Por Márcio Catunda
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Herdeiro da arte dos cultores da palavra, José Inácio bebe na fonte de Homero, de Castro Alves, de Augusto dos Anjos, de Walt Whitman e de Jorge de Lima, para difundir os seus hinos de mistérios elucidados pela claridade espiritual. |
José Inácio
Vieira de Melo publicou, recentemente, um livro extraordinário, intitulado Entre a estrada e a estrela, no qual o
poeta, em dois longos poemas, explicita uma teogonia e uma cosmogênese
pessoais, proeza a que poucos bardos se capacitam. Em “O mundo foi feito pra
gente andar”, primeiro poema dessa obra singular, José Inácio trilha o
itinerário dos que sentem a beleza de cada momento. Dialoga com o vento e ilumina
a mente com a lâmpada da Via Láctea. Conhece que a vida é ritmo e viaja na
trajetória que vai do horizonte ao firmamento, para afirmar, com a nota
autêntica dos bardos inexpugnáveis:
“Sou dono de céus
imprevistos que embalam paixões e delícias”
Ato seguido, não hesita em
declarar, com voz de oráculo:
“Sou o sangue da
terra”
Céu e terra conjugados na mente que imerge na expansão do pensamento e do
sentimento, emerge, andarilho e menestrel, na estrada que conduz às estrelas.
Com a verve espontânea dos cantores da essência, sublima o susto que a vida
impõe aos que se lançam na sua travessia:
“Posso atribuir
sentido ao meu sonhar”
Ora, atribuir sentido ao sonhar é, nada menos, que chegar à plenitude
visionária, em que o artista se devota, religiosamente, a seu ofício encantado.
Ele sabe que é preciso “abrir as janelas do sentimento para ver uma nova flor
no horizonte”. E assume, desse modo, a digna missão de sacerdote animista e
panteísta, conectando-se aos domínios da espiritualidade, em comunhão com a
sublimidade da natureza. Herdeiro da arte dos cultores magnânimos da palavra,
José Inácio bebe na fonte de Homero, de Castro Alves, de Augusto dos Anjos, de
Walt Whitman e de Jorge de Lima, para difundir os seus hinos de mistérios elucidados
pela claridade espiritual.
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Em Entre a estrada e a estrela, José Inácio Vieira de Melo eleva-se à voz do oráculo, que prediz as altas coisas do pensamento humano, integra-se aos elementos universais e se harmoniza com os três reinos. |
Em louvor à intensidade do estro de José Inácio, de denso conteúdo semântico, dá
testemunho Carlos Emílio Corrêa Lima, destacando a presença de “música tonal”
nos versos do aedo que, com o caduceu de Hermes, espalha chamas vermelhas que
se difundem no espaço. Eis a constatação mais sensível de que o autor de Entre a estrada e a estrela perfaz a
sublimação do sentimento, com a suave tonalidade de um erotismo afetuoso e
generoso, de que só os grandes poetas sabem inebriar-se. Elevando-se à voz do
oráculo, que prediz as altas coisas do pensamento humano, José Inácio se
integra aos elementos universais e se harmoniza com os três reinos. E vivencia
aquela ascese em que a alma, fragmento planetário, se identifica com a
totalidade cósmica:
“Sou um pedaço de
terra que vaga no Universo”
Tudo se plenifica e se unifica neste funil de imagens, em que o mais espesso
torna-se o mais fino. Eis que o poeta viaja na densa solidão meditativa, no
carro intergaláctico da liberdade espiritual, celebrando, “no portal os
sonhos”, a consciência que se afina com o teclado espectral do tempo:
“No filme da noite
encontrei o hoje dos
meus dias”
Na segunda parte do livro, que se constitui do poema “Na esteira do Infinito”,
José Inácio define, com maior nitidez, o “brilho” que surgiu da primeva noite,
“desencadeando estrelas e desdobrando vidas nas coisas mínimas”. Com esse canto
de altos voos, o rapsodo dá um salto quântico na escala mágica da arte poética,
e nos revela uma lírica iniciática, esotérica, que vem da tradição imemorial
dos poetas místicos, e se renova no ritmo espontâneo, que flui de suas
concepções sacramentais.
Em imagens exuberantes, o poeta nos fala do vazio em que tudo é atração e
conexão. A estrada que conduz às estrelas é o itinerário do homem consciente,
que conhece o seu vínculo com o Sol. Em sua profecia astro-teosófica, o
Universo disperso se unificará: Andromeda e a Via Láctea se encontrarão para
celebrar núpcias espaciais na esteira rutilante em que nós, também, seres
constituídos do pó das galáxias, nos fundiremos e nos eterizaremos nos giros da
expansão infinita. A vida é, portanto, em suas estrofes, uma viagem pelas
trevas à luz, do desconhecido até a imersão no fogo absoluto das
constelações.
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JIVM: "Sou um milagre e meu núcleo é um santuário" |
A esteira do infinito é a ressonância que os astros deixam na retina da nossa
essência. É a consciência de que o mar de prata das estrelas brilhará em nós,
quando nos misturarmos à explosão das ondas siderais.
“Somos uma
multidão que se agita
dentro de uma forma.
No núcleo das minhas
células,
no núcleo dos meus
átomos,
a vertigem, o oásis”
Nesses insights de consciência
cósmica, o poeta se revela iluminado, pleno do samadhi e do satori,
conhecedor da ciência da espiritualidade:
“Meu estado físico
concentra energia de todas as eras.
Venho de um passeio de
bilhões de anos.
Sou um milagre e meu
núcleo é um santuário”
Eis aqui estas orações de júbilo que o poeta entoa, glorificando o homem, partícula
do infinito eterno:
“Vento na estrada,
estrela no tempo”
Ele vê os dois lados da realidade, além do visível, o invisível que oculta e
desvela no seu sonho lúcido e beatífico:
“Mergulhar no mar,
no ar, no corpo, na noite,
tudo são formas de se
banhar nas misteriosas águas da vida”
Quem tem sensibilidade para pulsar com os dínamos da poesia merece ler esses
cantos de um poeta que sabe fluir nas ondas gráficas e sonoras que nos
conduzirão, no grande destino, aos píncaros eternos, onde as palavras ficam
gravadas no mural do Universo.
Márcio Catunda
nasceu em Fortaleza, em 1957. É poeta, ensaísta, contista e romancista. Autor
de vasta obra literária, inclusive discos de poesia musicada, seus textos
refletem as experiências por ele vividas ao longo dos 24 anos em que viveu fora
do Brasil, em oito países, como funcionário do Itamaraty. Seus livros de poemas
Escombros e
Reconstruções e Viagens Introspectivas receberam prêmios literários da Academia
Carioca de Letras e da União Brasileira de Escritores, respectivamente.
Fotos: Ricardo Prado
Capa: Felipe Stefani