O poeta José Inácio Vieira de Melo molda sua poética com os elementos mais íntimos de sua formação: a terra, os cactos, os bois. Naturalmente que nesta linha segue as trilhas abertas por poetas tão longínquos quanto esquecidos – Inácio da Catingueira, Severino Pinto, Zé da Luz. A diferença é que sua poesia se projeta para além do chão, sai da base e ganha outras transcendências ao resvalar em cantares mais formalmente elaborados, ao adicionar novas inquietações culturais, ao se surpreender pelos novos choques da vida, ao incorporar outras tantas dimensões humanas.
Em seu mais recente livro, Roseiral, lançado pela Escrituras, o poeta parte de um choque: a vida que chega aos quarenta anos. Depois do choque vêm as imagens – rosas abertas, mandacarus floridos, feridos em suas asperezas. E só daí brotam os poemas que em absoluto são filhos de ingênuas inspirações. Há o ritmo natural e aparentemente espontâneo dos improvisadores primitivos, dos cantores de gestas, mas há também um formalismo latente, vivo, trabalhado com minúcia, pois do contrário seria impossível escrever com tamanha força: “E a voz do poeta rompe / a cera dos ouvidos, leva o mel // ou a pimenta às vísceras abertas / do sentimento.”
Filho de movimentos paradoxais, como a Geração 45 e a literatura de cordel – das cantorias de viola mais ainda –, enfim, José Inácio careceu romper as amarras do lugar comum, afinal não deve ser fácil remar em mares já fartamente navegados por épicos cantores, como Marcus Accioly. O poeta pernambucano, também um sôfrego beberrão dos veios populares e eruditos, constrói uma poética cavada do chão das usinas e ganha dimensões homéricas, vadiando por vagas culturais profundas, desaguando em protestos e louvores de Américas oníricas. Inácio, por seu turno, amolega a terra agreste das Alagoas, toma impulso para entender o mundo e se volta para a intimidade do sentimento. E isto não se traduz como retrocesso.
Por vias contrárias, seu Roseiral dá um passo a mais na direção do infinito exatamente por se fazer introspectivo e buscar a universalidade que todo homem carrega na alma. E daí o balanço necessário, o inventário de uma vivência preenchida por medos e certezas: “Assim é a casa dos meus quarenta anos, / assombrada e sóbria como um bacurau.” O largo poema segue falando de fantasmas que estão longe do espectro paterno que assombrou Hamlet. Não há sentimentos de culpa, mas uma vontade de prestar contas e rever as lições do passado, e nisso os versos ganham consistência e necessidade, perdem inutilidade ao dizerem que as dores do autor são comuns aos outros homens.
O humano é um bicho que deita suas ilusões ao longo do caminho para abrir espaço para outras tantas que logo também serão desilusões domadas ao ponto de não se transformarem em frustrações. É o que nos diz o verso final: “A casa dos meus quarenta anos – cemitério de ilusões.”
Este jogo de contraluz das ilusões, não podia ser diferente, desaba nos cantares de amor, um gesto que atentou até mesmo o lirismo pessimista de Augusto dos Anjos. No caso de Inácio a temática torna-se a mais cara ao livro. As gestas de amor permeiam todos os pontos do Roseiral, vai de “A idade da pedra” ao “A casa dos meus quarenta anos”. Embora assuma uma nova condição em cada nova fase, clama sempre por uma indissolúvel paixão: “Musa, teu vestido tem os novelos / da formosura!”, ou seja, a própria poesia.
Daí nascem a terra, o cacto, o boi. “E, guardador de rebanhos, vou debulhando o meu rosário / encostado no mourão da cancela, contando minhas reses / todos os dias, muitas vezes, com a cabeça no meio do planeta.”, única maneira que o poeta encontra para mirar enfim o homem e todas as suas possibilidades.
Jose Inácio Vieira de Melo renova-se ao mirar o passado com olhos futuristas.
MAURÍCIO MELO JÚNIOR é escritor, crítico literário e jornalista. Apresenta o programa Leituras na TV Senado. Escreve para o jornal literário O Rascunho. Autor de vários livros, entre eles No país dos Caralâmpios (história, 2006) e Andarilhos (novelas, 2007).
Resenha publicada na revista virtual Verbo21 número 129, abril 2010 (http://www.verbo21.com.br/v3/)
domingo, 9 de maio de 2010
UMA POESIA NASCIDA DO CHÃO
Por Maurício Melo Júnior
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Um comentário:
Que maravilha de resenha! JIVM é o cara! Poeta de primeira. Aqui, no curso de Letras da Uesb, nós estamos tendo o prazer de trabalhar com sua obra.
Nunca um poeta me emocionou tanto. Seu lirismo anda de mãos dadas com os versos de Manoel de Barros e de Mário Quintana. E Sua poesia erótica tem pegada e faz jus ao nome de Gregório de Mattos. Parabéns!
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