sábado, 22 de setembro de 2012

DIÁLOGO ALÉM DOS CENTROS

Por Wilmar Silva

Wilmar Silva, autor de “Z a zero”, provoca um diálogo com José Inácio Vieira de Melo, um dos autores mais originais da atualidade, nascido no Nordeste profundo, vindo de um Brasil colorido de contrastes, onde a poesia se revela através de uma lírica eivada de verdade. Lírica que coloca em questão a poesia contemporânea brasileira, em questão porque é necessário se abrir a experiências de linguagem além dos centros, centros que devem também ser ocupados pelas margens que o definem. José Inácio Vieira de Melo, autor de “Pedra Só”, de repente, na cantaria do verbo.

 Foto: Ricardo Prado
JIVM: "Eu leio o mundo através da poesia".

WILMAR SILVA – Sendo um Caeté de origem, por que romper com o umbigo e partir a caminho da Bahia de todos os demônios?

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Porque o mundo foi feito pra gente andar. E a Bahia é tão aconchegante, tão mãe, tão fêmea. Ter vivido na cidade de Maracás e na fazenda Cerca de Pedra por uma década foi uma experiência ímpar. Em Maracás, eu vivia num processo de embriaguez constante. Ainda assim aproveitei muito da beleza da cidade das flores e dos encantos das suas filhas. Na roça, o fascínio das estrelas; as leituras, alumiado por candeeiro; a companhia do fascinante vaqueiro Damião Tavares Neto, com quem tangi muito gado pelos varedos da caatinga. Oito anos em Salvador abriram-me vários caminhos: fiz graduação em jornalismo e, principalmente, tive a compreensão da importância da poesia em minha vida. Conheci ‘todos’ os poetas da Bahia, conheci poetas de todas as partes do Brasil. Publiquei livros. Coordenei projetos. Passeei pelas ruas e becos da velha São Salvador, de mãos dadas com meu filho Moisés. Nossa, que experiência linda! Como diria Gilberto Gil, a Bahia me deu régua e compasso. Atualmente divido meu tempo entre Jequié, a Fazenda Pedra Só e os vários cantos e recantos do Brasil. Outro dia estava com você, Wilmar Silva, em Belo Horizonte, recitando poesia no projeto Terças Poéticas. Há quinze dias estava na Festa Literária de Boqueirão (Flibo), no Cariri paraibano e na cidade de Campina Grande, soltando meus versos para aquela gente forte e hospitaleira da Paraíba. No próximo final de semana, 13 e 14 de abril, estarei nas cidades de Maracás e Planaltino, no Vale do Jiquiriçá, para a estreia da edição de 2012 dos projetos Uma Prosa Sobre Versos e Palavra de Poeta, dos quais sou curador. E vou inventando meus passos...

WS – Se a poesia não serve para nada, por que aquelas noites entre coivaras vendo a queda das estrelas?

JIVM – Já afirmei que a poesia não serve para nada. Mas sou contraditório. Agora, sinto que a poesia, esta praga sagrada, é minha cruz e salvação. A poesia é aquelas noites, é a chama daquelas coivaras e é também os bilhões de estrelas. Eu leio o mundo através da poesia.

WS – O que significa ser poeta no terceiro milênio depois da Semana de Arte Moderna, das Poesias Concreta e Marginal?

JIVM – Significa o que significa. Não sinto que os questionamentos e avanços de linguagem desses movimentos tenham esgotado as possibilidades da poesia. Ao contrário, creio que ampliaram o leque de possibilidades. E cada qual, no seu tempo e espaço, movimenta-se do jeito que pode. Eu faço poesia por uma questão de sobrevivência, por uma necessidade premente. O resto é café pequeno.

 Foto: Vitor Nascimento Sá
JIVM: "Em mim, o poema nasce de um relampejo".

WS – "A Terceira Romaria" apreende uma poética em estado de infância, ou a infância é um inferno perdido na memória?

JIVM – Meu amigo Mayrant Gallo tem um poema que diz assim “Cheguei ontem de muitos lugares./ Mas nenhum enfim que fosse melhor/ Que a infância.” A minha infância teve momentos extraordinários. Outros nem tanto. “A Terceira Romaria” é a peregrinação da criança pelo Sertão cósmico, repleto de encantos e de magia, povoado por vaqueiros míticos, por velhos místicos e por almas penadas. Ainda hoje zunem na amplidão do meu ser o som dos rodeiros dos carros de bois e os aboios dos vaqueiros – resplandecentes, vibrantes. “A Terceira Romaria” é o caminho que leva para “A Infância do Centauro”.

WS – "Roseiral" é a antropofagia de José Inácio Vieira de Melo ou a invenção de um Duino Selvagem?

JIVM – “Roseiral” é o soluço que sai da casa do medo cheio de coragem. As pétalas do meu “Roseiral” são as pedras da transmutação. E não facilite não, pois nem você, poeta do “Silvaredo”, está livre de receber uma pedrada perfumada de metáforas. Quem inventou o Duíno Selvagem foi você. E eu gostei.

WS – Para Ezra Pound poesia não é literatura e para Novalis poesia é religião, e para José Inácio Vieira de Melo o que não é poesia?

JIVM – Até o nada é poesia, portanto tudo é poesia. Principalmente o que não existe. É no que não existe, onde o pensamento não sonha ir, lugar que fica pra lá do nascimento das estrelas, é nesse espaço que tenho feito minhas peregrinações em busca da poesia. Às vezes, volto com o matulão prenhe de versos; noutras, perplexo e vazio. Aí, olho ao lado, e lá está a poesia, bem no terreiro da minha infância. A poesia é a minha religião, a minha bênção, a minha loucura.

WS – O poema é escrito quando é escrito ou o poema nasce antes de ser pensamento?

JIVM – Em mim, o poema nasce de um relampejo. Às vezes, é toda uma possessão e brota em estado de mediunidade. Mas, na maioria, vem um sopro ou uma tempestade lírica, e o resto é tempo e trabalho. Há momentos em que o sujeito passa horas diante de um verso e sente que há algo sobrando, mas não consegue enxergar onde está o excesso. Dias ou semanas ou meses depois é que vem à tona o caroço de feijão estragado.

WS – Se Gregório de Matos e Guerra estivesse vivo o que ele escreveria sobre a Bahia e sua boca do inferno?

JIVM – Continuaria cuspindo seus versos de fogo. A Bahia, como todo lugar, tem um panelão de medíocres arrotando genialidade, submersos na gordura da inveja. São cães e cadelas desbocados que ladram, ladram, ladram. Mas, coitados, são desdentados.

WS – Ferreira Gullar introduziu na poesia a palavra “diarréia” e você, José Inácio Vieira de Melo, por que a sílaba “cu”?

JIVM – Rapaz, Gregório de Mattos, Ferreira Gullar, Ildásio Tavares e tantos outros mostraram o cu (na poesia). Eu apenas falo do “cu de tua irmã”. E existe uma palavra mais resolvida, mais aberta e mais doce, apesar do fel que encerra, do que a palavra cu?

 Foto: Vitor Nascimento Sá
José Inácio Vieira de Melo e Wilmar Silva na Fazenda Pedra Só
JIVM: "O Brasil Sudeste não conhece o Brasil e mal se conhece,
apesar de viver  em função do próprio umbigo".

WS – Fosse viver “Une Saison en Enfern” que poetas você colocaria no pau-de-arara de viagem à Pedra Só?

JIVM – Não levaria fantasmas. Levaria poetas vivos e vivazes, dispostos a rasgar os peitos, a derreter a gordura na inclemência do sol da caatinga. Esses eu levaria de bom grado. As outras coisas que vem junto, nessa travessia, meu amigo, não há ouro que pague: invadir o vento num galope, sentir um carinho morno ao derredor de uma fogueira, ver as centelhas se transmudarem em estrelas, e beber o mel das estrelas e o mel das abelhas e das musas, e ouvir o canto do espanta-boiada e voar nas asas do espanta-boiada. Pois bem, para essa estação, escalaria Elizeu Moreira Paranaguá, Mariana Ianelli, Roberval Pereyr, Alexandre Bonafim, Kátia Borges, Vitor Nascimento Sá, Bruno Gaudêncio, Cleberton Santos, Iracema Macedo, Antonio-Mariano e, claro, Wilmar Silva, o Cavaleiro da Queda Anunciada. Eis a minha seleção.

WS – Sempre em busca de diálogos entre a Bahia e o Brasil, o que existe de relevância na Roma Negra de agora?

JIVM – Bons poetas estão em atividade, produzindo e mostrando seus versos. Os baianos que citei na resposta anterior e outros, também com o trabalho reconhecido, como é o caso de Luís Antonio Cajazeira Ramos, Mayrant Gallo, Narlan Matos e Rita Santana, e outros que estão estreando e que muito prometem. Entre esses Georgio Rios, Martha Galrão, Ricardo Thadeu, Priscila Fernandes, Daniel Farias, Lívia Natália e vários outros. São vozes entre vozes, mas que se destacam do coro. E outras tantas vozes sonantes e dissonantes.

WS – O fato de ser um poeta de aboio abre ou fecha doors ou dores frente ao Brasil Sudeste?

JIVM – Cara, o Brasil Sudeste é que está trancafiado. O Brasil Sudeste é que está preso e as paredes são de espelhos. O Brasil Sudeste não conhece o Brasil e mal se conhece, apesar de viver em função do próprio umbigo. Não preciso do aval do que você chama de Brasil Sudeste, essa invenção abobalhada. Preciso da poesia de Carlos Drummond e Murilo Mendes, de Mário de Andrade e de Dora Ferreira da Silva, de Cecília Meireles e de Vinícius de Moraes, que, ao contrário de criar barreiras, rompe-as. E mais, as doors que estiverem fechadas no meu caminho, eu mesmo abro. O meu aboio é da estirpe de Jorge de Lima, Gerardo Mello Mourão, João Cabral, Patativa do Assaré, Florisvaldo Mattos, Francisco Carvalho, José Chagas e Alberto da Cunha Melo. O meu aboio é livre.

WS – Como escrever um poema enquanto um menino vende balas nos sinais do Brasil de mentiras?

JIVM – Como não escrever um poema enquanto um menino vende balas nos sinais do Brasil de mentiras? Por que não escrever um poema enquanto um menino vende balas nos sinais do Brasil de mentiras? O poema pode ser uma mentira que fale as verdades desse Brasil de mentiras. O poema pode dar nome às balas que tiram vidas de meninos. O poema pode instaurar uma nova ordem onde os meninos chupem balas e decifrem os sinais da dignidade. O poema pode.

 Foto: Vitor Nascimento Sá
Wilmar Silva e José Inácio Vieira de Melo na Fazenda Pedra Só
JIVM: "Na minha vida, não faço outra coisa que não seja cumprir a missão
que Jesus me ofereceu: levar a palavra poética aos povos, pelo mundo afora".

WS – A língua que se fala no Brasil é o mesmo idioma que se vive nas caatingas?

JIVM – Seu moço, como ensinava o mestre Rosa, o Sertão é o mundo. E eu lhe digo, o Brasil é um caatingão onde todos falam a mesma língua. Algumas gentes de meia dúzia de metrópoles é que não falam a língua do Brasil.

WS – Além de “Concerto Lírico a Quinze Vozes”, existe mais Sangue Novo na Bahia?

JIVM – É o que mais tem. Basta ver a força de Janara Soares, Nívia Maria Vasconcellos, Vânia Melo, Érica Azevedo, Clarissa Macedo, Raiça Bomfim e Gabriela Lopes. E tantas outras e outros.

WS – “Eu vou me vestir de índio para tirar teu escalpo”, José Inácio, a que se deve a miséria no Brasil?

JIVM – À ignorância, ou seja, à falta de compreensão. Compreender não é apenas tomar conhecimento de. Compreender é ter consciência das coisas, sobretudo dos deveres e direitos. Só existe ignorância onde não há compreensão. E o principal caminho para se chegar à compreensão é através da educação.

WS – Eu não acredito em eu lírico e não suporto epígrafes. Como falar do sertão aos quarenta anos?

JIVM – Eu acredito em eu lírico e não tenho nada contra as epígrafes. O Sertão é o Tao do Ser. Ao entrar na casa dos quarenta, com dois filhos e muitas responsabilidades, o Sertão ganha outra dimensão. E é preciso viver o sertão interior e levar os meninos para viverem o Sertão, para que eles descubram o seu sertão. O que mais fazer se não falar do Sertão?

WS – Se não basta a língua em estado de dicionário, o que é a sintaxe para José Inácio Vieira de Melo?

JIVM – A sintaxe é, quando, no outono, as folhas secas caem até formar um colchão, onde eu e minha amada vamos nos deitar e inventar a poesia do nosso gozo para a árvore que nos acolhe e para o Cosmo que nos assiste.

WS – A humanidade é mesmo um fracasso ou somos a beleza de que fala Walt Whitman?

JIVM – Manoel de Barros disse que Beethoven é um erro perfeito de Deus. Não acredito em perfeição, mas que somos um erro de Deus. E que erro! Por isso erramos pelo mundo, criando sentidos para a nossa existência órfã. Sim, essa consciência de finitude arrasa com a gente! Mas, condenados a assistir o declínio dos nossos entes queridos e a arrastar a nossa pedra tumular, dia após dia, ainda assim somos capazes de atos beleza, somos capazes de amar. E como não ficar admirado e feliz ao ouvir a música que o surdo Beethoven fez. Como não ficar encantado com a poesia e com os contos de Jorge Luis Borges, o cego. E Charles Chaplin? E Luis Gonzaga? E Gandhi? E Whitman? E Cristo? E tu? E eu? E nós?

WS – E você, José Inácio Vieira de Melo, transaria com Jesus Cristo para herdar o paraíso?

JIVM – Minha transa com Jesus Cristo acontece de outra forma: através da poesia, que é a minha religião. Jesus é a Estrela do Oriente, ocupa um lugar de destaque dentro do meu sentimento. Ele é meu Mestre. Na minha vida, não faço outra coisa que não seja cumprir a missão que ele me ofereceu: levar a palavra poética para os povos, pelo mundo afora. Sou herdeiro natural do Paraíso.


Entrevista publicada na revista virtual Musa Rara (www.musarara.com.br), em 17 de setembro de 2012

12 comentários:

Cecy Barbosa Campos disse...

Uma boa entrevista depende fundamentalmente de um bom entrevistador. Parabéns a Wilmar Silva q soube com perguntas inteligentes levar JIVM a demonstrar todo o seu brilho.

Vernaide Wanderley disse...

Continue com sua leitura sobre o mundo. Vai fortalecendo sua visão de mundo - sempre a partir "de uma aldeia" chamada sertão. Parabéns pela entrevista. Beijão querido!

Agueda Correia disse...

Obrigada JIVM pela identificação!!! poesia é - poesia faz-se no sentir - todo aquele momento de entrega e partilha entre os diferentes "sentires" e os diferentes "seres" - tanto pode ser momentos sublimes de pura observação como de interação - é magia - é criação ... pode ser causa e efeito em simultâneo (...)!!! - poderá ser uma forma "saudavel" de ajuda, no encarar das realidades muitas vezes "pesadas" - pode ser um estado de "leveza/bem-estar" - contemplativo ...

Alcídia Piteira disse...

Não conheço totalmente a obra completa de José Inácio Vieira de Melo, por diferentes razões que vou tentar ultrapassar. No entanto, pelos excertos que tive oportunidade de apreciar, descobri uma sensibilidade e arte (embora já reconhecida do grande público), que me levam a coloca-lo no patamar dos meus poetas de eleição. Obrigada José, por nos dar a conhecer um pouco da seu sentir, tendo como instrumento a palavra. E neste caso, a palavra "pedra preciosa”, tornada poesia.
Parabéns poeta amigo

Stella Maris Rezende disse...

José Inácio Vieira de Melo, fiquei encantada com suas palavras! "Uma pedrada perfumada de metáforas", Nossa!

Carlos Conrado Spykezem disse...

" JIVM: "Na minha vida, não faço outra coisa que não seja cumprir a missão que Jesus me ofereceu: levar a palavra poética aos povos, pelo mundo afora"." Caro poeta, a cada dia nos surpreendendo e nos brindando com a essência de tua alma. O teu talento e versos são presentes para a cultura brasileira. O despir da tua poesia esta cada dia mais ousado! Poeta Maior, sem dúvidas, José Inácio Vieira de Melo, um dos nossos maiores representantes da Literatura Contemporânea.

Eliana Pinto Marques disse...

José Inácio Vieira de Melo é um dos poetas mais incriveis que eu conheço, e merece tudo que essa profundidade dele traz, a poesia Brasileira. EU TIRO O CHAPÉU!!!

Elenice Veloso disse...

Adoro ler suas entrevistas....continue com este olhar sobre todas as coisas, assim temos o privilégio de nos encantarmos com sua obra de tao grande sensibilidade, poeta "arretado de bom"'.....bjus e sucesso!!!!!!!!

Eduardo Rennó disse...

Excelente entrevista, JIVM! Simplesmente genial! Como disseram aí em cima: "Até sua entrevista é pura poesia". Vc faz, em uma entrevista, uma poesia belissimamente construída em prosa e conversa - como se fosse à beira de um fogão de lenha.
Assino embaixo o que tu disseste sobre o Sudeste, fechado em si.
Grande abraço das Minas, tão carregadas de Sertão também.

Fernando Reyes disse...

Tive o honor a traduzir estos dois grandes poetas. Parabens

Lucidalva Rangel disse...

Que beleza, caríssimo Poeta. Obrigadão pelo maravilhoso presente matinal. Um espetáculo essa entrevista... Abraços acompanhados de desejos de uma ótima semana!!!

Fabiana Ferraz disse...

Maravilhosa entrevista. É um poeta nato!!Parabéns Inácio!!!Bonito de se ler. Sucesso sempre.