JIVM: "Cada vez mais minha poesia caminha em direção às fontes primordiais, como quem busca encontrar o que não tem nome e ver o seu semblante e entrar na sua paisagem e comungar com o instante". |
O abismo da
criação de um poemário solar
Diálogo com o poeta José Inácio Vieira de Melo
Diálogo com o poeta José Inácio Vieira de Melo
Há anos tenho acompanhado a trajetória do poeta,
jornalista, produtor cultural e mítico centauro José Inácio Vieira de Melo. O
gesto virtual facilita minha chegada a Jequié (uma de suas moradas). E logo em
seguida estamos sentados na fazenda Pedra Só, que fica entre as cidades de
Maracás, no Vale do Jiquiriçá, e de Iramaia, na Chapada da Diamantina. No
notebook, folheamos o livro Pedra Só, que ainda não estava no formato papel. Os
cavaleiros Moisés e Gabriel, seus filhos, riem do meu jeito de concreto. Não
sei lidar mais com cavalos, na infância era outra história...
Mas o que interessa, agora, é dialogar com este singular
poeta e saber um pouco mais sobre seu novo rebento poético, Pedra Só, que chega junto à primavera e começa a
galopar por esse Brasil sem fronteiras.
José Geraldo Neres
– Na terra do sol a pino, a natureza tem nas mãos todas as cartas e regras. Vejo
a aproximação de um centauro escarlate. Na sua sombra cabem os aboios de todos
vaqueiros e as cantigas de todos cantadores: antepassados daquele chão. No
matulão: os livros anteriores e toda mística do aprendizado. Carrega nos ossos
e na pele: Pedra Só (Escrituras
Editora, 2012). Seus cânticos, José Inácio, cavalgam a
revelar “as águas antigas” e “o poeta, o fogo, o cavalo”. Onde é a nascente
deste galope?
José Inácio Vieira
de Melo – Na origem do sentimento. Como está dito no poema “Pedra Só – XXV”:
“A legião de vaqueiros
/ que me acompanha e que entoa, / na origem do sentimento, / o que a palavra
não diz / mas a voz aboia”. Cada vez mais minha poesia caminha em direção às
fontes primordiais, como quem busca encontrar o que não tem nome e ver o seu
semblante e entrar na sua paisagem e comungar com o instante. E nesta busca há
o desejo de trazer esse algo primo e vero para dentro do meu verso. Cada vez
mais tomo consciência de que minha vida está intrinsecamente ligada a esta
brincadeira que é a poesia. Mas existe coisa mais séria do que o ato de fazer o
poema? Com a alma inquieta e buscando alento na linguagem – mesmo quando esta
vocifera contra o Cosmo – vou conferindo para a ilusão do ser os efeitos da
Natureza, que me banham no fogo sagrado da poesia. Eis a gênese.
JGN – “E eu regresso e lembro que fui, que sou e serei / um
cavaleiro cozido nas brasas do Sertão, / dentro dos couros, com o sol no
espinhaço, / no meio do tempo, no meio dos tempos”. Entrar nesta paisagem,
comungar o verso dentro do verso: seria a necessidade de mergulhar com cavalo e
éguas e tudo mais no abismo da criação? “Passar o laço de seda / no
mourão do sentimento / e escutar só a queda”. A queda transforma o medo?
Quais são os medos do velho menino centauro?
JIVM – Penso que
se não houver um mergulho no abismo da
criação não haverá arte, ou seja, o resultado do que foi feito não se afirmará
como uma obra de arte, será algo superficial e, como tal, não trará vestígios
das regiões abissais do ser. Mesmo aqueles que pretendem apenas quebrar o marasmo,
têm que instaurar na sua criação um relampejo que suscite no receptor, na
pessoa que aprecia, alguma lembrança de algo que não viveu, mas que está
incrustado na sua essência. Essa sensação pode provocar um enorme incômodo. Por
outro lado, pode, também, proporcionar um encantamento, uma epifania.
A queda, da qual falo no poema, é do boi-medo. É preciso se
encourar de coragem para laçar o medo e sustentá-lo no mourão do sentimento,
que aí ele não resiste e, mais cedo ou mais tarde, cai. Porém o medo é plural:
não é uma rês, é rebanho. E o velho menino centauro, que adora voar aos galopes
pelos sertões, ainda tem medo de se desnudar ao público. E, vez em quando,
veste o gibão da coragem e entra na caatinga braba para pegar o desgarrado “boi
encantado e aruá” do medo. Mas, paradoxalmente, se meu boi morrer, o que será
de mim?
JGN – “Um adolescente de couro moreno /
que entrava no desembesto de um alazão / sonhando em chegar à lua / e abraçar a
sua face de pedra / e beber as suas águas fêmeas” – Desnudar a palavra, a palavra dentro da palavra, a palavra a comer a
palavra. Como arriscar-se nesta encruzilhada da libido, do erotismo, da
sensualidade sem cair na facilidade que possa levar o texto à banalidade e à vulgaridade?
Como tratar deste eixo temático, que aparece mais explicitamente nas suas
últimas obras? Existe uma preocupação sua ao tocar neste assunto?
JIVM –
Mas fazer poesia é correr riscos o tempo todo! Quem busca inaugurar sentidos
não dá a mínima para o que quer que os outros pensem, digam ou deixem de dizer.
E o meu caminho é este – o de desnudar a palavra e de exibi-la explicitamente
para que se possa ver toda sua pureza e/ou toda sua luxúria, ou ainda,
desnudá-la para lhe dar uma nova roupagem, uma indumentária que desperte em
quem me reconhece um olhar estrangeiro e, em quem me é estranho, um relampejo
de irmandade.
Trato de qualquer assunto
da maneira que for preciso, do jeito que o assunto se impõe dentro das formas
que vou criando. Mas percebo que há uma grande diferença do erotismo concupiscente
do Roseiral para os gestos pastorais
com que se apresenta, agora, no Pedra Só.
Não me pré-ocupo, mas no bojo do que estou fazendo, ou seja, da minha ocupação
criativa, há sempre uma atenção que busca a tensão dentro do verso, que, na
maioria das vezes, não se resolve imediatamente após o ato da criação. É
necessário que haja um tempo para que a poeira assente e então eu comece a
poder vislumbrar se os versos estão bem assentadas na fundação poética.
Pedra Só (Escrituras Editora, 2012) |
JGN – Gostaria de saber se houve uma preocupação estética
no projeto deste seu livro, principalmente ao começar com um poema heroico. Que
influência motivou a criação do poema “Pedra Só”, que abre e dá título ao livro?
JIVM –
Houve, sim, um pensamento estético, uma ideia nuclear que serviu como diretriz
e sustentáculo do livro, embora essa ideia seja posterior a alguns poemas, que
haviam sido feitos bem antes. E tudo se cristalizou na cidade do Recife, no
apartamento do meu amigo Ronaldo Correia de Brito, grande ficcionista, autor
dos livros Faca e Galileia. Ao mostrar um vídeo com um
poema meu, recitado pelo ator alagoano Chico de Assis, e com imagens da fazenda
Pedra Só, o Ronaldo falou: “Pedra Só é um belo título de livro”. Há muito eu já
vinha com o cenário da fazenda Pedra Só povoando meu imaginário, e até mesmo
idealizando outro cenário dentro daquele cenário, onde se misturavam e se
amalgamavam outras paragens sertânicas onde vivi, como a Ribeira do Traipu, em
Alagoas, e a Cerca de Pedra, aqui na Bahia, na mesma região da Pedra Só. Já tinha
feito até um poema que falava do reino da Pedra Só. De modo que o ponto de
partida já havia acontecido. Mas foi a partir da inquietação causada pela
sugestão do Ronaldo que comecei a pensar em fazer um longo poema que desse
conta do meu anseio pastoral e que fosse também banhado por minhas vivências. A
referência que povoava os meus pensamentos, o tempo todo, era a poesia de
Gerardo Mello Mourão, poeta que acompanho e me acompanha desde 1988, quando
descobri, em Jequié, a sua trilogia Os Peãs,
palco de um belo poema heroico e um marco na minha vida de leitor. Apesar de Os Peãs oferecerem a partitura que
serviria como base para o meu poema “Pedra Só”, foi a “Suíte do Couro”, poema
inicial do livro Algumas Partituras,
também de Gerardo, que se tornou o referencial básico para o meu poema, ao
ponto de algumas palavras do primeiro canto da suíte de Gerardo estarem
presentes na primeira parte do meu poema. Com o intuito de reverenciar e
referenciar o mestre, catei algumas palavras de seu canto de abertura e as
espalhei ao longo do meu canto primeiro, pensando muito, também, em João Cabral
de Melo Neto, quando diz no seu exemplar poema “Graciliano Ramos:”: “Falo
somente com o que falo / com as mesmas vinte palavras”. Então, usei vinte
palavras de Gerardo espalhadas nos versos de abertura do poema “Pedra Só”,
fonte motriz de meu livro homônimo. Claro que há outras referências, e aqui
quero registrar algumas: Luiz Gonzaga, Foed Castro Chamma, Herberto Helder,
Elomar Figueira de Mello, Casimiro de Brito, Mariana Ianelli, Francisco
Carvalho, Roberval Pereyr e o próprio Ronaldo Correia de Brito.
JGN – “O semeador da miragem / ouve dentro da tua
fala, / lá onde está a busca da Luz, do Sol do entendimento”. O que dizer da
influência dos cantadores em sua obra e vida? “Da boca dos pássaros, os violões
do Sol”. Dá para escrever sem ouvir a fala destas pulsações melódicas?
JIVM – Os
cantadores se amalgamaram ao meu ser. Registrados na minha memória, perderam
seus nomes para comporem a seiva do meu verso. Na matriz da minha letra poética
há um cantador cego, lá na calçada da igreja de São Cristóvão, em Palmeira dos
Índios, ou na feira de Arapiraca, ou ainda na Rua do Comércio, em Maceió,
entoando uma toada em versos alexandrinos ou numa redondilha maior,
cabalisticamente poetizando sua dor numa sextilha metrificada, tal qual o “Assum
Preto” do Luiz Gonzaga, o rei do Baião. E lá, naquele cego da Rua do Comércio
ou da Capela do Farol, estava plantada a semente de Homero, que brotava da sua
ladainha para os meus sentidos. E todos os cantadores de meio de feira do
Nordeste, desde Patativa do Assaré até o Cego Aderaldo, De Vavá Machado &
Marcolino ao Galego Aboiador, e mesmo aqueles que nunca ouvi, chegaram até a
minha sensibilidade nas asas do Pavão
Mysteriozo, diluídos nas canções dos compositores nordestinos que surgiram
na década de 1970, como o Raimundo Fagner, o Ednardo e o Belchior, no Ceará; o
Alceu Valença e o Geraldo Azevedo, em Pernambuco; o Zé Ramalho e o Vital Farias,
na Paraíba; o Elomar e o Xangai, na Bahia, e o Djavan, no país das Alagoas.
Então, desde que eu me entendo por gente, dentro de mim um passarinho já
soletrava, num idioma secreto, um aboio para o infinito – energia incandescente
como os raios do Sol. As sinfonias de Beethoven chegam até a minha sensibilidade
vestidas pelas matizes agrestes dos aboios dos cantadores. Não há como separar
a minha escritura do nascedouro da minha voz, porque, o tempo todo, minha voz
faz o caminho de volta ao silêncio – é como o Velho Chico voltando para sua casa,
a Serra da Canastra, no país das Minas Geraes. E quando a voz quer dizer o que
a palavra codificada não alcança, eu solto um aboio.
JIVM: "E eu entro em estado de transcendência quando olho nos olhos de cada um de meus dois filhos e me reconheço em suas íris, como um facho de luz que se descobre Sol". |
JGN – “Aí
eu monto em meu cavalo baio, / entro no mato e ascendo nos garranchos / e
começo a soltar meus aboios / para espantar o medo para bem longe”. Ao
lado destas grandes vozes, cavalga um estilo musical cosmopolita? Poderia
mencionar qual seria, ou como este diálogo acontece na existência do
centauro-vaqueiro-poeta? É um contraponto?
JIVM – Sua
entrevista está me deixado surpreso! Suas perguntas estão me levando para a
música, quando normalmente os entrevistadores me levam para a poesia. Mas estou
gostando muito, pois assim estou me dando conta de como a música exerce uma
grande influência na minha criação. Pois bem, além das cantigas e das toadas
dos cantadores e dos compositores da música popular brasileira, aprecio muito a
música clássica. Beethoven, para mim, é a perfeição musical. Sua 9ª Sinfonia
atinge os mais altos píncaros e, por mais que a escute, sou sempre comovido e
arrebatado, sentindo êxtases, epifanias. Beethoven é pungente e pulsante, assim
como pulsante e pungente é o som do Led Zeppelin, banda de rock que aprecio sem
moderação. Dirigir pelas estradas dos brasis ouvindo o barulho bom do Led
Zeppelin é uma maravilha, é como se estivesse montado num cavalo baio,
galopando rumo ao sem fim. Raul Seixas percebeu isso logo cedo, ao fundir o
forró de Jackson do Pandeiro com o rock de Elvis Presley. Devo mencionar aqui o
Pink Floyd, que, com sua música psicodélica, fez-me tanta companhia nas minhas
viagens... Isto tudo, ao invés de ser um contraponto, é um ponto de
convergência, no qual todos os sons se somam para receberem a nomenclatura do
meu aboio e criar a face da minha poesia. O Pedra
Só tem o contributo de revelar essa jornada através de versos. É dedicado
ao Luiz Gonzaga, pela passagem do seu centenário de nascimento, mas traz nas
suas páginas um poema dedicado ao Bob Dylan, pelos seus 70 anos de existência.
E do Bob Dylan ao Luiz Gonzaga é uma viagem só.
JGN – Não tinha como não perguntar isso, pois fiquei
surpreso com seu repertório musical durante minha estadia na Bahia. Acredito na
máxima que afirma que somos o resultado de todas as influências e escolhas em
nossa existência, além do que, o Pedra Só está dividido por
seções ou capítulos que remetem ao universo sonoro, como: “Aboio Livre”, “Toada do tempo” e “Partituras”. Além dos títulos
dos poemas: “Vozes secas”, “Jokerman”, “Sonata das musas escarlates”, “Cantiga
para Mariana”, “Cantiga para Leonardo”, “Cantiga para Ouro Preto”, “Cântico
para Gabriel”, “Beethoven”, “Coro dos inocentes”, “Instrumento”, “Pavão
Mysteriozo” e outros mais. Uso a música para descobrir o ritmo de cada poema, e
tornou-se um costume ao ler um livro. Aproveitando o verso do poema “Pavão Mysteriozo”: “maior de todas as
transcendências”, qual a sua maior transcendência? No fechamento deste poema
surge o tema “indiferença”. Ele é o paradoxo da possibilidade de voar? Ou a incapacidade
do homem moderno em observar neste voo suas raízes e ancestralidade? Ou, ainda,
é mesmo indiferença para o “todo”, este drama contemporâneo das grandes cidades?
JIVM – A
transcendência é sempre algo maior, que não há como mensurar. No verso que você
cita, do poema “Pavão Mysteriozo”, há uma redundância que me parece necessária
dentro da proposta do poema, mas transcender sempre nos leva à grandeza. E eu
entro em estado de transcendência quando olho nos olhos de cada um de meus dois
filhos e me reconheço em suas íris, como um facho de luz que se descobre Sol. Há
um poema meu, do livro A infância do
Centauro, que se chama “Gênese”. É um poema que fala de encontro, na
verdade fala do Encontro. E este encontro com outra pessoa, que conduz ao Amor,
é um momento de transcendência – e eu vivenciei aquele momento, por isso que encerro
o poema assim: “É isso, quando te encontrei, nasci”. Transcender é um
renascimento. Estar em contato com a Natureza é, para mim, uma condição
indispensável para que levante esse voo.
O homem moderno não tem tempo para nada, coitado! Não tem
tempo nem para chupar uma manga debaixo do pé, quanto mais para ficar pensando
em transcendência! Suas raízes, quando existem, são de ferro e de concreto, ou
virtuais. Vive dentro de um ritmo que o impossibilita de ser quem ele é,
massacrando-o. Ele sofre com a indiferença, mas é, também, indiferente ao que
lhe está acontecendo. Automatizado, suas relações são pontuadas pelo trabalho e
pela necessidade de especialização e reciclagem. Ou seja, o homem moderno é
completamente condicionado a se enquadrar em padrões que são indiferentes às
suas idiossincrasias. Aqui não está um apelo para que cada um faça o que bem
quiser, sem medir consequências. A questão posta é sobre o grande desencontro
em que estamos afundados. O outro deixou de ser o próximo para se tornar o
rival, ou, na melhor das hipóteses, aquele que passa ao meu lado e eu não o
consigo ver. A indiferença, ao meu ver, é a grande regente destes tempos ditos
pós-modernos.
JIVM: "A poesia é a minha religião e o meu caminho é o interior". |
JGN – Conhecer a poesia nesses tempos modernos seria
uma maneira de religar ou reencontrar as raízes perdidas. É possível acreditar
nisto ou é apenas mais uma utopia? Como se relacionam o centauro-vaqueiro, o
homem de família, o poeta e o agitador cultural? Como é o cenário literário
baiano, em termos de projetos que acontecem e poderiam ser referência ou
dialogar com outros projetos no Brasil? O caminho é o interior?
JIVM – A
poesia é a minha religião e o meu caminho é o interior. Parodiando Fernando
Pessoa, a poesia é a minha maneira
de estar sozinho, de estar comigo e de contemplar o mundo. Eu só me
reconheço quando sinto a vida pela poesia, porque aí a poesia da vida floresce.
Mas isso é comigo, que acredito nas divindades, que acredito nos
profetas/poetas e que rezo para as algarobeiras e para os pés de juá. A maioria
das pessoas me acham um ingênuo, um bobo mesmo. E, de fato, o meu modo de ser
me torna o bobo dessa corte que aí está. Melhor assim. Antes ser o bobo do que
participar do banquete dos lobos.
A Bahia é enorme, não
tenho como dar conta do cenário literário deste país de Sosígenes Costa e de
Elomar Figueira de Mello. Mas como fui editor de uma revista literária,
organizei duas coletâneas e coordeno projetos em diversas cidades, tenho uma
noção do que acontece por aqui, que não é muito diferente do que ocorre nos
outros estados. Percebo que há muitos projetos em atividade na Bahia. E falar
em Bahia é pensar em um estado que tem 417 municípios, divididos em 26
territórios de identidade. Pois bem, em todos esses lugares, a dificuldade para
difundir a literatura baiana é enorme, pois os gestores, em sua maioria, não
dão a mínima para a literatura. Muitos deles não sabem o que é literatura. Mas
apesar dessa ignorância, há os abnegados,
os que foram assinalados – a quem chamo de apóstolos – e que estão empenhados
em levar a palavra poética aos povos (como isso soa bíblico!). E por conta
desse trabalho de peregrino, as coisas acontecem aqui, ali e acolá. Um dos
recantos baianos onde se espraia a literatura brasileira contemporânea,
principalmente a poesia, é a cidade de Maracás, conhecida como Cidade das
Flores, mas que já começa também a ser chamada de Cidade da Poesia. Pois bem,
em Maracás acontece, uma vez por mês, o projeto Uma Prosa Sobre Versos, que já
está no quinto ano. O evento consiste basicamente na participação de dois
poetas, normalmente um baiano e um de outro estado, que são homenageados por um
grupo de recitadores de poesia, o Grupo Concriz. Depois, os poetas batem um
papo com uma plateia de mais de duzentas pessoas. Em linhas gerais, é isso. Mas
por trás dessa explicação básica, há o envolvimento da comunidade para que o
projeto possa acontecer. Pois os poetas convidados precisam de passagens, de
hospedagem e de cachês. Os jovens recitadores, ensaiam todos os dias da semana
para poderem apresentar um belo recital no dia do evento. Estou falando de um
grupo formado por 35 pessoas, que tem crianças com quatro anos de idade, vários
adolescentes e alguns adultos. E aquelas mais de duzentas pessoas da plateia,
estão ali para ouvirem os versos de um poeta que já conhecem, pois no decorrer
do mês anterior ao evento, os livros dos escritores são trabalhados nas salas
de aula. O êxito do projeto repercutiu nas cidades circunvizinhas, como é o
caso de Planaltino, onde acontece o projeto Palavra de Poeta, e onde há quatro
grupos de recitais: Renascer, Nordestinidade, Flor de Mandacaru, que é da zona
rural, do povoado de Campinhos, e só recita literatura de cordel, e o Brincando
com Palavras, que é um grupo infantil. Pois bem, os diretores de cultura de
Maracás, Edmar Vieira, e de Planaltino, Edivaldo Costa, fizeram uma parceria para
que os projetos de ambas as cidades acontecessem em dias consecutivos,
possibilitando que os escritores convidados para Maracás pudessem participar
também do projeto de Planaltino, de modo que os grupos de recital das duas cidades
se frequentassem, uma vez que cada um dos municípios fica com um poeta para
recitar. Olha, não há como explicar a emoção de cada recital, a cada mês. Só
sei dizer que os poetas convidados ficam em êxtase diante do que recebem. E,
certamente, têm uma ideia do que aqueles momentos de pura poesia, transbordando
daqueles jovens, serão marcos definitivos na vida de cada um dos que ali estão
presentes. Acredito sim que a poesia pode causar mudanças na vida de cada
pessoa e é por isso que sou o curador dos dois projetos. Na Bahia tem muito
mais poesia circulando. Vou deixar para que, em outra entrevista, João de
Moraes Filho, da cidade de Cachoeira, ou Clarissa Macedo, de Feira de Santana,
ou ainda o Carlos Souza, da UBE, em Salvador, falem das suas experiências como
coordenadores de projetos literários.
JIVM: "Enquanto existirem poetas, o mistério da palavra encantada seguirá, de casa em casa, ressuscitando a criança em cada ser e anunciando o delírio da criação". |
JGN – Retornando ao Pedra
Só: como surgiu a estruturação e projeto deste livro? O
capítulo “Toada do Tempo” começa
com a epígrafe: “– E o poema faz-se contra o tempo e a carne”, verso de Herberto Helder, e reforça
no poema “Escrituras”: “Eu
chego no silêncio que acende / as quatro ferraduras do tempo”, deixando-me a
provocação: como o centauro/poeta sente em sua carne este novo livro?
JIVM – Em uma
resposta anterior, já falei um pouco sobre a estruturação do livro, mais
detidamente sobre o capítulo inicial, o “Pedra Só”, que é o poema nuclear do
livro. Antes deste poema, havia escrito alguns outros, mas só comecei a pensar
em realizar o livro depois que fiz o “Pedra Só”. Os outros capítulos foram
adquirindo compleição de acordo com o parentesco que determinados poemas
demonstravam ter entre si. O segundo capítulo, “Aboio Livre”, mantém uma grande
proximidade temática com o “Pedra Só”, é como se fosse uma continuação, embora
não coubesse dentro desta seção. O terceiro, “Toada do Tempo”, é uma viagem
para dentro do templo do tempo, lugar de onde se pode medir os átimos e sentir
o absurdo da existência passar, passar rapidamente. Mas, por outro viés, há a
possibilidade de perceber-se também fora do tempo e se amalgamar ao instante,
que é só o instante para todo o sempre. É neste capítulo que uso com mais
frequência o verso metrificado. A quarta seção, a mais lírica, chama-se
“Partituras”, que é composta basicamente de cantigas e cânticos de louvor às
musas, às crianças e a alguns lugares. O capítulo que fecha o livro, “Parábolas”,
abre-se para outros horizontes, e, como o próprio título indica, é cheio de
parábolas e de mandalas de matizes surrealistas, no qual um “Pavão Mysteriozo”
sobrevoa os “Castelos de letras” que invento com minha caligrafia rústica.
Outro detalhe importante do Pedra Só, é que as pessoas que fizeram os textos de apresentação e
as imagens ilustrativas são amigos que conhecem a fazenda Pedra Só e que já passaram
dias por lá, cavalgando em minha companhia. Deste modo, o jovem poeta Vitor
Nascimento Sá, da cidade de Maracás, fez o texto das orelhas: “A Ítaca do
Sertão e o demiurgo encourado”; o talentoso jornalista soteropolitano Gabriel
Gomes, meu compadre, fez o posfácio, na verdade, um perfil intitulado “O Poeta
e a Pedra. Só.”; ainda no posfácio, precedendo o perfil, há um poema de Elizeu
Moreira Paranaguá – o Conde dos Lajedos, da cidade de Castro Alves – feito em
uma noite de fogueira, no terreiro da casa dos meus quarenta anos; Há também a
poesia das imagens capturadas pelo fotógrafo mineiro Ricardo Prado, meu
parceiro de trilhas pela chapada e pela caatinga, que fez a foto da capa e mais
sete internas, todas tiradas na Pedra Só. Apenas o texto da contracapa é que
foi feito por um artista de além mar, que ainda não esteve no reino da Pedra
Só, refiro-me ao escritor português Gonçalo M. Tavares, amigo que tive o prazer
de conhecer em Olinda. Como se pode perceber, estou muito bem acompanhado,
cercado de amigos. Não poderia ser diferente, visto que este é o meu livro mais
autobiográfico.
Sinto que minhas carnes estão acesas, em sintonia com a
cadência dos galopes e dos golpes dos dias. O Pedra Só aparece num momento de minha vida em que estou em plena
atividade e menos apreensivo. Não crio expectativas em torno da chegada de mais
um rebento, apesar de estar curtindo muito este momento. Deixo as coisas
acontecerem naturalmente. E elas estão acontecendo com uma intensidade
espantosa. Ademais, continuo a garatujar
nos pergaminhos da invisibilidade a poesia que me é possível.
JGN – Sei que nossa conversa e sombras
caminham ao longe, requerem mais sol para alimentar o canto de todos os vaqueiros
e cantadores, e é sabido que “O mistério segue de casa em casa / a balançar a
criança na rede”. O que mais dizer neste caminhar versos de “hinos circulares”?
JIVM – Que é
isto mesmo: enquanto existirem poetas, o mistério da palavra encantada seguirá,
de casa em casa, ressuscitando a criança em cada ser e anunciando o delírio da
criação, inscrevendo nas suas retinas as partituras dos hinos circulares,
encerrando e inaugurando ciclos. Agora, no início da primavera, começarei a
viajar pelos brasis, levando este poemário solar, que fala do Sertão e do meu
Ser, tão perplexo e assustado com todos esses caminhos. Começarei pela Casa das
Rosas, em São Paulo, no dia 27 de setembro, atendendo ao seu chamamento, José
Geraldo Neres, para lançar o meu Pedra Só,
soltar uns aboios e recitar alguns poemas. Então, até já.
Entrevista publicada no portal Cronópios (www.cronopios.com.br), em 11/09/2012
José Geraldo Neres. Poeta, ficcionista, e produtor cultural paulista. Três livros publicados; Olhos de barro (Editora Patuá, 2012) é a mais recente obra.
José Geraldo Neres. Poeta, ficcionista, e produtor cultural paulista. Três livros publicados; Olhos de barro (Editora Patuá, 2012) é a mais recente obra.
Pedra Só /
José Inácio Vieira de Melo (Escrituras Editora, 2012). ISBN 978-85-7531-431-9
Fotos do poeta e da capa
do livro: Ricardo Prado
5 comentários:
Tudo bom,Inácio. Antonio Junior sempre o elogia muito. Sou da cidade dele, Itabuna, e resolvi adicionar o seu blog para parceria com o meu, de Redação.
Abraços,
Uma bela entrevista. " E o meu caminho é este – o de desnudar a palavra e de exibi-la explicitamente para que se possa ver toda sua pureza e/ou toda sua luxúria, ou ainda, desnudá-la para lhe dar uma nova roupagem, uma indumentária que desperte em quem me reconhece um olhar estrangeiro e, em quem me é estranho, um relampejo de irmandade." (JIVM) - Parabéns!
Parabéns, meu querido Poeta, pela entrevista e pelo novo livro! Um grande abraço!
Um diálogo instigante sobre o momento poético decisivo...Parabéns "POETAÇO", quando vier a Fortaleza também nos avise ok !
Parabéns, Poeta Luminoso José Inácio Vieira de Melo! Poeta dos muitos Lumes, dos muitos Olhares e Sonhares vazados pelo viver solar nordestinado.
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