Ilustração: Gilvan Samico
CARONTE
Na primeira vez que vi Caronte,
minha vida pareceu mais acabada.
Mas passadas quase três eternidades,
mirando sua face na saída,
pareceu-me a única amiga
a que eu já tinha observado.
Na terceira vez que Caronte encontrei,
já trazia o coração despedaçado:
nem o cumprimentei, pobre barqueiro.
Paguei e ordenei que atravessasse,
eu, lamentando ter morrido de infarto
e com paixão mandando no meu peito.
Caronte, agora, encontro todo dia:
é porteiro do prédio onde trabalho.
Com bom dia o saúdo logo cedo;
vem trazer o meu jornal meio amassado.
E, ao sair, digo assim, meio com medo:
boa noite, meu barqueiro desgraçado.
ESCAPULÁRIO
Eu, o escapulário e um copo d’água.
Então me vejo caminhar de longe,
vento no cabelo encaracolado.
E a sombra cerca uma coivara e some.
Espanto-me com tiros pelas costas.
No chão, sinto a poeira pela cara.
E digo que a verdade agora é posta:
eu, o escapulário e um copo d’água.
Deus, água de coco e Azerbaijão:
um homem-bomba bufa em restaurante.
Por mais que se queira pleno futuro,
se sabe que o passado é mais que fruto,
pra forçar que nosso presente pare:
eu, o escapulário e um copo d’água.
CORTEJO DO FOGO
Ontem, o passado me visitou quase inteiro,
como uma procissão de São Roque
nas ruas de terra de Maracás.
Minha mãe sentada – a parede nua às suas costas –
me espiava baixinho e ordenava
ficar de olho no caminho pra que ela não caísse.
E balbuciava como quem grita:
menino, por que você não olha por onde anda?
Mas como poderia eu olhar,
se minha mãe nascera cega
em pleno dia de Santa Luzia
e passava a enxergar aos poucos
como na história sagrada
que parcamente lia?
Terra, cuspe e barro de Nosso Senhor
na face pequena de minha mãe
e o sorriso de minha avó
contando histórias perto do fogão a lenha.
Aí eu achei graça do pudor
com que olhei pela primeira vez
a pelagem rala na boceta jovem de minha prima
tomando banho de cuia no banheiro de palha.
Fogo!
Meu passado é brincadeira perigosa.
Mas me apareceu em formato de chapéu
e, surpreendentemente, a cabeça ainda
me servia como nos meus quatorze anos.
Mas estava à venda a preços
que, na época, não se praticavam.
E minha tia morta ordenando a todos
que saíssem como não pudessem,
que saíssem mesmo a qualquer custo.
Afinal, o meu passado será sempre
brincadeira de fogo, perigosa.
20 comentários:
Sutileza e sonoridade.Poesia em síntese e em perfeita realização!!!!
Sinto muitas coisas ao ler poemas de Vitor, mas o que mais sinto é satisfação em ver que a cada dia ele luta contra a poesia com todas as forças que tem, e ainda assim perde sempre pra ela
e a cada vez que perde fica ainda melhor como poeta.
Vitor, que grata surpresa. Você tem razão, você é poeta. E dos bons. Seus poemas têm excelente arquitetura.
Bem escrito e muito bem pensada a forma de se escrever. Gostei... Carrega o sentimento para o lado de cá, de quem lê.
Bandeira na linhagem, bom sinal.
A Inácio já agradeci, tanto pessoalmente como nas respostas. Agora agradeço aos elogios dos visitantes: obrigado, gente. Muito animador.
parabéns pelo poema "Caronte". até mais e aquele abraço aos dois...
Estou descobrindo agora esse outro lado de Vítor e tenho que admitir que minha admiração cresceu ainda mais. Vivemos em tempos de urgências inventadas e de soluções descartáveis e nada melhor que parar e ler um poema e assim desnudar nosso íntimo para uma realidade esquecida: nós somos essa eterna poesia da vida. Parabéns pela entrevista e Vítor companheiro de luta em outras frentes que sempre possa nos saudar e refrescar com essas intimidades da alma.
A entrevista está ótima.
O poema CORTEJO DO FOGO, em sua memória cheia de imagens e beleza, me comove verdadeiramente.
Boas leituras. Maravilha!
Vitor,
Particularmente eu nem sabia que você escrevia poesias. Fiquei muito surpresa. Talento e dedicação eu sei que você tem de sobra. Parabéns pela criatividade de seus poemas e obrigada por coordenar o Grupo Concriz. Grupo que eu tenho muito orgulho e que a cada dia vem crescendo com muita força.Valeu amigo.
Sinto-me feliz pela grata situação de ser amigo de um poeta como o vitor. entretanto, com a devida permissão, gostaria de solapar o perfil de poeta não engajado. O Grupo Concriz, caro Vitor, já é em si um grande movimento com funções sociais específicas. Propondo uma tensão q perpassa o poetar e sua particularidade pedagógica, este grupo expõe a função de um verdadeiro intelectual, q é agir na sociedade. Entre tantas efemeridades desse mundo, o concriz propõe uma situação de estranhamento frente a realidade social e, ao mesmo tempo, inaugura um movimento "engajado" com a arte. Grandes iniciativas, como as suas, Edimar e Inácio, são salutares para a quebra da normatização. Grande abraço de um pequeno mequetrefe que se julga no direito de falr sobre poesia e sociedade. Abraços e parabéns pelo Concriz... Maracás e região agradecem.
Alex
Meu caro Vitor, tenho um bom amigo que é um bom poeta ou eu tenho um bom poeta que é um bom amigo? Não importa a ordem você é ótimo em qualquer direção. Parabéns!! Um grande abraço a Inácio Poeta Guerreiro.
Caro Mestre.Eu Emerson como um dos integrantes do grupo concriz,fico feliz pela publicação dos seus poemas.
são maravilhosos.
Parabéns!
É um grande prazer ter você entre nós nesse grupo.
Grande abração!
Parabéns, adorei os poemas vc é uma pessoa que mereçe grande respeito abraços.
Vitor, sei que foi um pouco tardia a minha visita a este blog, desculpa-me por isso, embora eu estivesse muito ansiosa para ver esta postagem, não dispunha de tempo suficiente para apreciar com o devido cuidado seu trabalho.
Concordo com Inácio quando ele diz: “Vitor é um poeta cauteloso e fica um tanto arredio quando solicitado a mostrar seus versos”. Depois de ver um trabalho maravilhoso como este sendo publicado, fico imensamente feliz, nem sei explicar a emoção que senti ao ler seus versos, apesar de já os conhecer anteriormente. Meu querido, é como eu sempre digo, você tem um futuro promissor como poeta. Está na sua natureza e já que faz parte de ti, não adianta esquivar-se a poesia sempre reinará na sua vida.
Em se tratando da entrevista, concordo quando diz que a poesia não tem utilidade. Porém é algo que jamais conseguiria viver sem, talvez a utilidade dela pra você seja essa, dar certo sentido à sua vida.
Eu estou maravilhada com os seus poemas e tenho certeza que não sou a única.
Obrigada por fazer parte do Grupo Concriz e nos permitir experimentar este mundo fantástico que é o da literatura.
Mais uma vez parabéns, e siga o seu inegável caminho!
Abraços meu querido!
Vitor, estou muito feliz porque estarei aí, logo, logo. E tem tanta coisa para conversar. Depois de ler essa entrevista, penso que os dias vão ser pouco...
Muito especial esta rede que Inácio fortalece... De nos conhecermos, e nos apoiarmos, e sabendo do que nos faz vibrar, em poesia, sabemos mais de nós mesmos!
Poemas forjados no fogo da memória, palavas de grande sutileza, em que o eterno se faz palavra, rutilância. Alexandre Bonafim.
Meu caro amigo Vítor
É constante e crescente a minha satisfação por ver que a sua poesia floresce, mesmo sob o silêncio do poeta. Sua poesia vem se demonstrando marcante e com a marca abissal da memória. Caronte é um grande poema, destes que eu gostaria de ter escrito. Caminha para a perfeição da arte da palavra. Os outros também são muito bons. Devo dizer que o Concriz está bem servido, tendo um legítimo poeta e professor de literatura à frente de suas atividades. E não tente evitar o papel de poeta. Eu já faço isso a tempos e não quero que você pareça um invejoso. Meu abraço.
Muito bom os Poemas.
Continue escrevendo Vitor daqui mais um tempo quem sabe estaremos recitando eles aqui em Maracás...
Este e Vitor Sá, não me surpreende seu talento, algo muito forte e significativo lhe deu asas, sinta-se um privilegiado,Vitor, Deus te marcou, jamais Ele te perderá de vista.
Postar um comentário