quinta-feira, 30 de outubro de 2014

JIVM - CONCERTO PARA CAVALOS

Foto: Ricardo Prado

CONCERTO PARA CAVALOS

I

Esses cavalos de vento,
gigantes de patas mágicas,

cobrem os desvãos dos signos
com o seu resfolegar.

Lambem as vulvas das loucas,
com sua aguda linguagem,

inaugurando evangelhos
de mansas e novas águas.

O galope dos cavalos
açoita sonhos no rei.

À luz subsistem lembranças
de um tempo livre, sem leis.

Rincha o vento da lembrança.
(Sopranos: era uma vez...).

II

Depois soprou a vastidão
trazendo o Quixote insano.

Seu galope de delírios
deu à Europa novos planos.

Jamais a um cavalo coube
transformar a tradição

com o açoite do relâmpago,
luz que ofusca a escuridão.

Páginas coloquiais
de um xadrez ultrapassado

a povoar o futuro
dos brasões assinalados.

Rincha o vento do futuro.
(Barítonos: o passado...).

III

Medulas modulam musas.
Na mesma mesa, Medusa.

Magras, mórbidas Medeias,
éguas escassas, ruças.

Exército de cavalos
russos, velozes e rubros.

Ribombar do Apocalipse,
aurora de rosas turvas.

Destronar e transformar:
Meu cavalo por um reino!,

assim falou Myriam Fraga,
que ora tem cavalo e reino.

E relincha o vento em fragas.
(Tenores: tudo está feito!).

IV

Sobre esbraseados muros,
nas tardes de Samarcanda,

o rei trota seu ginete,
Sherazade inventa tramas.

Antes que se alastre o nunca,
vil Nabucodonosor,

Sherazade cria mirantes
contando histórias de amor.

Sobre ensombreadas torres,
nas manhãs de Aldebarã,

um rei trota cem corcéis.
No rio, coaxa a rã.

Rincham ventos menestréis.
(Coro uníssono: manhã!).

V

Fareja o livro da morte
e desperta tuas brasas.

Atiça fogo nas torres,
dobra os sinos, abre as asas.

O vento escoiceia a tarde.
Desesperada salsugem

alimenta a longa página,
livro da vaca que muge.

De espinhos, nos espelhos,
a sombra se embelezava,

transformando a morte em cena
de um teatro de fantasmas.

Zé Ramalho ergue uma prece.
(Relincham todas as almas).
  
VI

Era um cavalo de luas,
corcel de pelos de livro.

De fogo, a sua memória.
Seu peito, de versos livres.

Nutria-se do que lia.
Quanto mais lia, sentia

eriçar pelos e crinas
como quem ama Maria.

Seu coração disparava
trespassado de euforia.

Era um deus que galopava
 e o Universo sorria.

(Relincham todos cavalos:
uma Ode à Alegria).

VII

Depois, a loucura, em lavas,
lambia os musgos das asas,

limpava bem suas patas,
reluzentes sobre as vagas.

Cavalos soltos e afoitos.
Açoites dentro da noite

sobre telhados atônitos,
sobre gemidos e coitos.

Bem dentro da escuridão,
uma luz, um livro ardia.

Nas lonjuras do Sertão,
um jovem poeta lia.

(Estrelas, constelações,
relinchando fantasias).


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

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