segunda-feira, 30 de abril de 2018

UM GRITO QUE PERDURA PELO EXTERIOR DOS SIGNOS

Alexandra Vieira de Almeida

Ilustração: Felipe Stefani

Entre a estrada e a estrela é o discurso lírico-filosófico sobre os espelhamentos, os paralelismos entre a Terra e o Céu, entre o telúrico e o cósmico. A figura que mais cabe neste ser-poeta José Inácio Vieira de Melo é o centauro. Metade cavalo, metade homem, esta figura faz a ponte entre os reinos de cima e embaixo, do macro ao microcósmico. O ser humano caminha pela estrada, percebendo a beleza do caminhar e não o ponto final da chegada, pois não há fim, neste movimento incessante do mundo. O livro, dividido em duas partes “O mundo foi feito pra gente andar” e “Na esteira do infinito”, faz do movimento pendular do caminhar um acesso ao aberto, àquilo que se caracteriza pelo seu abismo interminável. É interessante observar neste belo livro de poesia uma indagação sobre o silêncio, o murmúrio de uma linguagem que desconhecemos.

José Inácio vivencia e problematiza. Se num dos heterônimos de Fernando Pessoa, o mestre Alberto Caieiro, dizia que “pensar é estar doente dos olhos”, o poder analítico na poesia deste alagoano radicado na Bahia, se conjuga com a dor de descobrir o mundo, descortinar o véu do real para que a pele dos sentidos se esclareça na fusão entre o signo e a coisa. Os complexos pensares se fundam no poder de visão, já que a riqueza imagética de seus versos nos leva à plenitude do real em toda a sua carnadura. José Inácio problematiza o real pela força metafórica de seus versos, cobrindo o que está fora dele com um tecido interior de seu saber mais profundo.

Este ser que problematiza não pode ter uma essência, visto que é múltiplo em seus jogos de aparência. Múltiplos como os sentidos do mundo são seus eus que se multiplicam e se fragmentam no cosmos infinito que se estende do corpo do ser ao corpo do mundo, como numa comunhão cósmica entre a hóstia dos segredos e a boca do universo. Vejamos seus versos: “É nos caminhos que os passos inventam/ que novas formas hei de incorporar,/ assim, cada vez mais, me multiplicando.” Numa incorporação entre o eu e o que o circunda, o poeta busca transcender as dicotomias e limites interpostos pela metafísica ocidental que divide a alma e o corpo. É possível se falar de uma corporeidade do cosmos que adentra a tessitura fina de um ser, como José Inácio. Um ser que esconde um universo dentro de si.

Portanto, temos em José Inácio Vieira de Melo, um grito que perdura pelo exterior dos signos, a sua forma externa se densifica na matéria. Alma e corpo se fundem na substância agregadora do mundo. O poeta por ora aqui apresentado não se limita à linguagem, ultrapassando-a com a sua entrega ao universo que o circunda. Unindo o mítico ao real, sua poesia afugenta os esqueletos da morte e se expande num sopro de vida que se quer eterna enquanto dure. Um livro excepcional que reúne os princípios da origem - não em seu apelo de morte e fim - mas de novos recomeços e origens que se abrem à urdidura dos versos a abarcar todo o cosmos dilacerante.


Alexandra Vieira de Almeida É poeta, contista, cronista, ensaísta e resenhista. Tem doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Publicou quatro livros de poemas: 40 poemas, Painel (2011), Oferta (2014), Dormindo no verbo (2016) e A serenidade do zero (2017). Tem poemas traduzidos para o espanhol, inglês, holandês e chinês. Vive no Rio de Janeiro (RJ).



Publicado originalmente na revista Correio das Artes, em João Pessoa-PB, na edição de abril de 2018

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