quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

PEDRA SÓ E O POETA DE UM SERTÃO POLISSÊMICO

Por Catarina Buriti


Durante a 4ª Festa Literária de Marechal Deodoro (4ª FLIMAR), ocorrida em setembro de 2013, na cidade de Marechal Deodoro (AL), tive a oportunidade de dialogar, pela primeira vez, com o poeta José Inácio Vieira de Melo e de conhecer seu recente livro intitulado Pedra Só. Conforme a diversidade temática dos poemas, a obra é estruturada em cinco seções, quais sejam: Pedra Só, Aboio livre, Toada do tempo, Partituras e Parábolas. O livro é acompanhado por um CD, composto por seleção de 16 poemas, declamados pela própria voz do poeta, que também carrega título e cores do universo de Pedra Só.
Esta composição de escritos e sons corresponde à expectativa do público de José Inácio. Afinal, para quem o conhece, sabe que desperta a atenção e os aplausos de um público heterogêneo em todos os lugares por onde passa, especialmente pelo estilo de recitação que lhe é característico, com versos transfigurados sob a forma de emoções, gestos e melodias dos aboios, tradicionais músicas populares dos cantadores do Nordeste brasileiro. Tal ritmo remete às raízes da formação da chamada “civilização do couro”, conforme assim denominaria um dos nossos primeiros historiadores, ao referenciar os vaqueiros que desbravaram os sertões brasileiros, seguindo os resolutos passos do gado e construindo uma forte cultura pastoril.
A tônica da poesia de José Inácio perpassa a profundidade de sentimentos relacionados com experiências que protagonizou em diferentes lugares do Nordeste brasileiro. Tal é o caráter do livro Pedra Só, cuja polifonia e multiplicidade dos temas são alinhavadas por uma coerência que estrutura a linguagem de um poeta que vivencia, absorve e traduz o rico universo do Semiárido brasileiro. Fragmentos da realidade do homem sertanejo são reconfigurados, de forma verossímel, no universo simbólico da obra.
No livro, o poeta exprime versos permeados de vida intensa, arraigada à terra a qual pertence, ao cosmos da Caatinga, à fazenda Pedra Só, localizada no meio do Sertão da Bahia, lugar escolhido como refúgio, “abrigo e santuário” para compor belezas, esperanças e, por vezes, dores da sua vida-poesia. Na obra, aquele pedaço de chão sertanejo é animado pela intensidade do sol, metaforizado como fogo, serras, animais, árvores, pássaros, rios e pastagens. Neste cenário, o poeta compõe uma paisagem singular, entrelaçada à memória e à história de um povo, a um conjunto híbrido de lembranças e saberes compartilhados e ressignificados por gerações de cavaleiros que habitaram lugares impressos em seu imaginário.
Em Pedra Só, José Inácio enaltece uma poesia do humano, por meio da marcante figura do cavaleiro, que aparece nas variadas e transitórias dimensões do tempo, moldado e instigado pelo calor e pela liberdade do sertão das suas escolhas. Os versos do poeta são povoados por personagens de uma terra seca, segundo ele, “antiga cilada” que levou multidões de pessoas a seguirem com saudades em busca de outras plagas.
A fazenda Pedra Só, do município de Iramaia (BA), é a fonte dos poemas de José Inácio, e onde se materializa a tessitura dos versos que se universalizam ao narrarem e traduzirem um cotidiano de múltiplas cores, personagens, costumes, danças e rituais. A polissemia dos poemas que compõem o livro Pedra Só é ambientada no sagrado de uma natureza humanizada, sacralizada e transfigurada, que certamente supera imagens de um Sertão apenas seco e semiárido.
Tais imagens constituem, nas palavras do poeta, o florescer de um “Sertão encourando os primeiros saberes” (p. 26). Neste espaço simbólico, José Inácio apresenta sua poesia singular, leve, ao mesmo tempo, densa e complexa, que requer do leitor deleitar-se para interpretar o resultado de intensa e apaixonada genialidade artística.
A dinâmica da poesia de José Inácio, embora pareça transitar entre distintas fronteiras e territórios temporais, encontra analogia entre o agir heroico dos cavaleiros do Reino Pedra Só e dos intrépidos guerreiros que povoam a mitologia grega. Do complexo movimento de escritos e ritmos que aproximam e distanciam as dimensões do tempo, emergem versos que relacionam espacialidades distintas: a Ribeira do Traipu, do Sertão das Alagoas, com a qual o poeta mantém vínculos identitários, por meio da memória da sua infância; a Pedra Só, recôndito dos costumes e tradições baianos, escolhido pelo poeta como cenário para ambientar, inspirar e protagonizar seus versos. Neste sentido, o poeta parece adaptar o universo da mitologia grega à diversidade das tradições caatingueiras.  
José Inácio refigura, sob a forma de versos, sentimentos de solidão, alegria, amor, sonhos, esperança, medo... Parece acreditar que possíveis angústias diante das limitações enfrentadas pelos homens e mulheres no cotidiano sertanejo, podem ser superadas por meio da poesia; segundo ele, é com ela que se combate à morte, ela é capaz de inundar o mundo. Não se pode vacilar, caso contrário, a vida-poesia some.
A leitura do livro Pedra Só e a escuta dos aboios do poeta podem permitir uma melhor compreensão da complexidade da vida em um Sertão colorido, polissêmico, passível de interpretações, simbologias e sentidos diferentes em relação à monotomia de tantos discursos que insistem em cristalizar imagens distorcidas deste lugar.

Catarina de Oliveira Buriti nasceu em Picuí (PB), em 04 de outubro de 1985. Viveu sua infância e adolescência em Cisplatina, pequeno povoado do município de Pedra Lavrada (PB). Em 2004, migrou para Campina Grande (PB), onde graduou-se em Jornalismo pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), licenciou-se e fez Mestrado em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Desde 2010, atua como Assessoria de Imprensa do Instituto Nacional do Semiárido (Insa/MCTI) e como escritora de livros didáticos na área de história.

Texto publicado na revista Verbo21, na edição de janeiro de 2014 (http://www.verbo21.com.br/v7/2014/01/pedra-so-e-o-poeta-de-um-sertao-polissemico/) 

Um comentário:

Unknown disse...

Catarina Buriti vaqueijou belamente cada aspecto da poesia multifacetada de JIVM.