora certa de subir ao ringue, encarar o inimigo de frente, sem cacarejar. Havia lá uns segredos que guardava para si mesmo, algo como uma superstição, que ele empregava. Quando preparava um galo para briga, tratava-o de maneira especial. Deixava-o a sós com as galinhas, dono do terreiro, por três dias. O galo ali se sentia senhor absoluto, sem rival que lhe disputasse as fêmeas. Horas antes da luta, o mestre recolhia a ave, prendia-a num abrigo ali mesmo no terreiro, e soltava outro macho em meio às galinhas. O lutador, privado de seus privilégios, e vendo o rival livre para desfrutar de suas fêmeas, ficava inquieto, riscava o chão com as esporas, cacarejava alto, inconformado. Dali saía para a rinha certamente com muita raiva acumulada. E descontava no adversário, com toda fúria, castigando-o a bicadas certeiras, com esporões vingativos. Depois da luta, o galo treinado por mestre Ambrósio regalava-se de volta ao convívio com suas fêmeas. Esse era o segredo a sete chaves que tornava mestre Ambrósio um treinador respeitado, já que vencer seus galos era um desafio quase impossível. E nisso também se apostava, quando e quem o venceria. A fama corria, vinham tratadores de outras cidades, e mais de longe, adversários cada vez mais qualificados. Galo de Ambrósio era invencível, até que um dia se provasse o contrário.
Muitos queriam ver Alvorada lutar. Alguns para admirar os lances de perícia adquirida nos treinos, outros com sede de ver o tratador derrotado.
— Está com medo de botar o galo na rinha, compadre?
A provocação irritava mestre Ambrósio. Por que tinham tanta vontade de derrotá-lo, se ele preparava galos para todos, se proporcionava espetáculos que valiam pelas apostas e pelas diversões? Ora, talvez por isso mesmo. Tudo fazia parte da mesma festa. A sede de pequenas crueldades permeava aquele esporte esquisito. Uma delas era o gosto de ver o favorito perder a briga, pela emoção da surpresa e do desafio. Degustar a carne de um favorito, inesperadamente derrotado, era talvez mais saboroso. Mestre Ambrósio se preocupava com isso. Mas estava certo de que não iam conseguir derrotá-lo. Alvorada estava pronto para brigar bonito, de igual para igual, com o melhor galo que aparecesse. Com a velha simpatia que pai lhe ensinara deixaria o galo enfezado e feroz, capaz de derrotar o qualquer que o desafiasse. Mas, e se não fosse um dia bom? E se Alvorada perdesse a briga, como acontecera com Trovão há tantos anos? Este era o receio do tratador, pelo amor que sentia pelo galo, um verdadeiro animal de estimação.
— Como é, vai ou não vai botar o galo na rinha? Ou está com medo?
— Vou, claro que vou. Vocês vão ver.
Espalharam o boato de que Alvorada subiria à rinha na próxima jornada de lutas. As apostas foram se multiplicando, nas rodas de conversas, nas praças, nas feiras. Era clima de festa esperada, sem volta. Mestre Ambrósio, de surpreso com a notícia, se viu enredado, que não podia recuar. Mas o treinador se perguntava se o galo estava mesmo pronto. E não havia jeito de adiar a estréia no sábado. As apostas cresciam, a notícia da luta se espalhava entre os interessados, corria até nas cidades vizinhas. Alvorada havia de subir à rinha sem falta, sob pena de provocar pilhérias, descrédito, desmoralização. E isso Ambrósio não podia tolerar. O galo estava bem treinado, forte, em forma. Certamente estava pronto para a briga. Mas isso garantia que iria vencer? No terreiro, o tratador observava a ave, que ciscava despreocupado, soberano. Ora, Alvorada venceria qualquer peleja.
No sábado a rinha estava apinhada, entre conversas e animação, na torcida pelos galos, nas brigas preliminares. Os homens se acomodavam como era possível, na casa lotada, com visitantes de fora, alguns estranhos, com seus galos a tiracolo, gente de outras bandas. Chegava a hora de se definir o adversário de Alvorada, pela escolha da platéia, ou pelo desafio da maior oferta em aposta. O desafiante firmava o valor da aposta que oferecia, como uma espécie de leilão da luta. Entre os desafiantes, dentre os da cidade, apenas dois fizeram um desafio, porém sem convicção de que pudessem vencer. Naquelas circunstâncias, seria honroso desafiar o galo de Mestre Ambrósio, ainda que para dali ver sua própria mascote ir direto para a panelada de sábado.
Na hora de firmar o desafio, surgiu, da última fila, a voz de um visitante. Era um homem moreno, estatura média, cabelos grisalhos e bigode ralo. Nunca fora visto antes por ali. Trazia um galo à mão, numa tipóia bem bordada, o bicho de olhos vivos, piscando sem parar, como se nervoso com o barulho do ambiente, de prontidão para a luta. Com voz pausada, o homem fez, em desafio, uma aposta dez vezes maior que qualquer outra oferta já cantada naquela rinha. E diante dos olhares surpresos e silenciosos dos presentes, o desafiante se apresentou.
— Sou Manuel Ramos, venho de Estância, cidade de seu pai. Sou filho de um velho compadre de Seu Jorge. Eu também trato de galos de briga; aprendi com meu pai . Eu soube de sua fama, resolvi vir para o desafio. Este aqui é o melhor galo que já tive na vida. Venho cuidando para que seja um vencedor. Estréia hoje para valer, igual a seu galo. Vamos ver quem é melhor.
Mestre Ambrósio coçou a nuca, acariciou a crista de Alvorada na tipóia vermelha, com frisos brancos. Pensou um pouco. Não havia mais jeito. O desafio estava posto de forma irrecusável. Era confrontar Alvorada contra o galo do visitante, que aparentava ser um treinador experiente, firme e confiante. Era um lance arriscado, mas não podia recusar.
— Muito prazer, seu Manuel. Aceito a aposta – disse, com certa preocupação, diante do vozerio geral.
Na hora da luta, cada tratador fazia os preparativos finais para o combate. Acertavam os esporões de metal nas patas dos bichos. Massageavam as asas e o pescoço, apertavam o bico abrindo e fechando algumas vezes, faziam gestos de avançar com a mão sobre a ave para apurar os seus reflexos. Diante da expectativa da platéia, inquieta, em conversas e comentários animados, era hora de se iniciar o combate. Como um ritual, os galos eram apresentados à platéia, seguros pelas asas pelos treinadores, em lados contrários da arena de luta. Assim alçados, ao sinal de uma contagem de um até três, soltavam-se as aves na arena mortal.
Os dois galos logo se encararam, arrepiando penas do pescoço e das asas, cabeças em riste, olhos adrenalinos. Reconheciam-se já em disputa pelo mesmo espaço, correram para o centro da rinha, em franco combate. Era a sorte lançada. Um balé de gestos agressivos, numa coreografia de volteios, saltos, golpes, espera, avanços e recuos, diante da gritaria animada dos torcedores em volta. Dois galos bem treinados, uma briga com lances espetaculares, como poucas vistas por ali.
Eu, narrador futuro, me espremia num canto, mais atrás, firme na ponta dos pés para ver os lances da briga. Sorrateiro, bem quieto, com medo de ser posto para fora, pois proibiam meninos naquele lugar. Mas o dia era de total atenção ao centro da rinha, ou, pelo simples, toleravam minha presença discreta. A cada bicada, a cor avermelhando-se nas cristas e pescoços dos galos, isso me deixava preso no misto de angústia, pena, expectativa, sem saber para que ave torcer, com medo de ver uma delas, cada qual tão bonita, cair derrotada na rinha, entregue ao abate, direto para a panela.
Em meio àquela gritaria, as aves guerreavam, em gestos acirrados, mostrando os efeitos de treinamentos requintados. Manuel, nervoso e arisco, gritava para seu galo desafiante: — Vamos, Veloz! – revelando o sugestivo nome do combatente. Mestre Ambrósio permanecia calado, concentrava-se em estudar, nos lances dos animais, qual era a tendência da luta. Embora calado, notava-se uma aflição no seu cenho enrugado. Ele sabia quando uma briga era das mais ferozes, daquelas que deixava um galo morto e outro bastante estragado. E essa era uma briga das mais perigosas. Ele avaliava o esforço das aves, sentia pelos saltos e golpes de Veloz que Manuel era um excelente treinador.
Ia a luta se desenrolando, de parte a parte, os bichos se atacavam, se revezam em golpes mais fortes. Veloz era melhor nos saltos, quando suspendia o esporão de forma perigosa para Alvorada. Ia acertando-o na coxa, sempre arriscando encaixar um golpe certeiro, talvez mortal. Esses golpes repetidos serviam para minar a resistência do inimigo pouco a pouco, deixando-o sem forças para saltar, para avançar. Com tempo, ia se cansando, ferido na base, acabava se entregando aos golpes fatais do adversário. Alvorada era mais forte, atacava com mais consistência e às vezes acuava Veloz num ponto da rinha, de um lado ou do outro. Havia equilíbrio, a luta mostrava-se empatada, sem vantagem clara para uma das aves.
Nas brigas de galo acertava-se, por acordo, um intervalo. Servia para descansar um pouco os lutadores, quando se julgava a luta empatada. O treinador podia ajustar as esporas dos bichos, limpar os pescoços sanguinolentos, massagear o peito, refrescar com um curioso banho. O treinador enchia a boca de água gelada, segurava a ave diante de si, na altura do seu rosto e borrifava, soprando o líquido da boca no corpo da ave, daí massageando o peito e as coxas para aliviar as dores e a tensão. Alguns acariciavam seus galos, até beijando-lhes o pescoço como incentivo à luta. Mas cada treinador só podia pedir um intervalo de cada vez, e se o outro concordasse. Só tinha direito a novo pedido, depois que o adversário usasse o mesmo direito.
A briga empolgava a platéia. Os galos não decepcionavam. Alvorada distribuía toda a sorte de golpes, conforme seus treinos mais requintados. Veloz, no entanto, era um galo surpreendente, forte, bem treinado, ou mesmo o que se diz: — um galo bom de briga! Um páreo duro para mestre Ambrósio. Os bichos seguiam em saltos, bicadas, negaceios de asas, olho no olho, procurando acertar um ao outro com os esporões em riste. Um balé de golpes e saltos, desenhando ziguezagues na arena, uma coreografia que deixava respingos de sangue pelas cabeceiras do ringue, no revestimento de um tecido rústico com enchimento acolchoado. A platéia admirava-se da disposição das aves na briga. Os mais empolgados faziam novas apostas. Alvorada e Veloz recebiam novas cotações. A torcida quase que dividida, uns até apostando num improvável empate, se ambos restassem vivos, mas esgotados, sem forças para lutar. Seria uma pena se um daqueles magníficos galos viesse a morrer, numa carreira de luta tão curta, mal iniciada. Podiam dar espetáculos contra inimigos mais fracos, fazendo o delírio dos torcedores.
Este narrador espichava o pescoço, procurava acompanhar a dança de golpes pelo tablado, prognosticando o fim das duas aves. Parecia-me que ambas estavam prestes a cair mortas, mutuamente vencidas, causando um silêncio de pena. Seria um castigo para todos aqueles homens.
A briga continuava e Veloz agora parecia estar em vantagem, acertando mais bicadas do que levava. Alvorada lutava, mas sempre recuando, com saltos cada vez mais baixos, sem alcançar vantagem contra o inimigo. Manuel, satisfeito com o desempenho de sua mascote, observava de esguelha, verificando o ânimo de mestre Ambrósio, se ele entregava os pontos. Mas a regra era clara, se o tratador entregasse os pontos, o galo perdedor saía desacreditado, jamais voltava a lutar na rinha. E Alvorada não merecia tamanha desonra, já que, em desvantagem, bastante machucado, lutava sem medo contra a fúria de Veloz. Mestre Ambrósio, observador experiente de quantas lutas, sentia que os golpes de seu galo atingiam o inimigo, mas não faziam um bom efeito. E viu que, pela posição que Veloz adotava, os esporões de Alvorada não o alcançavam em cheio. Restavam forças para reagir, mas os golpes não surtiam efeito. Assim, a sua derrota era uma questão de tempo, suas forças iam-se minando, o cansaço ia-lhe abatendo. Só um intervalo poderia reverter a situação, corrigindo-se o ângulo das esporas de metal. Era preciso fazer algo: uma parada, um borrifo de água gelada, uma massagem no peito, algo que salvasse Alvorada da derrota. Mas era nítido que Veloz estava vencendo e Manuel não consentiria em parar a luta. Confiante, enfrentava o olhar nervoso de mestre Ambrósio, diante da gritaria da platéia, que sentia a proximidade de uma definição na luta, uns apreensivos pelos valores apostados, outros comemorando a vitória iminente.
Os gritos se chocavam: Veloz! Veloz! Alvorada! Alvorada! O galo de mestre Ambrósio cambaleou pela primeira vez, junto à borda almofadada da rinha. Mas seguia lutando, aplicando os golpes de esporão, mas sem atingir o alvo em cheio. Nesse momento, o tratador sentiu perto o perigo de perder sua ave predileta. Pensou em fazer algo, pedir uma pausa, sair da luta, salvar Alvorada. Mas não tinha coragem de ceder, pois sentia que o galo queria lutar, espanando as asas, perdendo penas, o sangue escorrendo da crista. Eram lances fortes, bicadas firmes, esporeadas no ar, cortes nas coxas dos gladiadores de penas, ambos sangrando, bicos abertos de cansaço, penas espalhadas pelo chão. A platéia, quase em delírio, seguia gritando a cada lance mais espetacular, aos gritos: “Vai! Aí! Bica! Vai! Sangra! Mata!”. Era a expectativa de um lance fatal. Pelos movimentos da luta, muitos já esperavam ver Alvorada tombar vencido.
O galo de Ambrósio cambaleou mais de uma vez e, diante de uma bicada forte de Veloz, os torcedores já esperavam de pé pela queda fatal. Ali, quase solenemente, fez-se um silêncio longo. Uma espera, uma aflição, um galo bicava, o outro retrocedia, sem ânimo. Então mestre Ambrósio, meio que em desespero, quebrou sua tradição: de calado rompeu a pular e a gritar, com as palavras de incentivo que usava ao treinar o seu galo.
— Eia! Vai! Pega! Reage, Alvora! Enfrenta! Alvora!
Era só sua voz no recinto, nervosa, quase embargada, uma lágrima vinha brotando dos olhos cansados do velho tratador. Foram a voz e os apelos de Ambrósio? O que foi que deu ânimo novo ao galo? O que se sabe é que Alvorada soltou um cacarejo como um gemido de aflição, agitou as asas, riscou o chão e partiu instintivamente para cima do inimigo. Veloz, num lapso de surpresa, abaixou um pouco o corpo, recuando. Alvorada, por estar meio desequilibrado, acertou de lado, com o esporão em cheio no pescoço do inimigo. O golpe prostrou Veloz na rinha e este foi o último gesto de luta de Alvorada, que ambos tombaram lado a lado, com as cristas e os pescoços ensangüentados.
A luta chegava ao final, já se apurava o resultado. Ou se considerava o empate por esgotamento, ou o empate por morte dos dois galos. Já se examinavam as aves, daí logo constatando: Veloz, sem reação, não respirava: estava morto, vencido, nas mãos de seu dono desapontado. Veloz, conforme a praxe, seguia dali para se juntar aos demais perdedores da tarde, como iguaria da panelada. Alvorada, sem reação, ainda respirava: estava vivo, embora extenuado. Já recebia os cuidados nos braços de mestre Ambrósio, agora feliz, aliviado.
Esportivamente, Seu Manuel veio cumprimentar o mestre, e pagar a aposta devida. Prometia voltar para novas jornadas. E assim avaliou:
— Foi uma boa luta, em verdade um empate – disse, traindo no ritmo da fala uma certa tristeza. Dobrou a tipóia de Veloz, tentou enfiar num dos bolsos, mas não conseguiu. Então, olhou-a mais uma vez e atirou num canto, na minha direção. Eu peguei a tipóia do galo vencido, guardei como troféu que até hoje figura em meu velho baú de lembranças.
Seu Manuel se despediu, que já ia pegar a estrada, de volta a sua cidade. Ali, de ouvidos atentos, ouvi as suas observações, que deixaram Ambrósio em silêncio, preocupado.
— É uma pena. Seu galo é muito bom, mas, assim ferido, dessa noite não escapa.
Aquele sábado terminou em festa, com rodadas de cerveja, cantigas ao som de sanfonas e violões. A panelada já ia para o fogo e a expectativa era grande, pois diziam que galo bravo dava mais caldo, tinha mais sabor.
Mestre Ambrósio não ficou para comemorar. Seguiu para casa com o seu campeão na tipóia, muito ferido, num silêncio que só cedia a um ruído de cacarejo impossível, como gemidos de dor. Em casa, Ambrósio preparou beberagens que lhe enfiou bico adentro, passou ungüentos medicinais no corpo do bicho, tratou os ferimentos da crista, fez curativos no pescoço. Agasalhou Alvorada num ninho especial, com serragem e maravalhas finas, num canto bem arejado do terreiro. Ele se sentia culpado pelo sofrimento do animal, e orgulhoso pela vitória contra o pior inimigo que já vira na rinha. Manuel era um treinador dos melhores, com certeza. Ambrósio acariciou seu galo de estimação, abaixou-se e o beijou no bico. E, aproximando-se das aurículas do bicho, disse: “Boa noite, velho!”. Mas logo voltou, para ficar observando-o mais um pouco. “Você vai escapar dessa, velho”, ainda disse. E daí se recolheu, entre enternecido e confiante.
Na cama, sua mulher, Dona Dália, já ressonava, que dormia sempre mais cedo. Ela detestava brigas de galo. Já deitado, mestre Ambrósio sentiu o cansaço do dia, dos anos, da vida. Pela primeira vez sofrera de verdade com uma briga de galo. Sentira um aperto, quase uma dor no peito, com medo de perder. Não pela aposta em si, mas pela vida do galo. Não queria ver o bichinho cair morto diante de todos, virar tira-gosto de sábado, devorado com cerveja. Agora, Ambrósio sentia: Alvorada não era apenas um galo; era seu animal de estimação, mais que um amigo. E se emocionou, lembrando do trato diário com o pinto, o frango, o belo galo. Vinha-lhe a decisão firme. Nunca mais entregaria Alvorada à rinha. Deixaria essa vida de uma vez, como Dália vivia pedindo. Livre, Alvorada viveria solto pelo terreiro, a cobrir as galinhas de raça, como um verdadeiro reprodutor. Era o melhor galo de todos os tempos. Merecia ter uma linhagem, ninhada após ninhada. Os filhotes de Alvorada iriam povoar todos os terreiros, com aquele porte de campeão invencível, com aquele canto que encantava a manhã. Um canto que fazia os pássaros suspenderem a voz para ouvir.
Ambrósio estava sem sono, via a noite se arrastar. Como se sonhasse de olhos abertos, revia os piores lances da luta. Imaginava Alvorada morto, como seria sua enorme tristeza. Mas logo revia as melhores cenas, e o lance final da luta: o galo inimigo tombando, Alvorada reagindo, olhos semi-abertos, ferido mas vivo, vivo como sempre. Alvorada vivo!
A madrugada declinava, começava a clarear, com os avisos dos pássaros. Era a hora certa, como todo dia era, do canto de Alvorada. E, de repente, esquecido das feridas da ave, que também doeram, agudas, dentro dele, Ambrósio apurou bem os ouvidos. E de lá do terreiro, ouviu o canto de Alvorada. Era o belo canto de sempre, absoluto sinal de vida, entre os primeiros raios da manhã. Era um canto nítido, claro, imponente, superior: este canto, este que só mestre Ambrósio ouvia, e de agora para sempre ouviria, todo dia. Porque, nas redondezas, outros cantos longínquos assumiam o vago romper da manhã. No terreiro desolado, era só a alvorada que rompia e se elevava, e era alva como todos os dias. No entanto, estava envolta num silêncio de luto – que só se escutava, ali e além, o canto triste dos passarinhos.


Aleilton Fonseca nasceu em Firmino Alves, BA (1959), viveu em Ilhéus, Vitória da Conquista, João Pessoa, São Paulo, e reside em Salvador. Cursou Letras (UFBA) e fez doutorado na USP. Foi professor na Université d’Artois (França), em 2003; Hoje atua na UEFS-Bahia. Publicou Jaú dos Bois e outros contos (1997), O desterro dos mortos (2001), O canto de Alvorada (2003) e Nhô Guimarães (2006). Co-organizou vários livros. Recebeu, entre outros, o Prêmio Nacional Herberto Sales (ALB-BA, 2001) e o Prêmio Marcos Almir Madeira (UBE-RJ, 2005). É co-editor de Iararana - revista de arte, crítica e literatura, correspondente de Latitudes: “cahiers lusophones” (França), além de membro da Academia de Letras da Bahia.

Um comentário:

Anônimo disse...

"Era um canto nítido, claro, imponente, superior"
belas imagens neste conto de interior