Cyro de Mattos e José Inácio Vieira de Melo no Cabaré Literário - Ilhéus, 10/08/2012 |
Jorge
Amado é prosador de linguagem sensual na recriação da vida. O prosador fluente convive
com o poeta, em aliança que emerge afetiva e escorre solidária na escrita
lírica. Em suas visões românticas, embora use uma linguagem denotativa, no que
diz respeito aos sentidos, o prosador alcança o poeta quando transmite uma
poesia em nível sensitivo da fala. Recorre
ao cordel, logrando extrair versos
populares ditos por sua própria voz, encaixados nos falares dos seus
personagens ou atribuídos aos cantadores.
A Estrada do Mar é
o único livro de Jorge Amado constituído de
poemas. Publicado em 1938, é uma raridade bibliográfica. Apesar de tudo, não é
difícil encontrar nas histórias de Jorge
Amado pequenos e medianos poemas. Da linguagem só amor, o poeta-romancista
faz a palavra ressoar como música e
assim o eu lírico pensa a vida pelo som, que lateja
sentidos em diversas direções.
Em O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, versos
de Jorge Amado dizem do mundo que só tem
graça e encanto quando se vive nele fora das prisões.
O mundo só vai prestar
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.
Em Terras
do Sem Fim, a alma romanceira de Jorge Amado adverte na epígrafe do livro
que vai contar uma história de espantar.
Contada a história das lutas sangrentas pelo domínio das
terras do Sequeiro Grande, o poeta interfere
no romancista para relembrá-la tempos
depois na voz dos ceguinhos pelas feiras.
Fazia pena, dava dó,
Tanta gente que morria.
Cabra de Horácio caía
E caía dos Badaró...
Rolavam os corpos no chão,
Dava dor no coração
Ver tanta gente morrer,
Ver tanta gente matar.
Se largou foice e machado,
Se pegou repetição...
Loja de arma enricou,
A gente toda comprou,
Se vendeu como um milhão.
Homem macho era Sinhô,
O chefe dos Badaró...
Uma vez, ele ia só,
Com cinco homens acabou.
Juca não era menos
Coragem nele sobrava,
E Juca não respeitava
Nem os grandes
Nem os pequenos.
Braz de nome Brasilino
José dos Santos se chamava,
Com ele ficava fino,
Mesmo do chão atirava,
Tanto ferido, matava.
Cantadores e violeiros comentavam nos romances cenas e episódios sobre a luta do Sequeiro Grande,
ressaltando as figuras e os feitos, as inquietações também. Dessa maneira falavam
das esposas:
Mulher casada não havia
Só se fosse na Bahia...
Por aqui já se dizia:
Casada era só projeto
- Mesmo as que tinham neto –
De viúva no outro dia.
Em Tenda
dos Milagres, o primeiro livro em
que Pedro Archanjo defende a raça negra
e se opõe ao racismo proposto pelos catedráticos da Faculdade de Medicina, mereceu
versos elogiosos dos repentistas e
poetas populares da Bahia. O poeta
Florisvaldo Mattos, vestido por Jorge Amado como repentista de fervoroso público, em festas de
aniversário, batizado e casamento, glosa a pendência:
Aos leitores apresento
Um tratado de valor
Sobre a vida da Bahia
Mestre Achanjo é seu autor
Sua pena é o talento
E sua tinta a valentia.
A publicação de “Apontamentos”, outro
livro do filósofo popular, malandro e boêmio, freqüentador de candomblé e ateu,
Pedro Archanjo, recebe comentários positivos
de Caetano Gil, para Jorge Amado um rebelde e bravo trovador:
Mestre Archanjo foi dizer
Que mulato sabe ler
Oh! que ousada opinião
Gritou logo um professor
Onde se viu negro
letrado?
Onde se viu pardo doutor?
Venha ouvir seu delegado
Oh! que ousada opinião.
Depressa seu delegado
Venha ouvir o desgraçado
Oh! que ousada opinião
Gritou logo um professor
Meta o pardo na prisão
Mestre Archanjo foi
dizer
Que mulato sabe ler
Oh! que ousada opinião”.
Em Mar Morto, o estilo fino e colorido de Jorge Amado
é vazado numa linguagem que caracteriza
bem a emoção pessoal do poeta. Seu discurso é assim revelador do modo
particular de ver os seres e as pessoas no mundo, sendo, portanto,manifestação de boa
poesia, simples e rica, na cadência lírica da vida.
Lívia olha de sua janela
o mar morto sem Lua.
Aponta a Madrugada.
Os homens,
que rondavam a sua porta,
o seu corpo sem dono,
voltaram para as suas casas.
Agora tudo é mistério.
A música acabou.
Aos poucos as coisas se animam,
os cenários se movem,
os homens se alegram.
A madrugada rompe
sobre o mar morto.
Existe aqui uma apurada musicalidade de versos na frase, numa demonstração sem esforço do poeta que sabe visualizar o espírito do mundo em suas manifestações
líricas, ritmadas pelo mistério e beleza
da vida. Não é por acaso que esse romance é terminado com uma alegoria poética.
Sua musicalidade sustenta e repercute numa
atmosfera que é recebida mais pelos
ouvidos que pelos olhos. O espírito do mundo manifesta-se através de um ritmo que sustenta com suficiência idéias e sentimentos do poeta diante das
pessoas e coisas. A dinâmica desse romance está saturada de poesia ligada
estreitamente à gente do cais da Bahia.
Em Gabriela,
Cravo e Canela, romance divisor de água na obra amadiana, como querem os
críticos, há poemas escritos por Jorge Amado em forma de balada e canção, abrindo vários
capítulos. Lá estão pulsando puro lirismo “Lamento de Glória”, “Cantar
de Amigo de Gabriela” e . “Cantiga de Ninar Malvina”, entre outros. Escutem “Cantiga de Ninar Malvina”, que abre o
terceiro capítulo.
Dorme, menina dormida
Teu lindo sonho a sonhar.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar.
Estou presa em meu jardim
Com flores acorrentadas.
Acudam! Vão me afogar.
Acudam! Vão me matar.
Acudam! Vão me casar.
Numa casa me enterrar
Na cozinha a cozinhar
Na arrumação a arrumar
No piano a dedilhar
Na missa a me confessar.
Acudam! Vão me casar
Na cama me engravidar.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar.
Meu marido, meu senhor
Na minha vida a mandar.
A mandar na minha roupa
No meu perfume a mandar.
A mandar no meu desejo
No meu dormir a mandar.
A mandar nesse meu corpo
Nessa minh’alma a mandar.
Direito meu a chorar.
Direito dele a matar.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar,
Acudam! Me levem embora
Quero marido pra amar
Não quero pra respeitar
Quem seja ele – que importa?
Moço pobre ou moço rico
Bonito, feio, mulato
Me leva embora daqui,
Escrava não quero ser.
Acudam! Me levem embora.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar.
A navegar partirei
Acompanhada ou sozinha
Abençoada ou maldita
A navegar partirei.
Partirei pra me entregar
A navegar partirei.
Partirei pra trabalhar
A navegar partirei.
Partirei pra me encontrar
Para jamais partirei.
Dorme menina dormida
Teu lindo sonho a sonhar.
Esses exemplos de versos, retirados das
histórias de Jorge Amado, mostram que existe uma conexão entre o poeta e o
prosador, uma aliança nítida entre o poema na prosa e a música. De tal forma existe o discurso
bonito numa linguagem simples, na qual
comparecem o lírico, o épico e o
dramático para definir o mundo sem preconceitos e prisões. Cheio de emoções e sonhos,
já que na vida há sempre os intrincados e sérios problemas.
* Palestra proferida no Cabaré Literário, da Feira Literária
Ler Amado, em Ilhéus, promovida pela
FUNDACI, em 10.08.2012.
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