quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

UM POETA VESTIDO DE SOL E FOGO

Décio Torres Cruz

Foto: João Urban
"Para quem não conhece a fascinante e encantatória poesia 
do grande poeta José Inácio Vieira de Melo, seu novo livro 
O filho do Sol apresenta um resumo de sua escrita
extasiante e vigorosa  que nos arrebata por inteiro."

A Bahia produz grandes escritores, mas também acolhe poetas e artistas de diversas partes do Brasil e do mundo. É o caso do alagoano José Inácio Vieira de Melo, radicado em nosso estado desde 1988. 0 premiado autor de diversos livros de poesia celebrou, neste ano, seus 55 anos com uma antologia intitulada O filho do Sol (Mondrongo, 2023).

Como destaca a crítica literária Raquel Naveira no prefácio, o poeta e produtor cultural "é mesmo 'filho do sol': o sol do sertão, do fogo que se espalha pelas ideias e imagens, do conhecimento dos meandros poéticos, da ânsia de imortalidade presente em todo aquele que escreve com paixão pela palavra.” Sua relação com o sol e o fogo também é mencionada na orelha do livro pela poeta e professora da Uneb Lilian Almeida, quando afirma que a inteireza do sol habita os versos de José Inácio, "nascido sob a égide do elemento fogo”. Inácio carrega a marca da brasa da palavra “Ígneo" no próprio nome derivado do latim "Ignatius", que significa "ardente" ou "cheio de fogo". A forte conotação de Intensidade e fervor presente em seu nome também se apresenta em seus temas, como em “Suíte de amor, ódio e guerra", no qual "Chovem raios de sol / sobre o voo dos urubus / que assistem o espetáculo / da batalha sangrenta: / prenúncio do grande banquete "
 
A temática rural

"Da mesma forma que o poeta estadunidense Robert Frost
escolheu uma fazenda no campo no frio estado de Vermont
para morar, José Inácio Vieira de Melo passa boa parte
do seu tempo na fazenda Pedra Só, no município
de Iramaia, na Chapada Diamantina."

Dividido em dez partes, o livro é composto de 55 poemas. Com exceção de cinco inéditos, os poemas foram selecionados de seus livros anteriores cujos títulos nomeiam as divisões: Códigos do silêncio (2000); Decifração de abismos (2002); A terceira romaria (2005); A infância do Centauro (2007); Roseiral (2010); Pedra Só (2012); Sete (2015); Entre a estrada e a estrela (2017); e Garatujas Selvagens (2021). O autor nos brinda com uma excelente antologia de poemas selecionados com bastante esmero que fica difícil para os leitores decidir qual deles pode ser eleito como o melhor ou o favorito, tamanha a potência, o vigor e a beleza lírica de cada um deles.

Da mesma forma que o poeta estadunidense Robert Frost escolheu uma fazenda no campo no frio estado de Vermont para morar e elegeu, como temática, a labuta do dia a dia e os elementos da natureza ao seu redor, partindo do prosaico para a criação de versos que se imortalizaram ao criar teorias filosóficas sobre a existência humana, o mesmo se passa com esse sertanejo que, em vez da neve, pinheiros e bétulas, tem como tema o sol, o calor, a fauna, a flora e os habitantes do sertão, lá que passa parte de seu tempo na fazenda Pedra Só, no município de Iramaia, quando não está viajando para fazer curadorias ou participar de eventos e festivais literários pelas capitais.

A região rural da Chapada Diamantina aparece como tema e personagem em seus versos. Enquanto Frost dedicava poemas ao trabalho de conserto de cercas de pedras que caem com o passar das estações (Mending Wall), faz uma parada no meio da floresta para contemplar a neve caindo numa tardinha de inverno (Stopping by woods...) ou para escolher o caminho que faz a diferença em nossas vidas (The road not taken), fatos cotidianos de uma vida rural, mas que ganham dimensões metafísicas, nosso poeta "cavaleiro de fogo" também fica dividido “entre a estrada e a estrela" de seu "habitat", ao mesmo tempo que aborda personagens míticos e passeia pela cultura cristã e medieval, fazendo-nos refletir sobre crenças e tudo aquilo que move nossa existência terrena.

Como "a morte promete jardins” em seus “exercícios crísticos”, ele pede a "benção" ao “anjo da guarda", escreve um “epitáfio" para "as bodas de sangue" de Guinevere, constrói um "totem para Frida Kahlo" e "inventa pontes ao longínquo" para a violoncelista e poeta Denise Emmer. Na "toada da despedida" registra “a fala do silêncio” e descreve “auroras", "rosas", "pedras amoladas e facas atiradas", “galos de briga", "cordeiros de abril", "cavalos de luas", e "gaviões sutis". E "num estalar de dedos", traça "caligrafias" em forma de "garatujas selvagens" na "esteira do infinito". Lá, compõe música com "violões deslumbrados" e faz a “travessia" na "rota infinita" para um "mundo feito pra gente andar" onde filosofa sobre a "gênese" da "transmutação", a "metamorfose" e a “sagração" do "mito do centauro" e das "musas escarlates". Essas palavras aspeadas foram extraídas de versos ou títulos de seus poemas.

"A poesia de José Inácio Vieira de Melo nos traz esperança
e nos conforta. Em defesa da vida e do meio-ambiente, seus
versos possuem tanto a força potente do grito denunciador de
atrocidades quanto a beleza lírica da vida em sua transição."

O poema Ideograma, que abre o livro, é um metapoema que estabelece reflexões sobre inspiração e a arte infinita da escrita. Como um exímio pintor, o poeta delineia as triviais e metafóricas léguas tornadas línguas de estradas que conduzem a vilarejos longínquos. Nessa viagem, podemos perceber partos de animais soltos no tempo e o brilho efêmero de vaga-lumes na solitude da noite que, ao disseminarem suas luzes velozes pelo firmamento, compõem uma sinfonia noturna e tracejam um “ideograma do Universo".

Ouçamos a voz do poeta nesse seu jogo transformador do particular no universal: "Ao pé do ouvido / a sílaba inumerável / da escrita. // Um cata-vento assoviador / sussurra o tom da mandala / que me anima. // E sigo / traço a traço,/ quilômetro a quilômetro, // até chegar à senha / das lonjuras. // Légua é língua de estrada, / régua estendida / ao desconhecido dicionário, // o intacto vilarejo / onde libérrimas éguas parem, / na boca da noite, / velocíssimos vaga-lumes / que se espalham / no firmamento // a compor o ideograma / do Universo."

Do mesmo modo que Robert Frost falava do fim do mundo em "fogo e gelo", ligando desejo e ódio aos elementos naturais, em entrevista, José Inácio me fala de sua preocupação com a seca e o extremo calor que consomem sua região. Conversamos sobre as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global e sobre o temor em relação aos futuros cataclismas que se avizinham e para os quais nos sentimos impotentes ante os descasos dos governantes do mundo.

Contudo, sua poesia nos traz esperança e nos conforta. Em defesa da vida e do meio-ambiente, seus versos possuem tanto a força potente do grito denunciador de atrocidades quanto a beleza lírica da vida em sua transição. Num apelo pungente, em Suíte de amor, ódio e guerra, ele convoca seus leitores a seguirem em frente, mesmo quando "falta noite no vazio que restou do dia", pois “é preciso que a voz / diga a palavra vida // e que ela transborde / e se bifurque e se divida // em milhares de vozes / cheias de vida".

Para quem ainda não conhece a fascinante e encantatória poesia desse grande poeta, seu novo livro O filho do Sol apresenta um resumo de sua escrita extasiante e vigorosa que nos arrebata por inteiro e que deve ser melhor conhecida do grande público.
 
Sobre o autor
Foto: João Urban
"O poeta José Inácio Vieira de Melo e sua obra"

José Inácio Vieira de Melo (1968) é poeta, jornalista, produtor cultural, coordenador e curador de vários eventos literários. Além dos livros já mencionados, publicou as antologias 50 poemas escolhidos pelo autor (2011) e O galope de Ulisses (2014). Organizou Concerto lírico a quinze vozes - Uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004), Sangue Novo - 21 poetas baianos do século XXI (2011) e Concerto lírico - 15 poetas 15 anos depois (2019). Publicou os CDs de poemas A casa dos meus quarenta anos (2008) e Pedra Só (2013).

Foi coeditor da revista literária lararana (2004 a 2008). Participa das antologias Pórtico Antologia Poética I (2003), Sete Cantares de Amigos (2003), Roteiro da poesia brasileira - Anos 2000 (2009), Autores Baianos: Um panorama 2 (2014), Orillas de América Literaria - Poesía Brasileira Contemporánea (2020) e Poemas de amor e guerra (2020).

No exterior, participou das antologias Voix croisées: Brésil-France (Marselha, 2006); Impressioni d'Italia - Piccola antologia di poesia in portoghese con traduzione a fronte (Nápoles, 2011); En la otra orilla del silencio - Antologia de poetas brasileños contemporáneos (Cidade do México, 2012), Traversée d'océans - Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Paris, 2012); A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo, 2013) e Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Review, 2013). Tem poemas traduzidos para o alemão, árabe, espanhol, francês, italiano, inglês e finlandês.

Dentre os prêmios conquistados, destacam-se o Prêmio O Capital 2005, com o livro A terceira romaria, o Prêmio QUEM 2015, da Revista Quem, da editora Globo, na categoria Literatura - Melhor Autor, com o livro Sete, e o Prêmio de Poesia Hilda Hilst 2021 da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, com o livro Garatujas Selvagens.



Décio Torres Cruz é escritor, crítico literário, poeta, professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). É
 Ph.D. em Literatura Comparada pela State University of New York (SUNY) em Buffalo, nos Estados Unidos. Mestre em Teoria da Literatura, especialista em Tradução e bacharel em Letras/Língua Estrangeira, com concentração em língua e literaturas de língua inglesa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor de vários livros, Décio Torres publicou diversos ensaios sobre diferentes temas e contribuiu para pesquisas acadêmicas nas áreas de estudos de adaptação, linguística aplicada, estudos culturais, estudos shakespeareanos, entre outros.



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