sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CANTINHO DO CONTO - A PRIMEIRA VEZ

Por Lima Trindade



A PRIMEIRA VEZ 
para Nelson Luiz

            A primeira vez que o vi ele estava com um velho paletó cinza e comemorava aniversário. Eu já o vira outras vezes. Contudo, a primeira vez que REALMENTE o vi foi naquela noite. Noite de seu aniversário, noite especial porque seria a noite em que eu verdadeiramente o veria, pois das outras vezes, mesmo aquelas quando adquiria a dimensão de um jogador de basquete – e jogador de basquete sim é o exemplo quase perfeito para identificar-lhe o tamanho ao subir os tablados dos pequenos teatros salpicados na cidade para recitar para quase ninguém que queira escutar, mas todos sabem que estão ali justamente para ouvi-lo e, se possível, aplaudi-lo e dizer que sempre entenderam tudo e acharam demais cara, principalmente aquele verso ou aquela hora em que ele grita com raiva ou por pouco, muito pouco o choro não lhe banha a face – e ele parece maior muito maior mas não tão grande quanto naquela hora parado no meio da sala bebendo e chorando porque ganhara um livro de presente de aniversário de uma menina que me falaram fora sua namorada e fumava e fumava soltando fumaça com medida graça e eu reparando nas suas longas costeletas e no desenho dos lábios se abrindo para soprar a fumaça. Lembro especialmente do paletó meio amarrotado e também folgado e do gosto do vinho barato e do quanto ele me lembrava Jack Kerouac, o velho beatnik, emocionado apenas porque ganhara um livro de presente de aniversário, lembro que tinha um espelho na sala e eu não olhava diretamente para ele, mas para o espelho, porque assim ninguém descobriria o que comigo se passava: que eu estava apaixonado e com medo que alguém pudesse desconfiar de meu amor que naquela hora não era todo consciente, era meio misturado à bebedeira, sim era a bebida que fazia isso com a gente, confundia o gosto e a noção de beleza, porque um homem não pode achar bonito outro homem, ainda mais se a beleza tiver uma aura de sensualidade, ora, ora ele era realmente bonito e seu charme me embebedava no meio de tanta gente ali interessante feito poetas, atrizes, pintores e admiradores que não eram merda nenhuma mas também ali estavam bebendo e falando e falando e falando... Ele contudo não falava e seus olhos doces e alguma coisa tristes para alguns não eram tristes para mim, no entanto, pois eu compreendia a dor escondida pela qual ele provavelmente teria passado e eu achava que era a mesma dor minha, por isso sabia que não podia ser tristeza, mas um sentimento intenso e um tanto santo de se identificar com as cruezas do mundo e não ficar indiferente como todas as pessoas que conheço menos eu e ele que estava fazendo aniversário e eu o mirando pelo espelho até que alguém resolveu colocar música e fazer soar aquela voz arrastada da cantora de cabaré francês que nunca esquecerei, assim como não posso esquecer dele vindo em minha direção e pegando minha mão para que dançássemos enquanto todos explodiam em risos e eu tentava me desvencilhar mas ele era firme e resoluto e eu não tive como deixar de sentir seu rosto colado ao meu e o quanto era quente aquele paletó oscilando em movimentos de rodopios lentos ao embalo da bela música e dos risos que me envergonhavam e me faziam querer morrer, o que não seria de modo algum ruim porque morrer nos braços dele era o que eu queria desde que tinha nascido, pelo menos foi o que pensei no instante em que a música acabava e ele beijava minha testa como ninguém jamais houvera beijado, agradecendo e sorrindo para então dividir-se em atenções aos demais convidados, deixando-me no meio da sala nesta hora já totalmente deslocado, porém feliz e querendo viver eternamente por ter com ele dançado, quem poderia de alguma maneira imaginar meu contentamento apesar de parecer desconcertado, deste modo quando alardearam o fim da bebida e sugeriram dar continuidade fora dali num bar daquela cidade que eu não conhecia direito porque era a primeira vez que lá tinha estado, eu aceitei e redobrei as esperanças de novamente me aproximar dele e então penetramos no dorso da noite e eu achei que vê-lo andar com o livro que havia ganho no bolso do paletó cinza em busca de um ponto para eles determinado, mas para mim completamente vago, era uma visão mágica acrescida pelo jogo de luzes e sombras dos escassos postes de eletricidade e vãos da estrada em que caminhávamos, os poetas, as atrizes, os pintores e os admiradores o circundavam enquanto eu ia atrás admirando o cortejo fiel, até quando percebi que tinha bebido demais e o cadarço do meu sapato estava desamarrado e vacilei no passo e caí no asfalto, sem forças para me levantar enquanto eles seguiam na noite que só poderia ser esta e jamais outra, eu o perdendo enfim em seu paletó cinza.  

Lima Trindade nasceu em 23 de dezembro de 1966 em Brasília, DF. Vive em Salvador desde 2002. É autor do romance Supermercado da Solidão (LGE, Brasília, 2005) e dos livros de contos Todo sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, São Paulo, 2005) e Corações Blues e Serpentinas (Arte Pau Brasil, São Paulo, 2007). Participou das antologias de contos Todas as gerações (LGE, Brasília, 2006), organizada por Ronaldo Cagiano, O melhor da festa (Nova Roma, Porto Alegre, 2009), org. por Fernando Ramos, e Geração Zero Zero: fricções em rede (Língua Geral, Rio de Janeiro, 2011), org. por Nelson de Oliveira. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), tendo estudado os contos de João Silvério Trevisan, Reinaldo Arenas e David Leavitt. Edita mensalmente, desde 1999, a revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br), divulgando e entrevistando novos e antigos autores, além de ensaios sobre a cultura em geral. Tem vários textos publicados em jornais e revistas do Brasil e exterior: Revistas Cult, LSD, Iararana, sites Bestiário, Germina e Confraria do Vento; jornais Correio Braziliense e A Tarde, entre outros.

Nenhum comentário: