quarta-feira, 20 de junho de 2012

CANTINHO DO CONTO - QUANDO EU ESTAVA A CAVALO SOBRE MIM MESMO

Por Bruno Gaudêncio


QUANDO EU ESTAVA A CAVALO SOBRE MIM MESMO
        Para Nelson de Oliveira

“(...) som de tudo que é um som de silêncio,
mais que ruído ou voz, que se distinga a solidão.”
Ricardo Guilherme Dicke

Quando eu estava a cavalo sobre mim mesmo, montado na sela das penumbras existenciais, procurei lançar no jogo dos espelhos luzes na escuridão de Etílio, visto que fui deveras invadido pelo terror da presença enigmática de sua finitude cruel. Trôpego, ganhei as pedras assustado com o sangue da vítima, molhando cada detalhe nos cheiros das alucinações. As escuridões das esquinas nas serras aos quatro pés ardiam no poço escuro das amarguras e lamentações. Fitei as linhas dos ouvidos, das bocas, escutando o manobrar dos trilhos da voz clamorosa, exigindo na bruma um ventre límpido, cuja faca formaria um arrepio em dentes de pavorosas sombras. Reconheci vibrante, apesar de cadáver, o ser que estava trajado nas súplicas cadeiras de terra e cal. Alto, Etílio atinava as subidas serras do ar berrante, beijando o canivete rubro nas impróprias castanheiras. Meu pescoço sentia a navalhada vibrante desposando as fibras no sangue quente e ardente da faísca. Etílio clamava retratos dignos na voz dos ossos. Olhares nas coxas tornadas dos bichos observavam as vargens do sítio. Pavorosas testemunhas do assalto que em mim indiscretas desviavam lâmpadas de impaciência, atropelando a noite na rigidez da memória. Vento a sussurrar desafios nas bordas do queixo. A luz e o rigor da condenação invadindo a cada minuto. A poeira nas sonoras crostas da alma. Calcava a chuva imóvel quando o íntimo bruto gritou saliva e sangue aos meus ouvidos, respigando agruras nas cinzas dos pés da algaroba. O cavalo ao mesmo tempo suspirou negramente as vergonhas.  A penumbra exaltada clamou em uma breve história do espírito, um perdão que não havia, em meio aos espantalhos habitados de pássaros. Voltei correndo, deixando a vista buliçosa na praça da minha pele, larga e fugida, em meio aos pêlos do cavalo que se confundiam com os meus. Etílio continuava alto na voz dos espantos. Canhão de dores ardia nas gramas das pernas. As penugens queimavam ao som das peles púrpuras. Quando cheguei ao conforto da casa, cobri os olhos com o desinteresse dos meus cabelos e nas crinas cravou-se um aço. Meus medos desviavam atônitos os ovos apunhalados da tradição. Dedos galgavam heróicas explicações sombrias sobre a solidão eterna do temor, nos pés das calçadas. E eu continuava vivo no abrangido suspiro de Etilio no ar da janela.


Bruno Gaudêncio é escritor, jornalista e historiador. Nasceu em Campina Grande, Paraíba, em 02 de dezembro de 1985. Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Graduado em Jornalismo e História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou os livros O ofício de engordar as sombras (poesia, 2009) e Cântico voraz do precipício (conto, 2011). Edita a revista eletrônica de literatura Blecaute (http://revistablecaute.blogspot.com/)

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