Por Vilma Costa
O livro 50 poemas escolhidos pelo autor, de José Inácio
Vieira de Melo, oferece múltiplas possibilidades de leitura. Neles encontramos
mãos de trabalhador do verso, que cultiva uma terra árida, mas firme de se
pisar. Na invenção dessa poética, algumas imagens se insinuam e buscam
cúmplices ou simples interlocutores em leitores e amantes. O tom dos poemas tem
um cunho clássico no que tange ao cuidado com a composição. Há certa cerimônia
nas dedicatórias a amores, a amigos e na utilização das figuras míticas, tanto
as greco-latinas quanto as cristãs. Por outro lado, utiliza-se como
matéria-prima a simplicidade de um espaço cercado de signos de naturezas física
e humana que dialogam entre si. O fazer poético é, como no poema Ciço Cerqueiro, uma tarefa clara e bem definida de
alguém que persevera e faz desse trabalho uma profissão de fé: “O meu é fazer
cerca:/ cavar buraco, aprumar mourão,/ esticar arame com pé-de-cabra,/ apregar
grampo nas estacas”.
O processo se dá na
tensão permanente de reunir elementos de uma natureza concreta, como as pedras
do caminho, a rosa e seus símbolos de beleza, e a carne viva de um coração que
pulsa, de um sangue que corre e se derrama sobre os espinhos que ferem. As
cercas que se fincam tentam definir limites entre esse exterior, “lá longe”, em
contrapartida com as “plagas interiores” do sujeito. São fronteiras porosas
como a teia de uma aranha, como o tecido do texto que se tece. Nessa porosidade
é que os dois lados se atravessam, permutam posições e se fundem, na maioria
das vezes. Elementos concretos da natureza se entrelaçam, numa rede paradoxal,
com a interioridade do eu lírico: “Meu coração é mesmo a rosa viva./ Por isso,
cuidado ao pegar/ suas pétalas — pedras tão aflitas”. Ou seja, tanto as rosas
quanto as pedras têm uma funcionalidade nessa teia que se constrói com cada
verso. Não são, portanto, apenas adornos ou acasos. São fios de silêncios e
zoadas internas, em labirinto, que inscrevem esse sujeito num universo de outra
natureza: nem pedra nem sangue, a linguagem. É esta e as escolhas do poeta
nesse campo que servem de mediadores entre este mundão e a “zoada” que o
aflige. “Os livros já foram lidos e tudo já foi dito:/ resta o silêncio — este
corvo doido, resta a folha de papel em branco/ urubuzando minhas dores,/
buscando meus anagramas”.
A linguagem, esse
“registro da fala do silêncio”, de “um silêncio plural e de fogo”, é que
desafia a folha em branco. Cada poema se basta pelo que foi fincado em seus
buracos, pelos arames esticados em suas cercas, pelo que foi dito ou que ficou
por dizer em palavras queimadas pelo silêncio “antes de serem”.
Fotógrafo: Ricardo Prado
As imagens construídas
nessa natureza de papel em branco, palavras e letras podem se confundir com a
natureza concreta de um ambiente rural no qual se insere o poeta. E mesmo este
poeta, pessoa física, com nome, sobrenome e identidade, pode se confundir com o
sujeito inventado que se diz e se define na folha de papel com seus versos. Mas
não são os mesmos. Possuem diferentes naturezas, um é feito de carne e osso, o
outro, de signos, sonhos e palavras. Dialogam entre si, encontram-se,
escondem-se um do outro, um no outro, perdem-se, inventam-se. A invenção do eu
múltiplo se desdobra em um tu que não promete nada, mas se afirma como veículo
de interlocução e esperança de encontro, quase comunhão. No poema Estrangeiro, por exemplo, o “tu” chega com seus
espelhos, com sua bússola indicando o norte, mas o eu narcísico não se
reconhece: “Agora, ao me olhar no espelho, não vejo/ nem o vulto do meu rio
liberto.// Perambulo sem ter rumo certo:/ estrangeiro, de mim tão disperso”. A
dispersão e o sentimento de estar perdido, ou se perdendo, são correlatos à
escrita em labirinto que percorre muitos dos poemas. Um sujeito que se define
como filho do sol e cavaleiro de fogo se reparte em chamas, mergulha em seus
vazios e busca o amor em seres vestidos de água.
Natureza rural e o Cosmo
são modelados pelas mãos que pintam nessa folha: “Escuto o alarido dos pássaros
do Sertão./ Debruço-me no ninho do Cosmo. Minhas mãos trabalham no vazio./… Dos
meus dedos explodem labirintos”. O corpo talvez seja o elemento unificador
dessas naturezas tão diversas. As mãos que compõem os versos são de um corpo
que borda o corpo do texto, na concretude das palavras e na incorporalidade de
seus signos e sentidos. O corpo do sujeito inventado se desdobra na
interlocução com o outro, pela linguagem verbal, pela linguagem gestual e
sensual. As amadas e o próprio amor (muitas vezes ama-se mais o ato de amar do
que o próprio ser amado) são elementos líricos que povoam essa poética. O
encontro se dá através do impulso erótico do mito, que é mais amplo que a busca
sexual, apesar de incluí-la como natural e importante. Trata-se de uma busca de
completude que nunca se realiza, ou seja, quando se realiza anuncia a única
completude plenamente possível e definitiva: a morte. “Esse teu brilho de
agora,/ são cacos — rastros errantes/ que persistem na busca inútil/ da tua
primeira semente”. Busca inútil, mas persistente da semente de uma origem que
se desloca no tempo e no espaço. Um tempo que engole os dias e dispensa
calendário, pois se constitui da fé na circularidade mítica. Um espaço físico
concreto de um sertão nordestino que deságua no Cosmo indefinido e generalizado
de um universo simbólico.
Fotógrafo: Ricardo Prado
Apesar da predominância
do eu lírico como elemento aglutinador de tantos sentidos, sua construção
acontece em alguns momentos através de vozes que se multiplicam recolhendo
fragmentos da memória e da vivência presentificada. “Ouço vozes — muitas vozes
—/ dentro de mim mesmo,/ todas dizem que é preciso prosseguir”. Não é
propriamente o que se poderia chamar da polifonia definida por Mikhail Bakhtin,
já que todas parecem depender desse sujeito, e dentro dele se aglutinam. Com
todas as suas contradições, impulsionam-no a prosseguir num eterno retorno.
Como leitores, somos convidados a participar da teimosia do poeta. Como diria
João Cabral de Melo Neto, em sua Psicologia
da composição: “Cultivar o deserto/ como um pomar as avessas”. Eis a tarefa.
“Parto para o princípio
do labirinto”, num
princípio que não é, necessariamente, um começo, mas um caminho sinuoso a
percorrer ou ainda, muitos deles, para se perder na lógica de labirintos. Não
há início, meio e fim. Cantar o “ciclo da origem” ao “som do coro das sereias”
é um convite sedutor e cheio de perigos, mas que o poeta, através de um sujeito
lírico audacioso, aventura-se e corre todos os riscos. O ciclo da origem, pelo
princípio do labirinto, não é fixo, ou seja, não oferece certezas. Se há um
partir, não há exatamente um chegar. A busca é um “parto”, renascer a cada tentativa é o
desafio.
Vilma
Costa é professora de literatura. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Artigo
publicado originalmente no Rascunho,
o jornal de literatura do Brasil, edição
149, setembro de 2012, em Curitiba, no Paraná.
4 comentários:
Li toda a resenha, pode fica tranquilo e feliz porque a Vilma Costa desnudou seu poema com as lentes do conhecimento, do fazer poético e com um coração de quem parece entender o nosso sertão profundamente. Parabéns Vilma! Parabéns grande poeta!!!!!!!!!!!!
Parabéns para Vilma por ter colocado tão bem as palavras sobre sua obra.
JIVM, são os frutos do reconhecimento que estás a colher. Desfrute com merecimento. Abraços.
José Inácio, isto não é uma crítica literária, é uma louvação ao teu trabalho... Eu como terapeuta, além de poeta, posso te dizer que tudo o que fazemos, escrevemos, tem que passar pelo crivo do sentido no corpo. Daí teus poemas calarem fundo na gente. Tu não foges do sonho, e nem do corpo; amalgamas os dois e constróis tuas letras.
Que belo estudo sobre teu livro, José Inácio, puro território da poesia. Parabéns, meu amigo, e sucesso com teu livro.
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