terça-feira, 1 de setembro de 2009

TRÊS POEMAS DE VITOR NASCIMENTO SÁ


Ilustração: Gilvan Samico




















CARONTE


Na primeira vez que vi Caronte,
minha vida pareceu mais acabada.

Mas passadas quase três eternidades,
mirando sua face na saída,
pareceu-me a única amiga
a que eu já tinha observado.

Na terceira vez que Caronte encontrei,
já trazia o coração despedaçado:

nem o cumprimentei, pobre barqueiro.
Paguei e ordenei que atravessasse,
eu, lamentando ter morrido de infarto
e com paixão mandando no meu peito.

Caronte, agora, encontro todo dia:
é porteiro do prédio onde trabalho.

Com bom dia o saúdo logo cedo;
vem trazer o meu jornal meio amassado.
E, ao sair, digo assim, meio com medo:
boa noite, meu barqueiro desgraçado.



ESCAPULÁRIO


Eu, o escapulário e um copo d’água.
Então me vejo caminhar de longe,
vento no cabelo encaracolado.
E a sombra cerca uma coivara e some.

Espanto-me com tiros pelas costas.
No chão, sinto a poeira pela cara.
E digo que a verdade agora é posta:
eu, o escapulário e um copo d’água.

Deus, água de coco e Azerbaijão:
um homem-bomba bufa em restaurante.
Por mais que se queira pleno futuro,

se sabe que o passado é mais que fruto,
pra forçar que nosso presente pare:
eu, o escapulário e um copo d’água.



CORTEJO DO FOGO


Ontem, o passado me visitou quase inteiro,
como uma procissão de São Roque
nas ruas de terra de Maracás.

Minha mãe sentada – a parede nua às suas costas –
me espiava baixinho e ordenava
ficar de olho no caminho pra que ela não caísse.
E balbuciava como quem grita:
menino, por que você não olha por onde anda?

Mas como poderia eu olhar,
se minha mãe nascera cega
em pleno dia de Santa Luzia
e passava a enxergar aos poucos
como na história sagrada
que parcamente lia?

Terra, cuspe e barro de Nosso Senhor
na face pequena de minha mãe
e o sorriso de minha avó
contando histórias perto do fogão a lenha.

Aí eu achei graça do pudor
com que olhei pela primeira vez
a pelagem rala na boceta jovem de minha prima
tomando banho de cuia no banheiro de palha.

Fogo!

Meu passado é brincadeira perigosa.
Mas me apareceu em formato de chapéu
e, surpreendentemente, a cabeça ainda
me servia como nos meus quatorze anos.
Mas estava à venda a preços
que, na época, não se praticavam.

E minha tia morta ordenando a todos
que saíssem como não pudessem,
que saíssem mesmo a qualquer custo.

Afinal, o meu passado será sempre
brincadeira de fogo, perigosa.

20 comentários:

Georgio Rios disse...

Sutileza e sonoridade.Poesia em síntese e em perfeita realização!!!!

Marcelo Nascimento disse...

Sinto muitas coisas ao ler poemas de Vitor, mas o que mais sinto é satisfação em ver que a cada dia ele luta contra a poesia com todas as forças que tem, e ainda assim perde sempre pra ela
e a cada vez que perde fica ainda melhor como poeta.

Katia Borges disse...

Vitor, que grata surpresa. Você tem razão, você é poeta. E dos bons. Seus poemas têm excelente arquitetura.

Fabrício de Queiroz disse...

Bem escrito e muito bem pensada a forma de se escrever. Gostei... Carrega o sentimento para o lado de cá, de quem lê.

Gerana disse...

Bandeira na linhagem, bom sinal.

Vitor Nascimento Sá disse...

A Inácio já agradeci, tanto pessoalmente como nas respostas. Agora agradeço aos elogios dos visitantes: obrigado, gente. Muito animador.

CLEBERTON SANTOS disse...

parabéns pelo poema "Caronte". até mais e aquele abraço aos dois...

Pascoal Naib disse...

Estou descobrindo agora esse outro lado de Vítor e tenho que admitir que minha admiração cresceu ainda mais. Vivemos em tempos de urgências inventadas e de soluções descartáveis e nada melhor que parar e ler um poema e assim desnudar nosso íntimo para uma realidade esquecida: nós somos essa eterna poesia da vida. Parabéns pela entrevista e Vítor companheiro de luta em outras frentes que sempre possa nos saudar e refrescar com essas intimidades da alma.

Raiça Bomfim disse...

A entrevista está ótima.
O poema CORTEJO DO FOGO, em sua memória cheia de imagens e beleza, me comove verdadeiramente.
Boas leituras. Maravilha!

Sil disse...

Vitor,

Particularmente eu nem sabia que você escrevia poesias. Fiquei muito surpresa. Talento e dedicação eu sei que você tem de sobra. Parabéns pela criatividade de seus poemas e obrigada por coordenar o Grupo Concriz. Grupo que eu tenho muito orgulho e que a cada dia vem crescendo com muita força.Valeu amigo.

alex guimarães disse...

Sinto-me feliz pela grata situação de ser amigo de um poeta como o vitor. entretanto, com a devida permissão, gostaria de solapar o perfil de poeta não engajado. O Grupo Concriz, caro Vitor, já é em si um grande movimento com funções sociais específicas. Propondo uma tensão q perpassa o poetar e sua particularidade pedagógica, este grupo expõe a função de um verdadeiro intelectual, q é agir na sociedade. Entre tantas efemeridades desse mundo, o concriz propõe uma situação de estranhamento frente a realidade social e, ao mesmo tempo, inaugura um movimento "engajado" com a arte. Grandes iniciativas, como as suas, Edimar e Inácio, são salutares para a quebra da normatização. Grande abraço de um pequeno mequetrefe que se julga no direito de falr sobre poesia e sociedade. Abraços e parabéns pelo Concriz... Maracás e região agradecem.
Alex

almei disse...

Meu caro Vitor, tenho um bom amigo que é um bom poeta ou eu tenho um bom poeta que é um bom amigo? Não importa a ordem você é ótimo em qualquer direção. Parabéns!! Um grande abraço a Inácio Poeta Guerreiro.

Emerson P de Jesus Santos disse...

Caro Mestre.Eu Emerson como um dos integrantes do grupo concriz,fico feliz pela publicação dos seus poemas.
são maravilhosos.
Parabéns!
É um grande prazer ter você entre nós nesse grupo.
Grande abração!

Iuri Fernandes disse...

Parabéns, adorei os poemas vc é uma pessoa que mereçe grande respeito abraços.

Ivana Karoline disse...

Vitor, sei que foi um pouco tardia a minha visita a este blog, desculpa-me por isso, embora eu estivesse muito ansiosa para ver esta postagem, não dispunha de tempo suficiente para apreciar com o devido cuidado seu trabalho.
Concordo com Inácio quando ele diz: “Vitor é um poeta cauteloso e fica um tanto arredio quando solicitado a mostrar seus versos”. Depois de ver um trabalho maravilhoso como este sendo publicado, fico imensamente feliz, nem sei explicar a emoção que senti ao ler seus versos, apesar de já os conhecer anteriormente. Meu querido, é como eu sempre digo, você tem um futuro promissor como poeta. Está na sua natureza e já que faz parte de ti, não adianta esquivar-se a poesia sempre reinará na sua vida.
Em se tratando da entrevista, concordo quando diz que a poesia não tem utilidade. Porém é algo que jamais conseguiria viver sem, talvez a utilidade dela pra você seja essa, dar certo sentido à sua vida.
Eu estou maravilhada com os seus poemas e tenho certeza que não sou a única.
Obrigada por fazer parte do Grupo Concriz e nos permitir experimentar este mundo fantástico que é o da literatura.
Mais uma vez parabéns, e siga o seu inegável caminho!
Abraços meu querido!

Eliana Mara Chiossi disse...

Vitor, estou muito feliz porque estarei aí, logo, logo. E tem tanta coisa para conversar. Depois de ler essa entrevista, penso que os dias vão ser pouco...
Muito especial esta rede que Inácio fortalece... De nos conhecermos, e nos apoiarmos, e sabendo do que nos faz vibrar, em poesia, sabemos mais de nós mesmos!

Alexandre Bonafim disse...

Poemas forjados no fogo da memória, palavas de grande sutileza, em que o eterno se faz palavra, rutilância. Alexandre Bonafim.

Cultura de Maracás disse...

Meu caro amigo Vítor
É constante e crescente a minha satisfação por ver que a sua poesia floresce, mesmo sob o silêncio do poeta. Sua poesia vem se demonstrando marcante e com a marca abissal da memória. Caronte é um grande poema, destes que eu gostaria de ter escrito. Caminha para a perfeição da arte da palavra. Os outros também são muito bons. Devo dizer que o Concriz está bem servido, tendo um legítimo poeta e professor de literatura à frente de suas atividades. E não tente evitar o papel de poeta. Eu já faço isso a tempos e não quero que você pareça um invejoso. Meu abraço.

Unknown disse...

Muito bom os Poemas.

Continue escrevendo Vitor daqui mais um tempo quem sabe estaremos recitando eles aqui em Maracás...

Anônimo disse...

Este e Vitor Sá, não me surpreende seu talento, algo muito forte e significativo lhe deu asas, sinta-se um privilegiado,Vitor, Deus te marcou, jamais Ele te perderá de vista.