domingo, 16 de agosto de 2009

ENTREVISTA - RONALDO CORREIA DE BRITO: GALILÉIA - RUÍNAS E LABIRINTOS DO SERTÃO

Por José Inácio Vieira de Melo


O escritor Ronaldo Correia de Brito foi o grande vencedor da segunda edição do Prêmio São Paulo de Literatura. Seu romance Galiléia (Alfaguara) foi eleito melhor livro do ano. Concorriam na categoria melhor livro do ano dez autores, incluindo José Saramago (A Viagem do Elefante), Moacyr Scliar (Manual da Paixão Solitária) e Milton Hatoum (Órfãos do Eldorado). O gaúcho Altair Martins foi escolhido melhor autor estreante por A Parede no Escuro (Record). Cada um receberá R$ 200 mil, o maior valor pago a um prêmio literário no país.
Entrevistei Ronaldo Correia de Brito duas vezes: em julho de 2005, no período do lançamento do livro de contos Livro dos Homens; e em abril de 2009, quando do lançamento do romance Galiléia. Agora, as entrevistas estão disponíveis aqui no blog. Parabéns ao meu querido amigo Ronaldo Correia de Brito pelo merecido destaque e desejo boa sorte nos prêmios Jabuti e Telecom, visto que Galiléia já é finalista dos dois.


A entrevista abaixo foi publicada no suplemento A Tarde Cultural, do jornal A Tarde, de Salvador, nas páginas 06 e 07, no dia 18 abril 2009.

Fotógrafo Hans von Manteuffel

"Agora, quero viver um pouco fora da literatura"


Ronaldo Correia de Brito, cearense radicado em Pernambuco, é um dos contistas mais admirados da literatura contemporânea brasileira. Autor de A noite e os dias (Bagaço, 1997), Faca (2003) e Livro dos Homens (2005), publicados pela editora Cosac Naify, fala, nesta entrevista, de seu novo livro: Galiléia (Alfaguara, 2008), que é também seu primeiro romance. Correia de Brito é um dos convidados do Café Literário da 9ª Bienal do Livro da Bahia. Sua participação vai acontecer no dia 21 de abril, às 20 horas, acompanhado do escritor amazonense Márcio Souza. O tema proposto para o encontro é “Na literatura, falar de si mesmo é falar do mundo?”


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Desde a Odisséia, o herói busca o caminho de volta para casa. Não é diferente com seus personagens, os três pastores errantes: Adonias, Ismael e Davi. Galiléia representa a busca da identidade ou pretende conferir o atestado de orfandade a esses personagens?

RONALDO CORREIA DE BRITO – Num poema de Jorge Luis Borges pode-se ler os seguintes versos: “Não haverá nunca uma porta”. E mais adiante: “Não existe. Nada esperes. Nem sequer no negro crepúsculo a fera”. O poema se chama “Labirinto”. Durante todo o tempo em que escrevi Galiléia, me lembrei desses versos. É como se o romance terminasse assim, sem qualquer esperança para Adonias, Ismael ou Davi de reaverem um mundo que se desfez no passado e que ainda não possui um futuro claro. Ismael ainda teima em encontrar sua vida nas ruínas da casa e do sertão de Galiléia, mas Davi e Adonias só conseguem fazer o caminho de volta, que não sabem ao certo qual é. Há dois labirintos a percorrer no romance, um exterior e um interior. E em qualquer um deles os personagens são órfãos de uma Ariadne que já não existe.

JIVM – Os três personagens retornam para o lugar onde seus conflitos existenciais tiveram origem, guiados pelo cheiro da carniça do patriarca que escolhera seus nomes. Ao contemplar os escombros da saga familiar, o que buscam eles? Redenção?

RCB – Acho que buscam o que não existe. Terá existido em algum tempo? Escrevi certa vez que o sertão fica em Marte e lembrei de um poeta popular do Rio Grande do Norte, Fabião das Queimadas, que termina o seu folheto A morte do touro da mão de pau, com esse diagnóstico pessimista sobre o mundo sertanejo:

Já morreu, já se acabou,
Está fechada a questão.


JIVM – Apesar de estarem inseridos na contemporaneidade, e assistirmos ao longo das páginas a decadência de um mundo arcaico, ainda assim seus personagens têm cheiro de sertão e parecença com pastores bíblicos. Em que medida, na sua literatura, o mundo sertanejo está imbricado com o bíblico?

RCB – A história dos homens que povoaram os sertões é muito semelhante à do povo hebreu, como é relatada na Bíblia. São pastores que chegam com seus rebanhos, se apossam de terras que não lhes pertencem, massacram os habitantes nativos, destroem, se apossam. No caso de nossos colonos, que dizimaram os índios, eles traziam uma carta de doação do rei de Portugal, um representante do deus da Igreja Católica; os hebreus vinham atrás da promessa de uma terra prometida, e traziam um contrato com o seu deus Iavé. Há muitos pontos em comum e a coincidência de haverem judeus cristãos novos entre os colonizadores dos sertões. Meu oitavo avô, Bernardo Duarte Pinheiro, era um desses judeus batizados em pé, e foi um dos que chegaram para se apossar da Galiléia sertaneja dos Inhamuns, no Ceará.

JIVM – Joca Reiners Terron afirma que “em Galiléia nada há de folclore: o sertão é matéria interior, irremediavelmente colada à subjetividade de quem o viveu”. Além desse cordão umbilical subjetivo, existe o personagem Adonias, um médico que reside em Recife, como você, e é o narrador do romance. Adonias é alter ego de Ronaldo Correia de Brito?

RCB – Tenho repetido que não sou Adonias. Acho que o fato de ter escrito na primeira pessoa e emprestar um pouco de minha memória à memória do personagem sugerem esse ‘alter ego’. Tento ser o menos subjetivo quando escrevo, mas é impossível não repassar o meu sertão interior para Adonias, um pós existencialista perplexo, em busca de saídas para os seus impasses. Pelo menos numa coisa concordo com Joca Rainers Terron, não trabalho com matéria do folclore. O sertão é apenas paisagem, um lugar que também se apresenta em Nova Iorque, Paris e São Paulo.

JIVM – Há um grande afeto entre Ismael e Adonias. Em algumas passagens, é possível perceber um clima de paixão no ar, mas sempre muito contida. Qual o motivo da contensão? Seria por causa do código do Livro dos Homens?

RCB – Se de um lado sempre percebi os afetos que ligavam os homens nas sociedades sertanejas, também percebi quanto havia de ritual e de contido no modo como esses afetos eram expressos. Não podemos falar que a relação de Adonias e Ismael é uma relação homoerótica, numa leitura atual do que é homossexualidade, mesmo considerando que são dois personagens contemporâneos. Eles estão ligados por vínculos amorosos sim, como o rei Davi e seu amigo Jônatas, filho do rei Saul, conforme está escrito na Bíblia. Construí essa relação cerimonial e contida, para diferenciá-la de formas mais explícitas de exercer a sexualidade, como é o caso do personagem Davi, do romance. Concordo com o professor Lourival Holanda, quando ele faz uma leitura de Galiléia pela ótica da inveja de Adonias por Ismael. Nessa inveja cabe tudo: o desejo de ser ou ter o outro e o impulso de matá-lo com uma pedrada.

JIVM – A morte e os mortos são presenças certas em seus livros. Em Galiléia, João Domísio, personagem presente em seus dois livros anteriores, Faca e Livro dos Homens, aparece como um fantasma, assim como sua esposa Donana, a quem ele assassinara. Ismael retorna do mundo dos mortos. A sombra da “indesejada das gentes” ronda o leito de Raimundo Caetano. Não há fronteira entre morte e vida? A morte é que atribui sentido à vida de seus personagens?

RCB – Não, não existe nenhuma fronteira entre vida e morte. Vivi num mundo permeável a essa passagem do tempo, de uma existência para outro. João Domísio e Donana, mesmo tendo morrido há trezentos anos, circulam pela Galiléia, como se nunca tivessem saído dali. Existe um poema belíssimo do peruano César Vallejo que diz “quando alguém vai embora alguém permanece. (...) Somente está solitário de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou. (...) Todos de fato deixaram a casa, mas na verdade todos continuam dentro dela”. Assim é Galiléia, e assim era o mundo em que vivi.

JIVM – Há um embate entre Adonias e seu tio Salomão, personagens bastante representativos de duas linhas de escritores da chamada região Nordeste: os que defendem os valores da tradição do sertão profundo e os que estão antenados com a globalização. Como você entende essa discussão e em qual dessas vertentes sua escritura se alinha?

RCB – Tio Salomão é um personagem com todos os traços definidos, é um homem que chegou onde sempre soube que chegaria. Ele se move por um plano de idéias e visões do mundo que não se alteram, é como a rota dos planetas. É velho e sábio, já nasceu velho e sedimentado. Adonias vai ao sabor do vento, recebeu informações de todos os lados, viajou pelo mundo e sofre o embate interno de tudo o que leu, viu e escutou. É o protótipo do intelectual contemporâneo, perplexo e sofrido. Não tomo o partido de nenhum dos dois personagens. Deixo que eles falem e se exponham. O leitor que escolha o partido a tomar. Mas, é claro que estou mais próximo de Adonias, por minha própria história.

JIVM – Ao final da leitura, a impressão que fica é de que o romance vai ter sequência? E vai mesmo?

RCB – Não sei. Tracei o projeto de um livro bem maior em número de páginas, escrevi muito, mas terminei cortando o equivalente a outro livro. A busca obsessiva da exatidão atrapalha minhas investidas no romance. Não fechei Galiléia porque não enxergo saída para os impasses propostos no romance e também porque gosto de narrativas abertas, sujeitas a se continuarem no tempo. É possível que eu volte à Galiléia. Adonias termina preso dentro de uma paliçada de motos. Mas, nesse momento, só penso em descansar, passar uns dias na serra ou na praia, viver um pouco fora da literatura.

JIVM – “Falo somente com o que falo,/ com as mesmas vinte palavras”. Esses dois versos são de um poema intitulado “Graciliano Ramos:”, da autoria de João Cabral de Melo Neto. Seus três livros de contos, assim como o romance, atestam que você é conciso no dizer, escolhendo sempre as palavras. Qual a relevância desses dois autores dentro de sua obra? Algum outro autor brasileiro é referência na sua produção?

RCB – Eu nem achava que Graciliano Ramos tivesse muita importância para mim, mas fiz uma releitura de Vidas Secase fiquei impressionado com nossas afinidades. Também aprecio a forma como João Cabral chega aos ossos das palavras e versos. Por outro lado, gosto do romantismo de José de Alencar, injustamente desprezado, e das metáforas de Guimarães Rosa.

JIVM – Você começou escrevendo peças teatrais. Depois de um bom tempo de depuração, publicou três livros de contos e passou oito anos escrevendo um romance. Pode-se esperar que, mais adiante, Ronaldo Correia de Brito venha a publicar um livro de ensaios ou mesmo de poemas? Qual a próxima novidade?

RCB – Tenho dois livros de contos e um de crônicas para dar acabamento e publicar. Mas preciso de um tempo para isso. Estou com a encomenda de uma novela juvenil, que se passa no Recife. Porém, a serra e o mar, nesse momento de minha vida, são chamados mais fortes.

3 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Parabéns para Ronaldo Correia de Brito!

Anônimo disse...

Êi Zé, parabéns pela bela entrevista com o Ronaldo.
Sabe? Eu sou um grande admirador da obra dele. Já montamos aqui a peça teatral ARLEQUIM DE CARNAVAL. Um espetáculo maravilhoso.
Tomara um dia eu o conheça pessoalmente.
abraços
Tião Maia
sebastiao-maia@bol.com.br
Maau-RN

JIVM disse...

Gerana, o Ronaldo merece um grande prêmio desde que publicou o livro de contos "Faca". Estou torcendo para que ganhe também o Jabuti e o Telecom.
Tião, eu também sou fã do Ronaldo. Um dia ainda vou assistir tua montagem de "Arlequim de carnaval".
Abraços para ambos.
JIVM