sábado, 26 de novembro de 2011

CHUVA DE SAUDADES

José Inácio Vieira de Melo

Eis que vem à tona o poemário de estreia de Martha Galrão. Mas por ser o primeiro caderno de poemas a ser publicado, não pense o leitor que está diante de uma poesia imatura. Martha escreve como quem passa batom nos lábios, com cuidado, delicadeza, para que não haja nenhum borrado na boca e para que o brilho seja impecável. Suas palavras de carmim ficam “doidas pra tecer mistérios”.
Talvez seja esse o leitmotiv de Martha: tecer mistérios a partir da singeleza do cotidiano, tirar encanto do áspero dia a dia. Penélope do século XXI, insiste na tessitura de sua colcha de versos até que surja, não se sabe de que recônditos do seu ser, a imensidão de um silêncio abrasador, que vem povoar, com seus fantasmas, a peça principal do seu enxoval de sonhos. E a poeta diz com as letras certas o que tem pra oferecer: “São lavores,/ meu amor,/ são bordados/ de muita delicadeza”.
Martha Galrão demonstra, em seus versos, ter um cuidado com as palavras, e revela como sente algumas delas: “Uma palavra tensa:/ tempo”, “Uma palavra firme: chão”, “uma palavra livre:/ beija-flor” “Cigarras são palavras femininas”. Martha tem palavras a dizer. E suas palavras se arrumam sempre em versos livres, o que não significa que não tenha consciência de ritmo nem que seus poemas sejam descuidados.
Um poema exemplar do seu artesanato é “O afogado mais formoso do mundo” que é todo trabalhado em rimas toantes. Seu ritmo é marcado ao final de cada estrofe por rimas que destacam o fonema “u”. Como se não bastasse, há ainda as rimas da primeira para a segunda estrofe, que aparecem com tal discrição que mal chegam a ser percebidas. O poema é concluído com uma quadra que obedece o esquema rimático ABAB. Há que se destacar a sonoridade do segundo e do terceiro versos da última estrofe provocada pela aliteração em “s”. O mais interessante, é que todo esse trabalho meticuloso é quase imperceptível, como acontece sempre nos grandes poemas. O que vem à baila mesmo é a simplicidade da poesia, que cria uma esfera de encanto e que conduz o leitor para o reino da beleza, mesmo que a temática trate da morte de alguém. Vejamos o poema na íntegra:

Você é o afogado
mais bonito do mundo

Retiro do seu rosto branco
os matos de sargaço
e os filamentos de medusa

Revelo a beleza
de suas sobrancelhas ruivas
incandescentes
rubras.

Com sua lira suave Martha Galrão vem se juntar ao time de poetas baianas que faz uma poesia que corteja a simplicidade, partindo do cotidiano e das relações afetivas para vislumbrar o mistério. Muitos são os pontos de convergência com as poetas grapiúnas Rita Santana (Tratado das veias, 2006) e Iolanda Costa (Amarelo por dentro, 2009), embora cada qual tenha a sua maneira própria de assentar o inefável no branco do papel. Há ainda um deslumbre pelo ínfimo e pela exuberância que lhe confere parentesco poético com o poeta pantaneiro Manoel de Barros.
Há outras referências. Algumas aparecem com mais nitidez, seja em epígrafe, como Carlos Drummond de Andrade, ou em intertexto, como a presença morena de Caetano Veloso. E vários são os textos que permitem fazer uma aproximação com Cecília Meireles, a exemplo do poema “Água” (como o poema não tem título, uso o primeiro verso para identificá-lo), que é de uma leveza tal que parece feito seguindo os passos do poema “Leveza” de Cecília. Ambos almejam a purificação, como se pretendessem se elevar ao ponto em que perdessem suas identidades e passassem a fazer parte da unidade com o Divino. Nos dois poemas, esse efeito se consegue através do uso da gradação ascendente. Enquanto Cecília exibe a leveza até evoluir para a invisibilidade, Martha purifica seus medos e suas quedas pela água até chegar ao completo alívio, quando será vapor. Vejamos os poemas de Cecília e de Martha:

Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.

E o que se lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.

E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

(Leveza, Cecília Meireles)


Água
transforme minha dureza
em correnteza

Água
transforme minha queda
em cachoeira

Água
transforme meu medo
em corredeira

Água
me transforme em vapor
me alivie por inteira.

(Água, Martha Galrão)

A Chuva de Maria é fina, aquele sereno que molha e que desperta a vontade do aconchego. Uma chuva mansa que provoca uma saudade danada. Aliás, Martha tem uma estranha vocação à saudade. Saudade das coisas que viveu e, principalmente, das coisas que não viveu. Martha inventa coisas para poder sentir saudades. E mal termino a leitura de A Chuva de Maria, já sinto bem dentro do peito uma coisa apertando: saudades da poesia de Martha Galrão.

Prefácio do livro de poemas A chuva de Maria (Kalango, 2011).

Um comentário:

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