Por Ana Maria Rosa
Ana Maria Rosa |
“Percebo que, em toda
criação artística,
se insinua uma infância única e intransferível”.
Bartolomeu
Campos de Queirós
O livro Pedra Só,
desde sua capa, uma bela fotografia de Ricardo Prado, fornece ao leitor, mesmo
ao mais desavisado, uma deixa de que o poeta José Inácio Vieira de Melo
pretende conduzi-lo às terras agrestes do Sertão – seja esse dentro ou fora –, pois,
ali, estão seus signos: o mandacaru, o espinheiro e a lua cheia. Na folha de
rosto, eis o lajedo: a pedra em sua solidão imemorial. Depois do belíssimo poema-epígrafe
de Roberval Pereyr – povoado de camelos e cavalos – o poeta JIVM nos abre um
portal, de onde se descortina a sede da fazenda Pedra Só, obumbrada pelo lajedo
que se projeta sob o céu sem nuvens, e, ali mesmo, nos adverte fazendo suas as
palavras do poeta Gerardo Mello Mourão: “Essas terras são minhas/ sobre elas
hei lavrado a escritura de meu canto”. Avisado pela epígrafe e ofuscado pela claridade
do céu, o leitor-viajante-convidado começa a pisar o couro do país, onde reina
o Cavaleiro do Fogo.
Entrar nesse misterioso
território é adentrar “nos emaranhados da memória” de onde o poeta traz à luz,
com seu verbo encantado, as origens de sua poesia telúrica, visceral e
apaixonada. Porque esse é o tema principal do livro: a poesia, sua origem e
suas fontes primevas. Chamo a atenção para o uso constante de palavras que
remetem a início, primordial, fundamental, em construções como “o nome
primeiro à luz do sol”, “O sertão
encourando os primeiros saberes”, “E
na penumbra, as primitivas galas”,
“No Sertão, o princípio do enigma”,
“Na Pedra Só, a fonte desse poema” Esses
“versos sertânicos” não deixam dúvida de que o poeta precisou buscar “Outra vez
as águas antigas,/ ravinas na memória do tabuleiro” e retornar à “província
sagrada” para escutar o “boi das algarobeiras/ que muge a solidão” e, assim,
poder revelar os segredos fundamentais de sua lírica que estão codificados em
seus poemas. Adiante, nova revelação descortina-se ao leitor, quando o poeta se
define afirmado nos últimos versos do cântico II: “E eu regresso e lembro que
fui, que sou e serei: um cavaleiro cozido nas brasas do Sertão,/ dentro dos
couros, com o sol no espinhaço,/ no meio do tempo, no meio dos tempos”.
Não é difícil ao leitor, que como eu, traz no âmago do Ser,
os sons, os sabores e perfumes do Sertão, ouvir o aboio, atender ao chamado do
poeta e acompanhá-lo por esse sertão de terra vermelha, povoado de
bois-onças-pássaros-leopardos-cantadores-profetas-vaqueiros-cavalos e éguas. Às
vezes, eu, leitora, sou ferida por um espinho de mandacaru ou perco-me no
labirinto de minha própria memória (não se lê poesia impunemente); noutras,
refresco-me à sombra das algarobeiras e, dali, também posso contemplar “a paz dos lajedos e das serras”. Mas mesmo
para o leitor que não carrega consigo esses signos sertânicos, não é difícil
empreender essa odisseia, guiado pelo som do galope do centauro que partiu do
Olho d’Água do Pai Mané, apeou por uns tempos na fazenda Ribeira do Traipu no sertão das
Alagoas, levantou rancho para a cidade de Troia, passou por Ítaca e
desembestou-se por desertos bíblicos até chegar à fazenda Cerca de Pedra, de
onde empreendeu nova viagem até alcançar as terras da fazenda Pedra Só, na
Chapada Diamantina, sertão da Bahia. Ali, o vaqueiro fundou seu reino, o “país
do couro”, onde o Cavaleiro de Fogo, finalmente, pode repousar e, como um
demiurgo, criar delírios de metáforas, deslumbrado com a “chã que se abre” aos
seus “olhos pasmos diante da imensidão do Cosmo”.
Mas, um outro aspecto me chamou a atenção: nesse livro, mais
do que nos anteriores, é possível sentir a presença iniludível da infância a
perpassar quase todos os cânticos do poema Pedra
Só. Desde o início, percebo que, além do boi de campina, anda com o
vaqueiro, um menino moreno de cabeleira encaracolada e cenho franzido. Ele está
montado num cavalo em pelo e, protegido por “uma legião de vaqueiros e pelas sete
peles do gibão de couro”, segue o outro que galopa, veloz, a chicotear o cavalo
arisco. Qualquer leitor, informado de que JIVM é o cavaleiro de fogo, o
centauro escarlate, o demiurgo encourado, o poeta baiano das Alagoas, sabe que
ele não careceria de tanta proteção ao desembestar pelo sertão de dentro se não
fosse por causa do “menino todo diferente dos outros” que viaja com ele e do
qual não pode apartar-se.
Ninguém consegue olvidar a infância e, talvez, nenhum outro
artista além do poeta, consiga presentificá-la de forma tão bela.
Tenho certeza de que muito do que o poeta José Inácio
vaticina é soprado aos seus ouvidos pelo menino, a criança que o habita e o
preside. A criança é a essência do ser humano, a sua alma, o seu coração
sagrado, a infância que não se pode olvidar, ainda que, em alguns momentos,
seja difícil a ela retornar.
É isso. Nesse livro, José Inácio, corajosamente, acolhe a
criança-menino-bezerro sem a qual sua arte não seria possível. Nesse sentido, o
livro Pedra Só é prova inconteste de
seu amadurecimento como poeta. Creio que sua poesia, as toadas e os aboios brotam
de dentro dela e são cantados pelo poeta, primeiramente, para ela e, só então, são
lançados nos espaços-tempos do Infinito, transmutados pela experiência e pelos
saberes do homem-pai-amante-vaqueiro-poeta que José Inácio encarna.
E parece que, somente, na fazenda Pedra Só – pela mágica
da fantasia transfigurada num reino encantado, chã, abrigo e santuário – José
Inácio pode retornar ao paraíso perdido: o sertão mítico, território sagrado da
sua infância, onde é possível fusionar a trindade: homem-menino-poeta.
Aqui, apeio do cavalo
que me levou à beira da “inesgotável jazida”, onde quase vislumbrei o “rubi”
que habita o poeta. E, ainda enredada nas infinitas teias orvalhadas das
metáforas e dos signos míticos de Pedra
Só, eu penso, talvez, que essa catedral seja simplesmente a infância e o
rubi apenas o menino.
Ana Maria Rosa é
professora graduada em Língua Portuguesa e Literatura, publica crônicas e
contos em revistas eletrônicas e no blog oolhardapequenaespian.blogspot.com. Em
setembro, terminou o primeiro livro de contos que está em fase de revisão.
Artigo publicado no Portal de Poesia Iberoamericana (http://www.antoniomiranda.com.br/index.html), editado por Antonio Miranda, poeta, escritor e artista plástico radicado em Brasília.
7 comentários:
O artigo de Ana Maria Rosa faz uma análise muito lúcida e verdadeira a respeito livro Pedra Só, de José Inácio Vieira de Melo, onde ele deixa à mostra o seu apego e identificação com as coisas do sertão, que conhece tão bem. Parabéns aos dois!
Nosso coração, sagrado ,se abre dentro da pedra --e não estamos mais sozinhos. Pedra Só é um ótimo livro e o artigo da Ana Maria Rosa abre clareiras nos versos do Zé. Abração aos dois.
Ana Maria, Rosa do Sertão, parabéns pelo excelente texto sobre o Pedra Só, novo livro do nosso grande poeta José Inácio Vieira de Melo, o Cavaleiro de Fogo, o Demiurgo Encourado. Você foi fundo na sua análise, levando-nos para o menino que é a origem e a sustentação desse poeta singular. Parabéns!
...Sem fôlego, diante da tamanha beleza, densa delicadeza desse poeta JIVM. encantada!!! Vou lê-lo. Graças pela lembrança d'eu, kkk... Parabéens! Ana Maria Rosa nos transporta ao universo intrínseco do livro que ainda nem li, mas amo desde já... Afagos n'alma menino cavaleiro pulsante! Até sempre...
Sinto-me desde já encantada com a beleza da obra, tão bem descrita e analisada de forma tão lírica, do poeta José Inácio. "Pedra Só",utilizando as belas palavras de Ana é um lugar mágico e que traz uma imagem de sertão distinta de tantas que retrata apenas o lado crú e sofrido.Realmente um encanto!
Entrar em contato com os poemas desse livro por meio do sensível e responsável olhar de Ana Maria Rosa é poder observar o quão rica é linguagem poética de José Inácio Vieira de Melo. As palavras de Ana Maria Rosa pulsam em consonância com as poesias por ela apresentadas e nos permitem uma incursão prévia nesse mundo mítico do sertão. Como leitor e pesquisador de poesia, acredito que é de trabalhos como este - feito com paixão, autonomia de uma leitora atenciosa e respeitosa - que precisamos.
Mãe Ana, você foi responsável pela criação do meu imaginário poético, construindo em mim uma casa de histórias mágicas, que mora lá no Sertão do âmago do nosso ser, e para onde fugimos de quando em quando em busca do místico e do sagrado. Sem isso, não sentiria eu essa necessidade de terra, de povo, de caatinga, de noites tão enluaradas que dá vontade de fazer bruxarias. Quando leio algo assim, em que você traz das profundezas desse Ser tão só, tão seu, tão de todos nós, tenho a intuição de que foi a poesia naturalmente árida e rica do nosso passado tropeiro, caatingueiro, boiadeiro, que me forjou indignada, forte, sensível e desejosa da mudança.
José Inácio Vieira de Melo é aquele que compreende o que é preciso remexer na seca de si, e depois o que é preciso suportar na trovoada que vem de lá, e coloca isso em versos, homem e minino, indo e vindo nesse balançar infinito que é a vida incerta da gente. É o chamado que vem da gruta secreta, o grito de valentia dizendo: eu enfrento com coragem o desafio de viver, de me presentificar nesse mundo.
Não somos flutuantes, como a escolha de meu nome pode fazer crer, embora fluidas sim, mas temos nossos pés bem fincados no chão, raízes de mandioca, espinho e flor de mandacaru. E aí, o passarinho vem bicar, e a gente voa.
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