terça-feira, 1 de maio de 2012

JURACI DÓREA E JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO: TRADUTORES DE POÉTICAS E SERTÕES

Por Andréa do Nascimento Mascarenhas Silva

Juraci Dórea e José Inácio Vieira de Melo

Dórea e JIVM¹ constroem um modo de comunicação que não se limita apenas à tradução imagética e de versos: seja quando o poeta tenta ilustrar com palavras o que a tela expressa, no trabalho de compor vídeopoemas; seja quando o artista plástico esboça em tinta o que a imagem-palavra talvez queira dizer, no trabalho de ilustrar obras literárias. 
No YouTube, desde outubro de 2009 que Inácio possui Canal denominado JIVMROSEIRAL², espaço a partir do qual disponibiliza poemas declamados, organizados em pequenos vídeos, em que som/voz/imagens formam uma tríade de signos que se ultrapassam a si próprios e são capazes de ir além de cânones e limites literários ainda vigentes. 
Por esse entrelace, outros elementos são agregados ao texto poético, como entonação, gestualidade, expressões faciais e corporais etc., além dos recursos midiáticos e tecnológicos aos quais é preciso lançar mão quando da montagem dos vídeos. Hoje as narrativas que não são feitas única e exclusivamente com as marcas da escritura, como os vídeopoemas, desenham os contornos de uma espécie de gênero que vem dinamizando o cenário das letras em meio à era do virtual³. Neste sentido, o professor Luciano Rodrigues Lima nos faz refletir tanto sobre novas estéticas quanto sobre política e economia culturais/editoriais, ao informar que: 
o videopoeta recriará seu texto com os recursos digitais do computador e será seu próprio editor e distribuidor (desempenhando os papeis de editora e distribuidora/livraria) pois lançará o seu trabalho na rede, o qual será exposto em uma grande livraria/vitrine eletrônica (LIMA, 2008, p. 5). 
As imagens de sertão que Dórea e JIVM compartilham ultrapassam o registro das feições físicas e ideológicas fortemente propagadas pelos meios de comunicação de massa (e não só) há muito tempo e que continuam a “moldar” determinadas identidades locais: do conformismo que não encontra forças para nada, além de cruzar os braços diante das adversidades (como a seca), até chegar ao extremo da representação do sertão estereotipado, como um retrato desfocado e que se molda de fora pra dentro. Vejam-se abaixo imagens e texto dos dois artistas, respectivamente: 

 (JURACI DÓREA, 2010) 

 (JURACI DÓREA, 2010) 

JARDIM DOS MANDACARUS

Em verdade conheço o sol desse lugar,
uma agreste paragem de chão rachado – solo sagrado
De noite, o vento corre pelo jardim trazendo algum frescor
somente um olor-semente exala dessa flor,
vida da pouca vida, mas forte mais.

Além da sombra da cumeeira donde estou e sou,
assunto o que sobrou: uma ode à própria vida.
E nos tortos caminhos desse jardim de mandacarus
espicharei os secos sentimentos para apurar as emoções... (...)

(JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO, 2007, p. 84) 

Pelo azul-branco-preto matizado nas imagens de Dórea se (entre)vê um sertão de pássaros e peixes, de flor e gado, luminosidade de lua e noite, de sol e candeeiro, das moradias que se formam em torno de igrejas (herança ancestral), da alegria das festas juninas, signos que figuram ao lado de tradições religiosas (cristão/pagãs) e culturais, de um povo que reza e faz promessas (ex-votos), que cultua o misticismo do boi/vaca estrela ou os poderes da cachaça feita com raízes e cobras, sem esquecer das lutas do cangaço, que tanto afastou quanto uniu os sertanejos. Na primeira imagem cabe também a morte/seca (esqueleto de boi) e a aspereza do mandacaru, em registro de outras lógicas. Na segunda imagem, além do sertão amoroso (corações), farto em cajus e plantas resistentes, há espaço ainda para o amor a Feira de Santana/BA, o que Juraci confirma em entrevista, ao dizer que: 
Retomo os temas de Feira de Santana: vaqueiros, Festa de Santana, vaqueiros no asfalto, esta canção cruzando o urbano com o rural, lendas de Feira de Santana... Este trabalho está mais definido do ponto de vista formal, já é um estilo e o tema bem consolidado, que é o tema de Feira de Santana. Essa fase vem, em 1974/1975 (...) (TODERO, 2004, p. 7). 
Já pelos versos de JIVM supracitados, a seca encontra registro no jardim possível do sertão –, um reduto de mandacarus que geram brisa junto à noite, vida em flor (apesar de frágil/rarefeita, ainda assim forte) e que ajudam a “espichar sentimentos e apurar emoções” (2007, p. 84). 
Por essas tintas/palavras há exemplos do que se pode fazer para sobreviver no sertão: de “chão rachado” a “solo sagrado”, equivalência despropositada que faz pensar na fé e esperança sertanejas. 
A mesma equivalência se observa entre “Jardim dos mandacarus” (título do poema de JIVM, imagem/símbolo de sertão que guarda beleza apesar dos espinhos) e os povos dos sertões, que aprenderam a conviver com todo tipo de escassez e que precisam ainda das armaduras feitas de couro (como os vaqueiros) para enfrentar as lides diárias. 
Vladimir Queiroz, como Juraci Dórea (e suas esculturas de couro e madeira – Projeto Terra), também investe nesta imagem da pele dos animais sendo usada para proteger os sertanejos (Apokálupsis, 2006). 
Por baixo das mil vestes de proteção a singeleza desses povos se revela: lucidez para compreender a vida avara e ainda assim continuar cultivando jardins possíveis no sertão, nem que seja com mandacarus que também dão flor. 
Eis a inversão proporcionada pelos dois artistas, ao nos dar a ver outras faces pouco conhecidas desse cenário/sertão pintado quase sempre de cores secas, arte que pinta o comum já visto com tons reveladoramente incomuns. 
Tanto JIVM –, o poeta da palavra, quanto Dórea –, o artista polivalente em muitas poéticas, oferecem exemplos distintos e ao mesmo tempo confluentes de artes que se dedicam a ouvir/registrar a voz local/ancestral para, mais uma vez, fazê-la reverberar em outras vozes/memórias dos sertões. Cid Seixas nos proporciona refletir sobre o assunto, ao tratar do poema “Rural” (In: A terceira romaria, 2005, p. 38) e afirmar que: 
Ora, o verso do catingueiro Inácio insiste: “Eu vou pra roça, lá o documento é a palavra.” Se na cidade são os documentos que valem em lugar do homem, os debêntures, as letras de câmbio, os títulos legais; no campo, podemos viver esquecidos de toda esta parafernália infernal. Na roça o homem é a sua palavra (2010, online). 
Nota-se, aqui, sobretudo na última frase de Seixas, que os versos de JIVM remetem à memória de um tempo passado, quando a palavra representava valores que foram sendo perdidos à medida que as técnicas de escrita evoluíram e se sofisticaram. 
Ir para a roça e viver esse privilégio raro de (re)ver a voz ainda valer como documento, mostra-se como um oásis, mas não em tom passadista ou de nostalgia. Talvez os versos de Melo estejam nos mostrando que ainda existem espaços assim no mundo, com outras lógicas, outros costumes e não menos importantes que quaisquer outros, onde a palavra, a voz e suas tradições valem tanto quanto qualquer outro documento. 


NOTAS:
1 - JIVM – abreviação para José Inácio Vieira de Melo. 
2 - Há também entrevistas nesse espaço virtual. 
3 - Como são exemplos áudio livros e livroclip, respectivamente nesses links: 
http://www.universidadefalada.com.br/audiolivro.html 
e http://www.livroclip.com.br/ 


Capítulo do ensaio Imagens do Sertão: diálogo entre as artes de Juraci Dórea e as literaturas de José Inácio Vieira de Melo, Adriano Eysen e Vladimir Queiroz, de Andréa do Nascimento Mascarenhas Silva, Professora Doutora da área de Letras/Literaturas (de Graduação e Especialização) – UNEB, Campi XXII e XIV, apresentado no III EBECULT – III Encontro Baiano de Estudos em Cultura, em abril de 2012.

2 comentários:

Andréa Mascarenhas disse...

Que bom que ver o texto no blog! Assim já começa a circular. Abç.

Vladimir Queiroz disse...

Agradeço a prof. Andréa Mascarenhas pelo excelente estudo sobre a obra de José Inácio Vieira de Melo, Vladimir Queiroz e Adriano Eysen Rego, unido-as a arte de Juraci Dórea.