sábado, 2 de março de 2013

A FOLHA E O ESPINHO NA POESIA DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO


Por Ronaldo Correia de Brito

 Ilustração: Juraci Dórea
"O espinho e a folha como símbolos da poesia de José Inácio: lirismo e sobrevivência, beleza e alimento " 

José Inácio Vieira de Melo me deu seu livro Pedra Só com duas lembranças da fazenda onde ele se esconde: um espinho de mandacaru e uma folha de algarobeira. Servindo de marcadores entre as páginas e os poemas, interpretei o espinho e a folha como símbolos da poesia de José Inácio: lirismo e sobrevivência, beleza e alimento.
Uma vez por ano, na paisagem nordestina, o mandacaru se cobre de flores brancas, que exalam perfume embriagador e duram apenas uma noite. Abrem quando o sol se põe e mal o dia começa a clarear elas murcham. Parece a representação do fugaz. As longas pétalas e sépalas expõem a sexualidade floral do androceu e gineceu, celebram núpcias de algumas horas e depois se fecham e morrem. Uma floração passageira, diferente do mandacaru que teima em sobreviver ao estio, por anos e anos.
O cardeiro plantado na fazenda Pedra Só lembra a poesia de José Inácio. Mas os versos se espraiam bem além das antíteses entre espinho e flor, acutilada e afago, devassidão e ascese.

“Na Pedra Só,
as formigas tecem as escrituras
no abismo da noite tão enorme
e o espantalho veste a seda do orvalho
para receber de braços abertos,
o sabor das auroras, o sagrado”.

Zé Inácio não traçou meu roteiro de leitura. O livro abundante em memórias de gregos não possui um fio de Ariadne. O poeta não me revelou nada além da poesia e seus signos, de um espinho e uma folha, plantados como enigmas em meio às páginas. 
Ao acaso descubro na página 21 a folha da árvore mágica sertaneja, a algarobeira, “sempre verde ao chão vermelho, floreando mel sobre o voo das abelhas, poleiro das galinhas e das estrelas, maná de vagens amarelas, santa, santa, santa...”.  Zé Inácio compôs para a árvore santificada uma litania de ecos, sons nutrizes como os frutos da algaroba, poesia alimento, concreta, antítese do efêmero representado pela flor do cardeiro.
À sombra da árvore onde descansam cavalos, e cabras mitigam a fome, e agrônomos se queixam das raízes que chupam a água do solo e o empobrecem, e professores distribuem rações de sementes como se fossem chocolates aos alunos, e cães cochilam esquecidos, ali, resguardado à sombra, o poeta pensa em mulheres e sexo.

“Incrustadas por brasas aflitas
as fêmeas se enlaçam aos machos
e afloram gerações e gerações
           para desfolhar as pedras de Deus”.

E chegam para visitá-lo os poetas que o acompanham no exercício de sentir o mundo, a corporação de ofício de que fazem parte Ruy Espinheira Filho, Francisco Carvalho, Gerardo Mello Mourão, Florisvaldo Mattos, Mariana Ianelli, Bob Dylan e tantos outros danados, porque Zé Inácio nunca fica sozinho, o exercício da poesia é para ele o encontro com pessoas e música, para ouvi-las e pedir que escutem seus aboios. Também chegam os filhos Carlos Moisés e Gabriel Inácio, os compadres Gabriel Gomes e Ricardo Prado, o pai mandando por fogo na mata, o vento da Ribeira do Traipu e a madrugada sertaneja, vozes secas, aboio livre, outono e chuva de Páscoa. Chegam excitados e solenes e sentam enquanto esperam o banquete de poesia que será servido nas páginas de Pedra Só.

“Só tua boca pode receber este mel
e conhecer as liturgias das areias
e saborear o sangue das origens
           no cálice que transborda nesta mesa”. 

Ronaldo Correia de Brito é dramaturgo, contista, romancista, documentarista, médico e psicanalista. É autor dos livros de contos Faca, Livro dos homens e Retratos imorais, além dos romances Galileia e Estive lá fora.

Artigo publicado no Jornal A Tarde, no Caderno +2, na página 3, em Salvador-BA, em 2/3/2013

10 comentários:

Rosa Ramos disse...

José Inácio Vieira de Melo tece suas escrituras de par com o sagrado, como diz um de seus poemas.

Selmo Vasconcellos disse...

Não é à toa que sou um leitor inveterado do José Inácio Vieira de Melo, tenho vários livros dele na minha estante e sempre um nas mãos. Um abraço e sucesso, poetamigo. E ainda feliz de ter uma foto com ele na Bienal do Rio.

Ionara Gallina disse...

Tua poesia é penetrante! Adoro! Obrigada!

Mazé Anunciação disse...

Eita, José Inácio, o teu canto sublime da passarinho lírico está se esparramando por todos os lugares. Parabéns! Você é um poeta que chega junto, bem dentro da gente, lá no âmago. Beijinhos!!!

Florisvaldo Mattos disse...

Zé Inácio: amigo, há tempos que não leio uma resenha tão bem escrita, como lingauagem e como análise, igual a esta de Ronaldo Correia de Brito, publicada hoje em A Tarde. Não li o livro, mas avalio a qualidade não só por esses bem inspirados elogios, mas pela obra do vate sertanejo que é você que se afirma pela força telúrica da poesia que publica. Valeu, fostei de ler.
Mandei um e-mail para ele, Ronaldo, elogiando o texto.

Mosa Lv disse...

Obrigada por este "banquete de poesia". Abraço

Geraldo De Majella disse...

Poeta você é definitivamente o cantador do sertão das Alagoas e da Bahia, dos sertões no sentido mais amplo e poético.

Fátima Campilho disse...

Sigo com os meus/nossos espinhos de cada dia. Parabéns pelo artigo sobre Pedra Só.

Salgado Maranhão disse...

Parabéns, Poeta, fico feliz com o crescente reconhecimento da sua poesia, tudo chega na hora certa, quando há talento e trabalho competente. Grande abraço, Salgado Maranhão.

Luciana Frutuoso disse...

Você arrebenta meu amigo José Inácio Vieira de Melo.. orgulho para todos os brasileiros a sua existência! Parabéns pelo reconhecimento, por toda a sua trajetória, sucessos sempre! Abração!