Por Bruno Gaudêncio
QUANDO EU ESTAVA A CAVALO SOBRE MIM MESMO
Para
Nelson de Oliveira
“(...) som de tudo que é um som de silêncio,
mais que ruído ou voz, que se distinga a
solidão.”
Ricardo Guilherme Dicke
Quando eu estava a cavalo sobre mim
mesmo, montado na sela das penumbras existenciais, procurei lançar no jogo dos
espelhos luzes na escuridão de Etílio, visto que fui deveras invadido pelo
terror da presença enigmática de sua finitude cruel. Trôpego, ganhei as pedras
assustado com o sangue da vítima, molhando cada detalhe nos cheiros das
alucinações. As escuridões das esquinas nas serras aos quatro pés ardiam no
poço escuro das amarguras e lamentações. Fitei as linhas dos ouvidos, das
bocas, escutando o manobrar dos trilhos da voz clamorosa, exigindo na bruma um
ventre límpido, cuja faca formaria um arrepio em dentes de pavorosas sombras.
Reconheci vibrante, apesar de cadáver, o ser que estava trajado nas súplicas
cadeiras de terra e cal. Alto, Etílio atinava as subidas serras do ar berrante,
beijando o canivete rubro nas impróprias castanheiras. Meu pescoço sentia a
navalhada vibrante desposando as fibras no sangue quente e ardente da faísca.
Etílio clamava retratos dignos na voz dos ossos. Olhares nas coxas tornadas dos
bichos observavam as vargens do sítio. Pavorosas testemunhas do assalto que em
mim indiscretas desviavam lâmpadas de impaciência, atropelando a noite na
rigidez da memória. Vento a sussurrar desafios nas bordas do queixo. A luz e o
rigor da condenação invadindo a cada minuto. A poeira nas sonoras crostas da
alma. Calcava a chuva imóvel quando o íntimo bruto gritou saliva e sangue aos
meus ouvidos, respigando agruras nas cinzas dos pés da algaroba. O cavalo ao
mesmo tempo suspirou negramente as vergonhas. A penumbra exaltada
clamou em uma breve história do espírito, um perdão que não havia, em meio aos
espantalhos habitados de pássaros. Voltei correndo, deixando a vista buliçosa
na praça da minha pele, larga e fugida, em meio aos pêlos do cavalo que se
confundiam com os meus. Etílio continuava alto na voz dos espantos. Canhão de
dores ardia nas gramas das pernas. As penugens queimavam ao som das peles
púrpuras. Quando cheguei ao conforto da casa, cobri os olhos com o desinteresse
dos meus cabelos e nas crinas cravou-se um aço. Meus medos desviavam atônitos
os ovos apunhalados da tradição. Dedos galgavam heróicas explicações sombrias
sobre a solidão eterna do temor, nos pés das calçadas. E eu continuava vivo no
abrangido suspiro de Etilio no ar da janela.
Bruno Gaudêncio é escritor, jornalista e
historiador. Nasceu em Campina Grande, Paraíba, em 02 de dezembro de 1985.
Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Graduado
em Jornalismo e História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou
os livros O ofício de engordar as sombras
(poesia, 2009) e Cântico voraz do
precipício (conto, 2011). Edita a revista eletrônica de literatura Blecaute (http://revistablecaute.blogspot.com/)
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