Décio Torres Cruz
Foto: João Urban
A Bahia produz grandes escritores, mas também acolhe poetas e artistas de diversas partes do Brasil e do mundo. É o caso do alagoano José Inácio Vieira de Melo, radicado em nosso estado desde 1988. 0 premiado autor de diversos livros de poesia celebrou, neste ano, seus 55 anos com uma antologia intitulada O filho do Sol (Mondrongo, 2023).
Como destaca a crítica literária Raquel Naveira no prefácio, o poeta e produtor cultural "é mesmo 'filho do sol': o sol do sertão, do fogo que se espalha pelas ideias e imagens, do conhecimento dos meandros poéticos, da ânsia de imortalidade presente em todo aquele que escreve com paixão pela palavra.” Sua relação com o sol e o fogo também é mencionada na orelha do livro pela poeta e professora da Uneb Lilian Almeida, quando afirma que a inteireza do sol habita os versos de José Inácio, "nascido sob a égide do elemento fogo”. Inácio carrega a marca da brasa da palavra “Ígneo" no próprio nome derivado do latim "Ignatius", que significa "ardente" ou "cheio de fogo". A forte conotação de Intensidade e fervor presente em seu nome também se apresenta em seus temas, como em “Suíte de amor, ódio e guerra", no qual "Chovem raios de sol / sobre o voo dos urubus / que assistem o espetáculo / da batalha sangrenta: / prenúncio do grande banquete "
A temática rural
Dividido em dez partes, o livro é composto de 55 poemas. Com exceção de cinco inéditos, os poemas foram selecionados de seus livros anteriores cujos títulos nomeiam as divisões: Códigos do silêncio (2000); Decifração de abismos (2002); A terceira romaria (2005); A infância do Centauro (2007); Roseiral (2010); Pedra Só (2012); Sete (2015); Entre a estrada e a estrela (2017); e Garatujas Selvagens (2021). O autor nos brinda com uma excelente antologia de poemas selecionados com bastante esmero que fica difícil para os leitores decidir qual deles pode ser eleito como o melhor ou o favorito, tamanha a potência, o vigor e a beleza lírica de cada um deles.
Da mesma forma que o poeta estadunidense Robert Frost escolheu uma fazenda no campo no frio estado de Vermont para morar e elegeu, como temática, a labuta do dia a dia e os elementos da natureza ao seu redor, partindo do prosaico para a criação de versos que se imortalizaram ao criar teorias filosóficas sobre a existência humana, o mesmo se passa com esse sertanejo que, em vez da neve, pinheiros e bétulas, tem como tema o sol, o calor, a fauna, a flora e os habitantes do sertão, lá que passa parte de seu tempo na fazenda Pedra Só, no município de Iramaia, quando não está viajando para fazer curadorias ou participar de eventos e festivais literários pelas capitais.
A região rural da Chapada Diamantina aparece como tema e personagem em seus versos. Enquanto Frost dedicava poemas ao trabalho de conserto de cercas de pedras que caem com o passar das estações (Mending Wall), faz uma parada no meio da floresta para contemplar a neve caindo numa tardinha de inverno (Stopping by woods...) ou para escolher o caminho que faz a diferença em nossas vidas (The road not taken), fatos cotidianos de uma vida rural, mas que ganham dimensões metafísicas, nosso poeta "cavaleiro de fogo" também fica dividido “entre a estrada e a estrela" de seu "habitat", ao mesmo tempo que aborda personagens míticos e passeia pela cultura cristã e medieval, fazendo-nos refletir sobre crenças e tudo aquilo que move nossa existência terrena.
Como "a morte promete jardins” em seus “exercícios crísticos”, ele pede a "benção" ao “anjo da guarda", escreve um “epitáfio" para "as bodas de sangue" de Guinevere, constrói um "totem para Frida Kahlo" e "inventa pontes ao longínquo" para a violoncelista e poeta Denise Emmer. Na "toada da despedida" registra “a fala do silêncio” e descreve “auroras", "rosas", "pedras amoladas e facas atiradas", “galos de briga", "cordeiros de abril", "cavalos de luas", e "gaviões sutis". E "num estalar de dedos", traça "caligrafias" em forma de "garatujas selvagens" na "esteira do infinito". Lá, compõe música com "violões deslumbrados" e faz a “travessia" na "rota infinita" para um "mundo feito pra gente andar" onde filosofa sobre a "gênese" da "transmutação", a "metamorfose" e a “sagração" do "mito do centauro" e das "musas escarlates". Essas palavras aspeadas foram extraídas de versos ou títulos de seus poemas.
O poema Ideograma, que abre o livro, é um metapoema que estabelece reflexões sobre inspiração e a arte infinita da escrita. Como um exímio pintor, o poeta delineia as triviais e metafóricas léguas tornadas línguas de estradas que conduzem a vilarejos longínquos. Nessa viagem, podemos perceber partos de animais soltos no tempo e o brilho efêmero de vaga-lumes na solitude da noite que, ao disseminarem suas luzes velozes pelo firmamento, compõem uma sinfonia noturna e tracejam um “ideograma do Universo".
Ouçamos a voz do poeta nesse seu jogo transformador do particular no universal: "Ao pé do ouvido / a sílaba inumerável / da escrita. // Um cata-vento assoviador / sussurra o tom da mandala / que me anima. // E sigo / traço a traço,/ quilômetro a quilômetro, // até chegar à senha / das lonjuras. // Légua é língua de estrada, / régua estendida / ao desconhecido dicionário, // o intacto vilarejo / onde libérrimas éguas parem, / na boca da noite, / velocíssimos vaga-lumes / que se espalham / no firmamento // a compor o ideograma / do Universo."
Do mesmo modo que Robert Frost falava do fim do mundo em "fogo e gelo", ligando desejo e ódio aos elementos naturais, em entrevista, José Inácio me fala de sua preocupação com a seca e o extremo calor que consomem sua região. Conversamos sobre as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global e sobre o temor em relação aos futuros cataclismas que se avizinham e para os quais nos sentimos impotentes ante os descasos dos governantes do mundo.
Contudo, sua poesia nos traz esperança e nos conforta. Em defesa da vida e do meio-ambiente, seus versos possuem tanto a força potente do grito denunciador de atrocidades quanto a beleza lírica da vida em sua transição. Num apelo pungente, em Suíte de amor, ódio e guerra, ele convoca seus leitores a seguirem em frente, mesmo quando "falta noite no vazio que restou do dia", pois “é preciso que a voz / diga a palavra vida // e que ela transborde / e se bifurque e se divida // em milhares de vozes / cheias de vida".
Para quem ainda não conhece a fascinante e encantatória poesia desse grande poeta, seu novo livro O filho do Sol apresenta um resumo de sua escrita extasiante e vigorosa que nos arrebata por inteiro e que deve ser melhor conhecida do grande público.
Sobre o autor
Foto: João Urban
"O poeta José Inácio Vieira de Melo e sua obra" |
José Inácio Vieira de Melo (1968) é poeta, jornalista, produtor cultural, coordenador e curador de vários eventos literários. Além dos livros já mencionados, publicou as antologias 50 poemas escolhidos pelo autor (2011) e O galope de Ulisses (2014). Organizou Concerto lírico a quinze vozes - Uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004), Sangue Novo - 21 poetas baianos do século XXI (2011) e Concerto lírico - 15 poetas 15 anos depois (2019). Publicou os CDs de poemas A casa dos meus quarenta anos (2008) e Pedra Só (2013).
Foi coeditor da revista literária lararana (2004 a 2008). Participa das antologias Pórtico Antologia Poética I (2003), Sete Cantares de Amigos (2003), Roteiro da poesia brasileira - Anos 2000 (2009), Autores Baianos: Um panorama 2 (2014), Orillas de América Literaria - Poesía Brasileira Contemporánea (2020) e Poemas de amor e guerra (2020).
No exterior, participou das antologias Voix croisées: Brésil-France (Marselha, 2006); Impressioni d'Italia - Piccola antologia di poesia in portoghese con traduzione a fronte (Nápoles, 2011); En la otra orilla del silencio - Antologia de poetas brasileños contemporáneos (Cidade do México, 2012), Traversée d'océans - Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Paris, 2012); A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo, 2013) e Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Review, 2013). Tem poemas traduzidos para o alemão, árabe, espanhol, francês, italiano, inglês e finlandês.
Dentre os prêmios conquistados, destacam-se o Prêmio O Capital 2005, com o livro A terceira romaria, o Prêmio QUEM 2015, da Revista Quem, da editora Globo, na categoria Literatura - Melhor Autor, com o livro Sete, e o Prêmio de Poesia Hilda Hilst 2021 da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, com o livro Garatujas Selvagens.
Décio Torres Cruz é escritor, crítico literário, poeta, professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). É Ph.D. em Literatura Comparada pela State University of New York (SUNY) em Buffalo, nos Estados Unidos. Mestre em Teoria da Literatura, especialista em Tradução e bacharel em Letras/Língua Estrangeira, com concentração em língua e literaturas de língua inglesa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor de vários livros, Décio Torres publicou diversos ensaios sobre diferentes temas e contribuiu para pesquisas acadêmicas nas áreas de estudos de adaptação, linguística aplicada, estudos culturais, estudos shakespeareanos, entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário