sábado, 20 de novembro de 2010

CENTAURO: A NATUREZA DO HOMEM

Por Raquel Naveira


Não há melhor imagem para o conflito da natureza masculina do que o centauro: homem e cavalo, razão e instinto, delicadeza e brutalidade. Amor imoderado pelo vinho, pela carne e pelas mulheres. Virilidade contida. Sabedoria incompreendida. Natureza monstruosa e selvagem que não se pode reprimir.
Moacyr Scliar escreveu um romance com esse título lindo: Centauro no Jardim. O livro conta a história do centauro Guedali, nascido no interior do Rio Grande do Sul, filho de uma pacata família de imigrantes judeus russos. Guedali cresce solitário, excluído e o isolamento o leva ao hábito da leitura. Inteligente, sensível e culto, é ele quem conduz a narrativa de realismo fantástico eita a partir do dia de seu 38º aniversário, comemorado entre amigos. A figura do centauro ilustra a divisão étnica e religiosa dos judeus, um povo perseguido por sua singularidade. Ouso dizer que o centauro é um alter-ego de Moacyr Scliar, ele mesmo judeu, ávido leitor, que galopa por paisagens de mistério e magia.
No poema “Amor Mitológico”, imaginei o amor entre uma ninfa e um centauro:

Sou uma ninfa menina,
Dessas que habitam o oco das árvores
E enfeitam os cabelos com boninas,
Sou simples e delicada,
Quase não falo,
Prefiro tocar flauta
E sentir paz quando me calo,
Mas qual não foi a minha sina,
Apaixonar-me por um centauro
Que corria disparado na ravina!
Era linda a sua crina dourada,
O seu torso de homem claro
E seu faro logo me descobriu
Como se eu fosse uma égua na baia,
Por mais que eu deseje que esta paixão saia,
Ela me domina:
Fogo que veio no vento,
No sopro de suas narinas,
Quando eu o quero manso e angélico,
Ele é bruto
E me bate com os cascos;
Quando eu o quero viril e bélico,
Ele larga o arco
E me afaga com palavras doces
E desde então
Vivo vagando pela campina
Com o corpo doído
E a alma machucada
Pois nunca pensei que fosse tão difícil
Amar ou ser amada.


Lendo A Arte da Poesia, de Ezra Pound, encontro uma definição incrível de poesia: “A poesia é um centauro. A faculdade intelectiva e aclaradora que articula palavras deve movimentar-se e saltar juntamente com as faculdades energéticas, sensitivas e musicais.” Penso,

O poeta é um centauro:
A mente de homem
Aclara ideias,
Articula palavras
E as pernas de cavalo,
Cheias de energia,
Saltam no ímpeto da emoção.

O poeta é um centauro:
Alimenta-se de carne crua,
Bebe vinho,
Embriaga-se
E depois chora
Arrependido
Fazendo brotar fontes
Com a pancada de seus cascos

O poeta é um centauro:
Uma força bruta,
Que rapta,
Violenta,
Cega
E depois se põe a serviço
Do bom combate.


Dante Milano, poeta carioca, que sabe como expressar a dor da existência, escreveu um poema chamado “Fuga do Centauro”. O “centauro” surpreende a mulher, mistura de santa e prostituta, com um embate impiedoso, cheio de luta e prazer. Terminado o ato sexual, ela, carente, com lágrimas na face, implora que ele fique, que não a abandone, mas ele foge. Transcrevo trecho:

Fui beijá-la e dei dentadas.
Havia sangue em seu gosto.
Espanquei-a com carícias,
Massacrei-a de delícias.
Arrastei-lhe o corpo exposto,
Nua, o gesto descomposto,
E pus-lhe as patas no rosto.
Ela dava gargalhadas.


A Infância do Centauro é um livro de poemas emocionantes do jornalista José Inácio Vieira de Melo. Quantas surpresas. Quantos “ninhos de centauros”.Como o poeta é um centauro: galopa, galopa, galopa, transcendendo a ele mesmo e às suas explicações. O poeta galopa o território de sua infância, a sua principal metafísica. Caminha pelas ruas da Bahia, conduzindo seu filho Moisés, reconhecendo seu próprio pai na memória da íris de seu filho. E oferece a ele a sua herança de centauro.
Em outro ponto, o sensual centauro declara:

Vinde, minhas éguas, luzindo na imensidão!
No ritmo de vossas ancas é que se inaugura
A saga do meu império e os nomes do meu nome:
Cavaleiro de Fogo, Centauro Escarlate.

Poesia pura, feita de músculos, pegada, coração e melancolia de centauro. Centauros e poetas são mesmo temíveis aos mortais.


Artigo publicado no livro Caminhos de bicicleta (Miró Editorial, 2010), de Raquel Naveira, nas páginas 21 a 25.

Raquel Naveira é poeta, professora e Mestre em Comunicação e Letras. Dentre vários livros, escreveu
Abadia (1996) e Casa de Tecla (1999), ambos finalistas do Prêmio Jabuti de Poesia.

3 comentários:

Vitor Nascimento Sá disse...

Esse texto não te explica, mas te justifica. Há que se temer o centauro que há dentro do teu peito. Porque esse sujeito lírico, de fina generosidade, é o mesmo que espalha coices poéticos nas faces invejosas dos poucos opositores que ainda restam.

Cândida Montenegro disse...

o poeta na companhia dos seus iguais: Dante Milano, Ezra Pound, Moacyr Scliar e a própria Raquel Naveira. Parabéms, Raquel, ficou muito legal. Parabéns, Zé Inácio, sua poesia é das melhores. Abraços.

Cândida Montenegro

Jeovah Ananias disse...

A Raquel Naveira é uma poeta atenta ao que está acontecendo de lhor no Brasil. É muito justo que você, José Inácio, figure entre os grandes, porque sua obra é grandiosa e a cada livro você vem surpreendendo ainda mais. Parabéns!