segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O PEREGRINO COMBATENTE E SUA OFERENDA DE VERSOS

Por Maria da Graça Gomes de Pina

Foto: Vinícius Xavier
"José Inácio Vieira de Melo apresenta-se em cena literária como um David munido de fisga,
pronto a acertar nas cabeças ‘bicéfalas’ daqueles que oscilam entre verdade e aparência"

Os 50 poemas escolhidos de e por José Inácio Vieira de Melo são uma iniciação, isto é, uma primeira lição vital de primeiros socorros, em que o autor nos ensina como fazer respiração boca-a-boca à poesia e nos mostra como salvá-la da pior morte que pode acontecer a uma arte: o abandono.
Confesso que não sou uma grande conhecedora de poesia. Confesso também que não sei lê-la. Mas confesso principalmente que procurei nunca abandoná-la à aridez e secura do quotidiano, aquele tipo de erosão que nos obriga a procurar uma sombra sob a primeira ponta de verde que venha alegrar ou trazer um pouco de alívio à existência humana.
Foi assim que, com grande surpresa, me deparei com uma recolha de poesias ‘di-versificadas’, composições em que a diversidade de temas, em que o diverso, era simultaneamente uma oferenda de versos. A quantidade extraordinária de temáticas que pululam das suas páginas despistam-nos e ao mesmo tempo norteiam-nos na exploração e desconstrução da obra. Quase nos ocorre aplicar à letra aquele conselho profético do autor, isto é, lançar uma pedra «na cabeça dos ignaros/ para despertar a aurora das ideias» (pág. 57), como se dessa forma estivéssemos eliminando a iminente presença ameaçadora de Golias.
Vieira de Melo apresenta-se em cena literária como um David munido de fisga, pronto a acertar nas cabeças ‘bicéfalas’ (para usar uma expressão do filósofo Parménides) daqueles que oscilam entre verdade e aparência, operando uma transmutação no quotidiano: «Eu tenho uma vontade enorme de que um dia toda a humanidade/ jogue pedras e que Deus receba a pedrada certeira, exata» (pág. 54). A cabeça, um dos elementos que contém e guarda as componentes estruturantes da nossa identidade, é também metonímia do cosmo, em suma, do mundo que habitamos. O autor deixa-nos uma série de indícios para que percorramos a senda do texto, procurando identificar e distinguir nele as manchas da onça da vegetação metafórica que a mimetiza, e assim podermos capturar a fera.
Nesta caça à fera, o leitor é obrigado a questionar-se sobre a sua humanidade e a sua presença no mundo. Os termos princípio (pág. 9), origem (pág. 9), caos primordial (pág. 10), Éden (pág. 13), criação (pág. 14), sémen (pág. 15), cosmo (pág. 21), raízes (pág. 28) são alguns dos muitos vestígios deste animal que nos aprestamos a domar, sem contudo desvirtuá-lo da sua beleza selvagem. A beleza selvagem da poesia, a que atribuí a imagem da onça, lança-nos na busca da essência humana, sendo necessário começar do princípio, isto é, «cantar o ciclo da origem» (pág. 9). E tudo na poesia começa com o avesso do que se considera ser ordem, ou seja, com um questionamento profundo das origens, um imperativo rumar para a metafísica das palavras que nos colocam perante o início de tudo: «Eu venho do caos primordial/ Percorri as searas da escuridão/ (caminhos que não sei)» (pág. 10).


Eis porque em 50 poemas escolhidos encontramos tantas referências ao próprio ato da criação, menções a um caminho que deve ser percorrido ao contrário, quer dizer, avançando na direção do início, para o amanhecer da poesia, e levando calçadas «As minhas sandálias [...] feitas de aurora» (pág. 21).
Trata-se de um começo que se revela por um fiat lux não já divino, mas plenamente humano, pois «– Para quem está no breu/ qualquer lampejo é alumbramento» (pág. 11). A humanidade de e na poesia de Vieira de Melo desvela-se, dizíamos, nesse processo criativo que simboliza a fecundação das palavras pelas palavras. Por essa razão, são imensas as alusões ao ato carnal. O corpo do texto é despido pela sensualidade e volúpia da palavra que, por sua vez, se socorre das imagens corpóreas. Trata-se de um jogo perene entre o sēma e o sōma (usando um trocadilho platónico), entre o significado e o corpo que o assimila. Por meio deste vaivém de signos se fecunda o texto, ou seja, pela poiesis a que nos referíamos antes: «Vinde, minhas éguas, vosso faraó vos espera!/ Puxem meu carro de fogo pelos céus dos êxtases,/ harmonizem vossas forças e me conduzam,/ em galope soberano, pelos reinos dos encantos» (pág. 35).
Seria errado, ou melhor, seria trivial, ler nos versos em aparência mais ‘corpóreos’ unicamente a mensagem de erotismo. A meu ver, a dosagem de significantes que reenviam para o corpo e para as suas sensações representam o encontro do poeta com a poesia, em que se convida o leitor a tomar parte desta reunião, a substituir-se ao poeta, e se realmente se deve falar de ‘ato carnal’, este é apenas o do sacerdote-poeta com a palavra, fazendo dela carne, transformando um sēma em sōma. Podemos encontrar ocorrências em abundância, por exemplo, no uso dos termos gemidos (pág.s 36 e 38), êxtase (pág. 38), saborosos (pág. 39), e isto só para citar alguns. É caso, pois, para seguir de novo o conselho do autor, para prestar atenção à sua ordem: «[...] tira o couro da poesia/ – não temas a carne trêmula –/ e inerva os teus versos» (pág. 53).
Poderíamos arriscar dizer que as cinco partes em que se acha dividida a obra 50 poemas escolhidos aparecem então ligadas por um pentagrama que simbolizaria uma espécie de estrela de David. Com isto não pretendo atribuir uma afinidade religiosa específica ao poeta, mas apenas recuperar a metáfora inicial do peregrino combatente – «Peregrino de mim mesmo/ no meio da travessia» (pág. 25) –, aquele munido unicamente de uma fisga mas que todavia se dispõe a salvar a ‘mente’ do leitor, mirando certeiro à cabeça do gigante Golias. É por este ‘sacudir’ de cabeça, quase em forma de ameaça – «E aí o peixe que existe em tua cabeça/ vai sair pelo ermo do mar procurando, procurando,/ pois os peixes também estão perdidos» (pág. 55) –, que Vieira de Melo enfrenta a poesia, se apodera do seu significado e fá-la sua, insemina-a e acompanha-a depois na sua gestação («E o mistério da vida desenvolve», pág. 71).
O leitor seria então uma espécie de parteira improvisada, no sentido que se veria forçado, pelas circunstâncias relacionadas com o facto de ser o destinatário fruitivo da obra, a ter de trazer à luz o rebento da poesia de Vieira de Melo.
É pelo instante, «[...] novas vidas em instantes» (pág. 71), que devemos medir a leitura dos 50 poemas escolhidos de Vieira de Melo, isto é, pelo aqui e pelo agora – «anuncia a vida e me convida para o agora» (pág. 32) –, sem deixar que estes passem por nós e nos ignorem. Aqui e agora, a saber, o presente, mas um presente que se revela no eterno retorno, num eterno começo de tudo. Esta é, pois, a chave de leitura, diria, da inteira obra, procurando aprender a tocar a «sinfonia de questionamentos» (pág. 60) sem desafinar com os meros «somatórios do eu» (pág. 60).
Nesta rota traçada pela «chama da poesia» (pág. 57), Vieira de Melo, com exímia mestria, mostra ao leitor como recusar-se a ser um quase («Não sei ser quase./ Viver sempre – intensamente –/ todas as fases.// Todas as frases/ dizê-las por inteiro,/ do primeiro ao derradeiro som.// Não sei ser quase», pág. 66), como não abandonar a poesia, em suma, como aprender a cortejá-la e a amá-la como a uma mulher que se deseja com todos os poros do próprio ser. 

José Inácio VIEIRA DE MELO (2011). 50 poemas escolhidos pelo autor. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 99 pág.s.

Maria da Graça Gomes de Pina licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Lisboa. Atualmente é colaboradora linguística na Universidade de Nápoles l’“Orientale”, onde leciona a língua portuguesa. Recentemente discutiu a tese de Doutoramento sobre o “Crioulo de Cabo Verde” na Universidade de Nápoles l’“Orientale”. Ocupa-se de língua e literatura portuguesa, de literatura africana de expressão portuguesa, de língua caboverdiana, e de filosofia antiga. Tem a seu cargo algumas traduções de livros e ensaios filosóficos, ensaios de filosofia antiga, artigos sobre literatura portuguesa, artigos sobre literatura e língua caboverdianas publicados em Portugal, Itália, Brasil, Cabo Verde.


Este artigo foi publicado em dezembro de 2011 na revista virtual Verbo21 (http://www.verbo21.com.br)

Um comentário:

Jeovah Ananias disse...

Texto consistente. José Inácio é o nosso Davi. A funda da sua poesia tem ampliado em muito a noção de beleza da nossa gente. Uma poesia feita de vigor e verbo, de sangue e carne. Uma poesia que toca em nosso sentimento, causando epifanias.