quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

UM POETA VESTIDO DE SOL E FOGO

Décio Torres Cruz

Foto: João Urban
"Para quem não conhece a fascinante e encantatória poesia 
do grande poeta José Inácio Vieira de Melo, seu novo livro 
O filho do Sol apresenta um resumo de sua escrita
extasiante e vigorosa  que nos arrebata por inteiro."

A Bahia produz grandes escritores, mas também acolhe poetas e artistas de diversas partes do Brasil e do mundo. É o caso do alagoano José Inácio Vieira de Melo, radicado em nosso estado desde 1988. 0 premiado autor de diversos livros de poesia celebrou, neste ano, seus 55 anos com uma antologia intitulada O filho do Sol (Mondrongo, 2023).

Como destaca a crítica literária Raquel Naveira no prefácio, o poeta e produtor cultural "é mesmo 'filho do sol': o sol do sertão, do fogo que se espalha pelas ideias e imagens, do conhecimento dos meandros poéticos, da ânsia de imortalidade presente em todo aquele que escreve com paixão pela palavra.” Sua relação com o sol e o fogo também é mencionada na orelha do livro pela poeta e professora da Uneb Lilian Almeida, quando afirma que a inteireza do sol habita os versos de José Inácio, "nascido sob a égide do elemento fogo”. Inácio carrega a marca da brasa da palavra “Ígneo" no próprio nome derivado do latim "Ignatius", que significa "ardente" ou "cheio de fogo". A forte conotação de Intensidade e fervor presente em seu nome também se apresenta em seus temas, como em “Suíte de amor, ódio e guerra", no qual "Chovem raios de sol / sobre o voo dos urubus / que assistem o espetáculo / da batalha sangrenta: / prenúncio do grande banquete "
 
A temática rural

"Da mesma forma que o poeta estadunidense Robert Frost
escolheu uma fazenda no campo no frio estado de Vermont
para morar, José Inácio Vieira de Melo passa boa parte
do seu tempo na fazenda Pedra Só, no município
de Iramaia, na Chapada Diamantina."

Dividido em dez partes, o livro é composto de 55 poemas. Com exceção de cinco inéditos, os poemas foram selecionados de seus livros anteriores cujos títulos nomeiam as divisões: Códigos do silêncio (2000); Decifração de abismos (2002); A terceira romaria (2005); A infância do Centauro (2007); Roseiral (2010); Pedra Só (2012); Sete (2015); Entre a estrada e a estrela (2017); e Garatujas Selvagens (2021). O autor nos brinda com uma excelente antologia de poemas selecionados com bastante esmero que fica difícil para os leitores decidir qual deles pode ser eleito como o melhor ou o favorito, tamanha a potência, o vigor e a beleza lírica de cada um deles.

Da mesma forma que o poeta estadunidense Robert Frost escolheu uma fazenda no campo no frio estado de Vermont para morar e elegeu, como temática, a labuta do dia a dia e os elementos da natureza ao seu redor, partindo do prosaico para a criação de versos que se imortalizaram ao criar teorias filosóficas sobre a existência humana, o mesmo se passa com esse sertanejo que, em vez da neve, pinheiros e bétulas, tem como tema o sol, o calor, a fauna, a flora e os habitantes do sertão, lá que passa parte de seu tempo na fazenda Pedra Só, no município de Iramaia, quando não está viajando para fazer curadorias ou participar de eventos e festivais literários pelas capitais.

A região rural da Chapada Diamantina aparece como tema e personagem em seus versos. Enquanto Frost dedicava poemas ao trabalho de conserto de cercas de pedras que caem com o passar das estações (Mending Wall), faz uma parada no meio da floresta para contemplar a neve caindo numa tardinha de inverno (Stopping by woods...) ou para escolher o caminho que faz a diferença em nossas vidas (The road not taken), fatos cotidianos de uma vida rural, mas que ganham dimensões metafísicas, nosso poeta "cavaleiro de fogo" também fica dividido “entre a estrada e a estrela" de seu "habitat", ao mesmo tempo que aborda personagens míticos e passeia pela cultura cristã e medieval, fazendo-nos refletir sobre crenças e tudo aquilo que move nossa existência terrena.

Como "a morte promete jardins” em seus “exercícios crísticos”, ele pede a "benção" ao “anjo da guarda", escreve um “epitáfio" para "as bodas de sangue" de Guinevere, constrói um "totem para Frida Kahlo" e "inventa pontes ao longínquo" para a violoncelista e poeta Denise Emmer. Na "toada da despedida" registra “a fala do silêncio” e descreve “auroras", "rosas", "pedras amoladas e facas atiradas", “galos de briga", "cordeiros de abril", "cavalos de luas", e "gaviões sutis". E "num estalar de dedos", traça "caligrafias" em forma de "garatujas selvagens" na "esteira do infinito". Lá, compõe música com "violões deslumbrados" e faz a “travessia" na "rota infinita" para um "mundo feito pra gente andar" onde filosofa sobre a "gênese" da "transmutação", a "metamorfose" e a “sagração" do "mito do centauro" e das "musas escarlates". Essas palavras aspeadas foram extraídas de versos ou títulos de seus poemas.

"A poesia de José Inácio Vieira de Melo nos traz esperança
e nos conforta. Em defesa da vida e do meio-ambiente, seus
versos possuem tanto a força potente do grito denunciador de
atrocidades quanto a beleza lírica da vida em sua transição."

O poema Ideograma, que abre o livro, é um metapoema que estabelece reflexões sobre inspiração e a arte infinita da escrita. Como um exímio pintor, o poeta delineia as triviais e metafóricas léguas tornadas línguas de estradas que conduzem a vilarejos longínquos. Nessa viagem, podemos perceber partos de animais soltos no tempo e o brilho efêmero de vaga-lumes na solitude da noite que, ao disseminarem suas luzes velozes pelo firmamento, compõem uma sinfonia noturna e tracejam um “ideograma do Universo".

Ouçamos a voz do poeta nesse seu jogo transformador do particular no universal: "Ao pé do ouvido / a sílaba inumerável / da escrita. // Um cata-vento assoviador / sussurra o tom da mandala / que me anima. // E sigo / traço a traço,/ quilômetro a quilômetro, // até chegar à senha / das lonjuras. // Légua é língua de estrada, / régua estendida / ao desconhecido dicionário, // o intacto vilarejo / onde libérrimas éguas parem, / na boca da noite, / velocíssimos vaga-lumes / que se espalham / no firmamento // a compor o ideograma / do Universo."

Do mesmo modo que Robert Frost falava do fim do mundo em "fogo e gelo", ligando desejo e ódio aos elementos naturais, em entrevista, José Inácio me fala de sua preocupação com a seca e o extremo calor que consomem sua região. Conversamos sobre as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global e sobre o temor em relação aos futuros cataclismas que se avizinham e para os quais nos sentimos impotentes ante os descasos dos governantes do mundo.

Contudo, sua poesia nos traz esperança e nos conforta. Em defesa da vida e do meio-ambiente, seus versos possuem tanto a força potente do grito denunciador de atrocidades quanto a beleza lírica da vida em sua transição. Num apelo pungente, em Suíte de amor, ódio e guerra, ele convoca seus leitores a seguirem em frente, mesmo quando "falta noite no vazio que restou do dia", pois “é preciso que a voz / diga a palavra vida // e que ela transborde / e se bifurque e se divida // em milhares de vozes / cheias de vida".

Para quem ainda não conhece a fascinante e encantatória poesia desse grande poeta, seu novo livro O filho do Sol apresenta um resumo de sua escrita extasiante e vigorosa que nos arrebata por inteiro e que deve ser melhor conhecida do grande público.
 
Sobre o autor
Foto: João Urban
"O poeta José Inácio Vieira de Melo e sua obra"

José Inácio Vieira de Melo (1968) é poeta, jornalista, produtor cultural, coordenador e curador de vários eventos literários. Além dos livros já mencionados, publicou as antologias 50 poemas escolhidos pelo autor (2011) e O galope de Ulisses (2014). Organizou Concerto lírico a quinze vozes - Uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004), Sangue Novo - 21 poetas baianos do século XXI (2011) e Concerto lírico - 15 poetas 15 anos depois (2019). Publicou os CDs de poemas A casa dos meus quarenta anos (2008) e Pedra Só (2013).

Foi coeditor da revista literária lararana (2004 a 2008). Participa das antologias Pórtico Antologia Poética I (2003), Sete Cantares de Amigos (2003), Roteiro da poesia brasileira - Anos 2000 (2009), Autores Baianos: Um panorama 2 (2014), Orillas de América Literaria - Poesía Brasileira Contemporánea (2020) e Poemas de amor e guerra (2020).

No exterior, participou das antologias Voix croisées: Brésil-France (Marselha, 2006); Impressioni d'Italia - Piccola antologia di poesia in portoghese con traduzione a fronte (Nápoles, 2011); En la otra orilla del silencio - Antologia de poetas brasileños contemporáneos (Cidade do México, 2012), Traversée d'océans - Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Paris, 2012); A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo, 2013) e Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Review, 2013). Tem poemas traduzidos para o alemão, árabe, espanhol, francês, italiano, inglês e finlandês.

Dentre os prêmios conquistados, destacam-se o Prêmio O Capital 2005, com o livro A terceira romaria, o Prêmio QUEM 2015, da Revista Quem, da editora Globo, na categoria Literatura - Melhor Autor, com o livro Sete, e o Prêmio de Poesia Hilda Hilst 2021 da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, com o livro Garatujas Selvagens.



Décio Torres Cruz é escritor, crítico literário, poeta, professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). É
 Ph.D. em Literatura Comparada pela State University of New York (SUNY) em Buffalo, nos Estados Unidos. Mestre em Teoria da Literatura, especialista em Tradução e bacharel em Letras/Língua Estrangeira, com concentração em língua e literaturas de língua inglesa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor de vários livros, Décio Torres publicou diversos ensaios sobre diferentes temas e contribuiu para pesquisas acadêmicas nas áreas de estudos de adaptação, linguística aplicada, estudos culturais, estudos shakespeareanos, entre outros.



segunda-feira, 7 de agosto de 2023

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO: O FILHO DO SOL

 Por Raquel Naveira 

Foto do autor: Luciano Avanço | Foto da capa: Ricardo Prado
"55 anos celebrados nesta Antologia de 55 poemas
escolhidos, intitulada O Filho do Sol, de José Inácio
Vieira de Melo, alagoano radicado na Bahia,
poeta premiado, jornalista e produtor cultural"

Um número mágico: 55. Aos 55 anos, vários desafios foram superados com coragem. O numeral cinco representa os cinco sentidos, a ordem do Homem no Universo. 55 anos celebrados nesta Antologia de 55 poemas escolhidos, intitulada O Filho do Sol (Editora Mondrongo, 2023), de José Inácio Vieira de Melo. 

 José Inácio, o alagoano radicado na Bahia, poeta premiado, jornalista e produtor cultural, é mesmo “filho do sol”: o sol do sertão, do fogo que se espalha pelas ideias e imagens, do conhecimento dos meandros poéticos, da ânsia de imortalidade presente em todo aquele que escreve com paixão pela palavra. 

 Os títulos dos livros de José Inácio nos levam a pistas do seu imaginário e do seu fazer poético. Códigos do Silêncio... o silêncio com seus mutismos, taciturnidades, segredos. O silêncio em códigos, em símbolos, em células, em sistemas para decifrar a escrita, para transmitir mensagens. O poeta nos incita a interpretações: “O silêncio, este que fala e de tanto que fala,/ é um hieroglífico poema,/ e estes versos: tradução e codificação.” Silêncio em que se penetra: “Silêncio na carne/ Silêncio que sente a areia passar./ Tempo para a solidão do poema.” Silêncio e solidão, condições propícias para se criar Poesia. 

O poeta, em Decifração de Abismos, entrega ao leitor poemas místicos, crísticos, como comprovam estes versos: “Eu sempre tive o desejo incontinenti de salvar o mundo”; “Sempre cri ser o redentor de toda miséria humana”; “Sinto em cada estrela uma Madalena a luzir”. Bebe as fontes da bênção, num poema patriarcal: “Meu pai,/ beijo tuas mãos,/ não como um homem/ pretende beijar as de Deus,/ mas como uma árvore/ beija suas raízes.” Nessa busca de sua ancestralidade mais profunda, clama por seu avô Moisés: “O meu avô Moisés: meu anjo da guarda.” 

 Quando o poeta José Inácio nos vem à mente, é fácil imaginá-lo de chapéu, montado sobre um cavalo, os olhos perdidos pelos cactos do sertão. O cavalo é símbolo de poder, força, liberdade, confiança. Figura que representa os desejos humanos mais impulsivos. Os cavalos estão presentes na poesia viril desse cavaleiro do fogo, filho do sol, com “coração de rubi, “ígneo, Ignácio, Inácio”: “... trazias os céus dentro dos olhos,/ o relinchar da paixão pagã/ dos cavalos que trago dentro de mim”; “... a dos cavalos galopando na boca da noite/ sonhando com touceiras de capim e éguas luzidias.” 

Foto: Ricardo Prado
"E um homem sobre o cavalo se transforma numa espécie
de centauro. José Inácio é centauro que galopa, galopa,
galopa, transcendendo a ele mesmo e às suas explicações."
 
E um homem sobre o cavalo se transforma numa espécie de centauro, daí o título do livro A Infância do Centauro, com dois cernes temáticos: a infância e o centauro. O centauro é vermelho, escarlate: “O teu centauro te espera,/ monta em seu dorso/ e vê o mundo pelos olhos da esfinge:/ és o enigma, não do decifrador.” O centauro é o conflito da natureza masculina: homem e cavalo, razão e instinto, delicadeza e brutalidade. José Inácio é centauro que galopa, galopa, galopa, transcendendo a ele mesmo e às suas explicações. Galopa o território da sua infância, a sua principal metafísica, a sua memória: “Gosto de subir no telhado da casa/ e olhar para dentro do quintal,/ é lá que estão o menino e a arte.” 

Roseiral... rosas que exalam romantismo e sensualidade. Rosas belas e efêmeras colhidas no jardim, ao pôr do sol. O poeta declara: “Meu coração é mesmo a rosa viva”; “Estas rosas que vês em mim são brasas.” Há pura eroticidade neste poema com o tom bíblico do “Cântico dos Cânticos”: “Que as tuas nádegas aventureiras estejam abertas/ para o poema em linha reta que te ofereço”; “Num estalar de dedos/ encontro impulso para viajar pelo infinito./ Num beijo, fundo a linguagem/ que desperta em mim o desejo do gozo e do atrito.” 

Chegamos ao livro Sete. Sete é também número simbólico. A humanidade aguarda o cumprimento da profecia apocalíptica do final dos tempos com uma revelação que virá em forma de sete estrelas, sete selos, sete trombetas, sete calamidades. Aprecio essa proposta do poeta de uma certa unidade através da escolha de uma temática central, no caso, o número sete e seus sortilégios. Um livro que nos faz mergulhar no poder oculto desse número como no poema “Sete Irmãs”: “São sete noites vividas por Borges,/ São sete fadas da ilha de Lesbos,/ São sete acordes de Joaquin Rodrigo,/ são sete facas de Aderaldo, o Cego.// Ah minhas sete irmãzinhas serenas,/ vamos jogar enquanto há tabuleiro,/ sete damas rainhas, sete Helenas,/ Sou vosso servo, vosso Cavaleiro.” 

 Há ainda A Terceira Romaria, o três, outro número perfeito. A terceira romaria é a derradeira, a que vai de encontro à morte: “Inevitável a única certeza:/ um dia a Derradeira vai lamber/ a tua boca e já estarás/ habitando noutras plagas.” 

Foto: Divulgação
"José Inácio Vieira de Melo no auge de seus 55 anos
e 55 poemas, é como um pianista selvagem que nos
eleva com suas notas e compassos a paragens muito
altas, quando afirma: "Prontos para minha passagem/
meus pianos pairam sob um céu de rosas."

A expressão Pedra Só remete à pedra de João Cabral de Melo Neto, A Educação pela Pedra. A pedra somente. Fundamental e angular. A pedra sozinha, solitária, no calcinante sertão: “Da boca dos pássaros, os violões do sol./ Rezo benditos e grito os nomes da Terra.”

Garatujas Selvagens são rabiscos surreais, desenhos, grafismos, arabescos: “Há um tigre dentro do relógio,/ correndo por entre os sonhos/ e atravessando a savana do tempo.” 

 Muitas são as referências a pessoas como a tia Aurora: “A casa de tia Aurora é um lugar dentro do meu sentimento”; às musas empalidecidas como Cássia e Quitéria; às mães protetoras, feras “com dentes de amor”, “...açudes onde se afogam os filhos”; à mãe do poeta, Dona Inácia, cuja dimensão do amor ele só foi compreender na maturidade, quando descobriu que “filhos são sementes de alegria e germes de sofrimento”. 

 Referências também a escritores, mostrando a erudição do poeta que aprecia Federico Garcia Lorca, Jorge de Lima, Baudelaire, Safo, Homero e, na contemporaneidade, Denise Emmer. A ela dedica o poema “A Violoncelista”, a poetisa tocando seu cello, escalando paraísos; ofertando beleza às nossas entranhas. 
 As referências bíblicas vão da misteriosa Madalena ao rei Davi, passando por Salomão, com a lembrança do “Cântico dos Cânticos”. Com certeza, o evangelho de José Inácio é a música. É também o evangelho do silêncio, dos abismos, da memória, dos cavalos de fogo, das rosas vivas, das pedras, das garatujas e ideogramas, das sete colinas. 

José Inácio Vieira de Melo, no auge de seus 55 anos e 55 poemas, é como um pianista selvagem que nos eleva com suas notas e compassos a paragens muito altas, quando afirma: “Prontos para a minha passagem,/ meus pianos pairam sob um céu de rosas.”

Foto:Filipe Vido
Raquel Naveira é escritora, professora universitária, crítica literária e Mestre em Comunicação e Letras. Autora de vários livros de poemas, ensaios, romances e infanto-juvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Letras do Brasil, à Academia de Ciências de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.

terça-feira, 18 de abril de 2023

EM BUSCA DA FONTE SECRETA: A POESIA VIAGEIRA DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Por Ricardo Vieira Lima

Capa: Ramiro Bernabó
"Garatujas selvagens, nono livro de poemas de José Inácio
Vieira de Melo, alça seu autor ao seleto grupo dos
maiores poetas brasileiros contemporâneos"

Garatujas selvagens (Arribaçã Editora, 2021), nono livro de poemas de José Inácio Vieira de Melo, é o cume máximo, a síntese extraordinária de uma obra que, ao longo de mais de 20 anos, se impôs aos leitores de poesia, em razão de suas qualidades intrínsecas, as quais, sobretudo a partir deste novo volume de versos, alçam seu autor ao seleto grupo dos maiores poetas brasileiros contemporâneos. 

Que não haja dúvidas: estamos diante de um poeta telúrico, sim; atávico, sim; visionário, sim; e de inconfundível voz própria. Pois, como bem diz a romancista Ana Miranda na contracapa do livro, José Inácio “cria a sua própria cartilha, em busca da fonte secreta”. Sabemos, no entanto, que, para se chegar a uma “fonte secreta”, i.e., não visível a olho nu e não disponível facilmente, é necessário percorrer, por vezes, um longo caminho. Nesse sentido, Vieira de Melo é um poeta andarilho, conforme ele mesmo admite no poema de linhagem concretista “Trilhas” (p. 48), em que as palavras se movimentam, como se estivessem prestes a dançar: 

        somente
                    perdido
                            nos caminhos

                            o andarilho
                    está 
        em casa


Aliás, na obra anterior a Garatujas..., Entre a estrada e a estrela (2017), JIVM já abria o volume dizendo: “O mundo foi feito pra gente andar” (p. 17). 

Com efeito, a poesia viageira de José Inácio Vieira de Melo está sempre em movimento, à cata de novidades. Dividido em não menos do que 10 partes ou seções, Garatujas selvagens personifica exemplarmente essa poética:

        No claro ou no escuro
        procuro porque procuro
        sempre novos rumos.

        Sem pensar futuros
        procuro porque me curo
        ao ultrapassar muros. 
            ("Procura", p. 45).

O poema, composto por dois tercetos, com métricas que se alternam entre a redondilha menor e a maior, possui um ritmo intensamente musical e sonoro. Essa busca, esse desejo de movimento em direção à “cura” (“fonte secreta”?), prossegue em outro texto (todo ele escrito em redondilha maior) da segunda seção do livro – na qual há o predomínio da metalinguagem, assim como na primeira parte da obra –, intitulado “A procura” (p. 49): “O que procuro nem sei./ É meu olhar que se atira/ para mais alto que em cima,/ onde talvez nunca irei.// Está tudo tão disperso,/ mas em meio a tanto não/ às vezes encontro um pão/ bem recheado de versos”. Fome e poesia. Ou fome de poesia? Sede, talvez. Que o digam os últimos versos de “A procura”: “Ainda sinto muita sede,/ por isso que estou no fronte/ e ao atravessar a ponte/ acharei a fonte secreta:// (...) e em meu mundo tudo muda:/ mente em movimento eterno.” (p. 49). Metapoesia em movimento, sempre em busca da “fonte secreta” (quiçá a “cura” de todos os males do corpo e do espírito), em José Inácio a palavra poética é, pois, deslocamento, andança: 

        Cada palavra tem sua via.
        É tudo imprevisto a cada linha.

        Mesmo o dito e feito, 
        quando ajuntado em palavras,
        pode aparecer de um outro jeito.

        E quanto mais emaranhado o caminho,
        o viajor das palavras mais se aprofunda:

        quer desenhar as formas ignaras
        e sentir o incenso do imenso obscuro.

        A palavra é o de repente,
        é o desprevenido instante,
        e tudo se alinha no seu rompante.
            (“Via das palavras”, p. 24). 

Nesse admirável poema, o eu lírico afirma que cada palavra possui a sua trajetória, plena de múltiplas significâncias, repentinas e irrepetíveis. E que o poeta em profundidade é um “viajor das palavras”, um peregrino das letras, aquele que melhor andará e cantará, quanto mais for “emaranhado o caminho”. 

"José Inácio, "o último cavaleiro andante",
cria sua própria cosmogonia naturacentrista,
em versos aliterantes e ontológicos."

A exemplo de Dom Quixote de La Mancha, personagem imortal de Cervantes, José Inácio pode ser definido, ainda, como “o último cavaleiro andante”, embora não de “triste figura”. Muito ao contrário: quem conhece pessoalmente o poeta alagoano-baiano sabe que, com certa frequência, ele se apresenta com um chapéu de vaqueiro, recitando seus versos de cor, de modo vigoroso, diante de plateias hipnotizadas pela força de suas palavras e de seu carisma. No final do livro de poemas Sete (2015), por exemplo, há uma foto do autor, de chapéu de couro, cavalgando, aparentemente, no sertão. Em Garatujas..., o galope se transmuda em poesia: “Cavalgo versos ao meio-dia/ e o Sol se espelha no meu chapéu.// (...) A vertigem se abre ao galope./ Levanta eras, a poeira dos cascos./ Cosmos cavalgam comigo.” (“Galope solar”, p. 46). Desse modo, JIVM cria a sua própria cosmogonia naturacentrista, em versos aliterantes e ontológicos. 

Antológicos, também, como no caso do poema metalinguístico homônimo do volume. Como se sabe, os animais – dos reais aos mitológicos – desde sempre foram retratados pelos prosadores e poetas. Para ficar apenas com estes últimos, há toda uma tradição universal que inclui, v.g., a rã e a cotovia de Matsuo Bashô, o corvo de Poe, o albatroz de Baudelaire, o cisne de Yeats, a pantera de Rilke ou os gatos de T. S. Eliot. Enfim, são numerosos os exemplos. Em língua portuguesa, podemos citar, na poesia lusitana, o “monstrengo” de Camões retomado por Pessoa, ou os gatos de Eugênio de Andrade e Adília Lopes. Na poesia brasileira, há vacas e bois em sonetos de Jorge de Lima e Vinicius de Moraes; o elefante de Drummond, retomado posteriormente por Chico Alvim, além da série de “poemas da cabra”, de João Cabral de Melo Neto. Mas a incidência maior está mesmo no grupo dos felinos, sobretudo o gato – com seu ar enigmático, sua domesticidade e sua inquestionável fidelidade –, que já inspirou, dentre outros, poemas de Vinicius de Moraes (novamente ele, desta vez em A arca de Noé), Ferreira Gullar, Ivan Junqueira, Ana Cristina Cesar e Nelson Ascher. Não podemos nos esquecer, todavia, das figuras do “rei leão” (mais uma vez Vinicius e sua arca) e da “suave pantera”, de Marly de Oliveira. 

Pois bem: ciente desse paideuma animalesco, José Inácio Vieira de Melo compôs o poema “Garatujas selvagens” (p. 23), decerto a partir da figura do tigre de Blake e de Borges, porém inserido no relógio cabralino: 

        Há um tigre dentro do relógio,
        correndo por entre os sonhos
        e atravessando a savana do tempo.
        Quando vem à tona seu rugido
        e suas garras arranham as pedras do deserto,
        ficam insculpidas no meu âmago
        as letras que compõem os meus versos.

Diferentemente de Blake, com o seu “O tigre” (um predador feroz e maligno), e de Borges, com o seu “O outro tigre” (um elo entre a realidade e a fantasia), Vieira de Melo imagina um felino não ameaçador (ainda que, paradoxalmente, selvagem), que vive dentro de um relógio e impele o sujeito poético a escrever. A comparação com o poema “O relógio”, de João Cabral, também é inevitável. Diz o poeta pernambucano: “Ao redor da vida do homem/ há certas caixas de vidro,/ dentro das quais, como em jaula,/ se ouve palpitar um bicho.// Se são jaulas não é certo;/ mais perto estão das gaiolas,/ ao menos pelo tamanho/ e quebradiço da forma.// (...) // Mas onde esteja: a gaiola/ será de pássaro ou pássara:/ (...) // e de pássaro cantor,/ não pássaro de plumagem:/ pois delas se emite um canto/ de uma tal continuidade// que continua cantando/ se deixa de ouvi-lo a gente:/ como a gente às vezes canta/ para sentir-se existente.// (...) / O que eles cantam, se pássaros,/ é diferente de todos:/ cantam numa linha baixa,/ com voz de pássaro rouco; // (...) // têm sempre o mesmo compasso/ horizontal e monótono,/ e nunca, em nenhum momento,/ variam de repertório (...) // Quando por algum motivo/ a roda de água se rompe,/ outra máquina se escuta:/ agora, de dentro do homem;// (...) // Então se sente que o som/ da máquina, ora interior,/ nada possui de passivo,/ de roda de água: é motor; // (...) // incapaz, agora, dentro,/ de ainda disfarçar que nasce/ daquela bomba motor/ (coração, noutra linguagem)” (Poesia completa, 2021, p. 333/334). Em Cabral, o “relógio” é uma metáfora do coração – que também pode ser entendido como a emoção, que precisa bater (“cantar”) sempre no mesmo ritmo, i.e., “monótono”, já que o autor de Uma faca só lâmina sempre defendeu a ideia de provocar no leitor uma “emoção contida”. Em José Inácio, contudo, o “relógio” pode ser entendido como o cérebro/coração do poeta, onde vive um “tigre” indomável – símbolo da poesia em estado bruto, aquela que, quando chega, emite um “rugido”, um chamamento para que o poeta entoe o seu canto (“as letras que compõem o meu verso”). Isso talvez explique a forte musicalidade da poesia de JIVM. Mas não apenas. Senão, vejamos. 

Arte:Ramiro Bernabó
"Em "Cartografia do medo", dividido em seis partes
ou cantos, há um curioso diálogo com a música
"Pequeno mapa do tempo" de Belchior"

Há profundas e remotas relações entre a poesia e a música. Na Grécia Antiga, cada arte possuía uma musa inspiradora, de um total de nove. Euterpe era a musa da poesia lírica e da música. Portanto, música e poesia eram duas faces de uma mesma moeda. E ambas também estavam diretamente relacionadas à dança. O elemento de ligação entre essas três artes era, evidentemente, o ritmo. Com o passar dos séculos, a poesia, a música e a dança tornaram-se autônomas, mas, ainda assim, interligadas. Para o poeta simbolista francês Paul Verlaine, a poesia era, “antes de qualquer coisa, música”. Essa parece ser a definição que mais se aproxima da obra poética de José Inácio: “antes de qualquer coisa, música”. Não por acaso, a poeta, ficcionista e musicista carioca Denise Emmer assina as orelhas de Garatujas selvagens. Nesse texto, ela sabiamente considera José Inácio Vieira de Melo autor de “rara poesia escrita, mas que pode ser cantada”. E complementa, afirmando que o poeta “tem o dom do cantador”. No mesmo sentido, no posfácio ao referido livro Sete, o escritor Ronaldo Correia de Brito saudou, na época, o “poeta aboiador e repentista”, que reverencia “alguns ídolos do cancioneiro nordestino” (p. 96). 

De fato, a música permeia fortemente as garatujas deste novo trabalho de José Inácio. Ao ponto de, em “Ars poetica”, o autor definir sua arte como uma mistura entre a sua vida, a melodia e a palavra: “Tudo vibra quando escrevo meus versos./ As minhas existências pulsam em cada poema./ Essa música que chega não sei de que paragens/ só busca encontrar as águas da linguagem” (p. 30). Linguagem e música. Eis o “Habitat” de JIVM: “A minha voz é o cântaro/ que enche as fronteiras/ e ecoa nos píncaros da lua.// (...) // Sou um estrangeiro sem bússola,/ mas a cada movimento que faço/ estou sempre a ampliar espaços.// Eu sou minha casa/ e tenho asas.” (p. 35). Poesia que soa, poesia que voa. Já “Primavera na caatinga” foi composto a partir da belíssima e conhecida canção “Primavera nos dentes” (composta por João Ricardo e João Apolinário), gravada pela banda Secos & Molhados em seu disco de estreia, em 1973. Diz um trecho da letra da canção: “Quem não vacila mesmo derrotado/ Quem já perdido nunca desespera/ E envolto em tempestade decepado/ Entre os dentes segura a primavera”. Quanto ao poema de Vieira de Melo: “Tudo ver e se erguer/ dentro de uma canção/ com cheiro de vida,/ alegria de pássaro/ que voa na caatinga.// (...) // Estou sempre lutando/ por sorrisos presentes/ que façam ecoar/ poesia entre os dentes.” (p. 37). Em outro texto poético da obra, intitulado “Cartografia do medo”, dividido em seis partes ou cantos, há um curioso diálogo com a música “Pequeno mapa do tempo”, de Belchior. Se na aludida canção o cantor e compositor cearense nos diz: “Eu tenho medo de abrir a porta/ Que dá pro sertão da minha solidão”, José Inácio, por sua vez, em nítida oposição aos versos que lhe serviram de epígrafe, inicia o seu poema afirmando: “Se eu for fazer um mapa do medo/ meu cavalo nunca mais vai sair do lugar./ Por isso vivo no desembesto.” (p. 57). Mais à frente, na nona parte do volume (“Autorretratos”), o título da canção “The Dark Side of the Moon”, composta e gravada pela banda britânica de rock Pink Floyd (também no ano de 1973, no disco homônimo), se transforma em “The red side of the JIVM” (p.132), um soneto trissilábico: 

        No retrato
        tudo pode,
        eu vermelho
        e o Pink Floyd.

        Me retrato 
        como gosto,
        camiseta
        do Pink Floyd.

        Vou voar,
        por aí,
        neste mote:

        Roger Waters,
        David Gilmour,
        o Pink Floyd.

Como se vê, José Inácio Vieira de Melo sempre confere um toque pessoal, um gosto de sertão, na maior parte das vezes, aos seus poemas e aos diálogos com os escritos e os artistas de sua preferência. 

Dialogar intertextualmente, por sinal, é uma das principais marcas da poética do autor em questão, desde os seus primeiros livros. Voltado, inicialmente, para as obras de outros poetas nordestinos, baianos ou não, como Jorge de Lima, Gerardo Mello Mourão, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo, Ruy Espinheira Filho, Francisco Carvalho, Myriam Fraga e Maria da Conceição Paranhos, rapidamente José Inácio foi ampliando o seu leque de referências – ainda que, desde o princípio, também haja se debruçado sobre a poesia de autores canônicos modernistas, a exemplo de Cecília Meireles, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes –, e estabelecendo pontes textuais/culturais com alguns poetas e escritores mais velhos e experientes do que ele, provenientes de outras regiões do país, v.g., Thiago de Mello, Carlos Nejar, Olga Savary, Astrid Cabral, Vicente Franz Cecim, Foed Castro Chamma, Marco Lucchesi e Marcus Vinicius Quiroga, além de outros mais próximos da sua geração, tais como Salgado Maranhão, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro e Kátia Borges, até, enfim, poder tornar-se, ele mesmo, uma referência para poetas mais jovens (em especial o poeta, professor e crítico carioca Igor Fagundes, que, em 2016, lançou o volume Poética na incorporação – Maria Bethânia e José Inácio Vieira de Melo na encruzilhada de Exu, resultado de sua tese de doutorado), a exemplo dos baianos antologiados por JIVM duas vezes, nos livros Concerto lírico a quinze vozes – Uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004) e Sangue novo – 21 poetas baianos do século XXI (2011). 

Arte:Ramiro Bernabó
"Em Garatujas selvagens, o diálogo intertextual se multiplica
e se diversifica, a começar pelas primorosas ilustrações das
capas e das aberturas de cada seção da obra, produzidas
pelo artista visual argentino-baiano Ramiro Bernabó"

Em Garatujas selvagens, esse tipo de diálogo intertextual se multiplica e se diversifica ainda mais, a começar pelas primorosas e marcantes ilustrações das capas e das aberturas de cada seção da obra, produzidas pelo artista visual argentino-baiano Ramiro Bernabó, filho do grande pintor Carybé, outro argentino que também escolheu a Bahia para viver, definitivamente, em 1950. 

Assim, podemos destacar, ao longo do volume, diversos poemas que buscam o diálogo com outras matrizes líricas, a exemplo da drummondiana, conforme o celebrado “Poema de sete faces” – cujos primeiros versos são: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” (Poesia completa, 2002, p. 5) –, o qual se torna objeto de uma original releitura, empreendida por Vieira de Melo, em “Rabisco rupestre” (p.22): 

        Quando nasci
        o roçado raiava.
        Dois riachos
        desenrolavam o azul.

        Ninava-me, na tarde,
        uma pungente toada
        acertando a cambraia
        do meu sono.

        O balanço da rede
        embalava o plano:

        no meio do sonho,
        na caverna da infância,
        uma forma primeva:

        o rabisco rupestre
        da poesia.

Diferentemente do poema de Drummond, o poema de José Inácio apresenta apenas uma face: a da descoberta da poesia pelo menino recém-nascido, que, em sonho, já rabiscava os seus primeiros versos. Nesse sentido, “Rabisco rupestre” remete, mais especificamente, a um outro poema drummondiano: “Infância”, em que o sujeito lírico diz: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada, cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé,/ comprida história que não acaba mais.” (p. 6). 

Se há laivos de um Manoel de Barros em versos como estes: “A solução para tantas palavras/ é apagar delas o sentido.// E partir da intacta inocência/ quando ainda tudo era nada” (“Solução”, p. 26), por falar em “nada”, “Nonada” ecoa Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, outro grande poeta de um outro sertão, ainda que assemelhado ao de Vieira de Melo: “No áspero do áspero,/ só garrancho e pedra/ e sol e sol e só.// (...) // Quanto mais nuvens,/ mais o abafo na alma.// E assim lajeado,/ de lado a lado,/ forrado e cercado/ de espinhos e esporas,// a gente ainda quer/ mais e mais viver.// Porque viver/ é assim, suado:/ o assado das horas derretendo gorduras;// e da gente sobrando/ somente nervuras.” (p. 50). Sertão (“abafo”) na alma, diz o verso inaciano. “O sertão é dentro da gente”, adverte Rosa. 

E os diálogos prosseguem, sucedendo-se e formando uma espécie de mosaico de vozes, filtradas pela voz preponderante (como não poderia deixar de ser) de José Inácio Vieira de Melo, como no caso do ótimo poema “Semeador”, que evoca Drummond (v. poema “José”), Jorge de Lima (v. terceira estrofe da parte “II”, do “Canto I – Fundação da ilha”, de Invenção de Orfeu), Joaquim Cardozo (v. “Visão do último trem subindo ao céu”), e se encerra à moda de JIVM: “E aí eu já arreei meu cavalo e já passei a perna,/e em meu peito já se instalou a maior alegria,/ pois por mais que haja dor e espinho,/ eu nasci para semear amor e poesia.” (p. 73). Na quinta seção de Garatujas..., “Retratos”, o processo de intertextualidade se intensifica. Mormente nessa parte, mas também no restante do livro, José Inácio expande o seu universo para as artes ibero-americanas, homenageando poetas, escritores e músicos, como Rómulo Bustos Aguirre, Humberto Ak’abal, Joaquín Rodrigo, Luís Serguilha e María Vázquez Valdez, incluindo vários brasileiros, a exemplo de Murilo Mendes, Graciliano Ramos, João Cabral (uma das obsessões inacianas), Carlos Pena Filho, José Alcides Pinto, Marcus Vinicius Quiroga, Helena Ortiz, Rubens Jardim, Carvalho Junior, Villa-Lobos, Raimundo Fagner, Elomar, Jorge Portugal, Chico César e Cátia de França, entre outros. Afinal, o autor faz questão de nos lembrar que seus poemas são escritos “com sangue latino” (“Leitura”, p. 28). 

"José Inácio Vieira de Melo é, acima de tudo,
um poeta lírico. É nessa toada que o artista
alagoano-baiano melhor se expressa."

Não obstante, José Inácio Vieira de Melo é, acima de tudo, um poeta lírico. É nessa toada que o artista alagoano-baiano melhor se expressa. Desse modo, a quarta seção da obra, “Rota infinita”, composta por apenas sete poemas, é um dos pontos altos do volume. Já a partir da feliz epígrafe de abertura da seção, retirada de um dos livros de Hilda Hilst (“Minha medida? Amor.”), o leitor se prepara para aquilo que o espera: um denso conjunto formado por sete peças de intensa carga lírica, presente em poemas como o que empresta seu título à quarta parte de Garatujas selvagens: “Minhas palavras estão sem sono/ e o silêncio grita teu nome, mar que admiro.// (...) // E todas as sensações vibram pela caatinga/ e sinto viagens que não se explicam./ O amor tem sempre rota infinita.” (p. 67). Aqui, o mar simboliza o amor. O velho mar/amor de dimensões infinitas, o mar/amor de Camões, Pessoa, Sophia, Jorge de Lima e Cecília. Mar/amor que “entra pelas minhas retinas/ e acende lâmpadas nas minhas células/ e meu animal interior orvalha poesia”, anuncia o eu lírico, que no texto seguinte se dirige ao ser amado em tom devocional: “Uma criancinha habita meu sentimento,/ meu amor, e voo sobre a montanha.// Sete anos de pastor eu te espero,/ sete vidas estelares eu te espero.// Se preciso for, à eternidade eu te espero” (“Uma criancinha habita meu sentimento”, p. 68), resume ele, para, em júbilo, se materializar, mais tarde, num ato amoroso sem quaisquer subterfúgios: “Uma festa de signos vestidos de maracás./ Uma indígena fronte em itálica sombra./ As macias ancas e o totêmico cacto.// (...) // Tuas formas se alinham e se bordam em meu corpo/ e se estende nos ares o gemido do deleite máximo,/ tua boca inaugura e expande um grito: Inácio!” (“Paisagem de êxtase”, p. 72). 

Contudo, “Rota infinita” não seria uma das melhores seções do volume, não fosse a presença de dois poemas libertários: “Amor luminoso” e “Viver é sempre um renascer”. No primeiro, esse sentimento é retratado pelo poeta como a pedra de toque da sua própria existência, aquilo que o faz mover-se continuamente, sem limites e em várias direções: “O amor quando chega a gente o segue/ e vai à Terra do Nunca/ e se for preciso outros mundos/ a gente concebe.// A gente consegue transmudar tormento em contentamento/ porque só sentindo o amor/ a gente entende que pode ser livre/ ao amor obedecendo.// (...) // Sou meu senhor e habito o imenso pasmo/ das mais altas eras dos delírios absurdos.// (...) // Sou pequeno,/ mas o amor me eleva aos Andes,/ onde sou condor e Castro Alves.// É sempre o amor que me faz abrir as asas.” (p. 70). Quanto ao segundo poema, trata-se de um soneto de métrica variável, dividido em três tercetos, um dístico e um terceto final que encerra esse belíssimo texto de ares whitmanianos, único na obra, o qual consagra o amor livre e total, sem preconceitos, e que, em razão de seus elevadíssimos méritos, nos leva a transcrevê-lo na íntegra, para que não se perca um átimo de tanta poesia: 

        É estranho como amamos estranhos.
        Suas palavras, seus corpos
        parecem anunciar o paraíso.

        Mas não é novidade que o estranho
        seja a instigante promessa do novo
        e renove o nosso corpo, a nossa idade.

        A adolescência renasce no rosto
        e sem o olhar desse estranho outro
        nada no mundo tem sentido.

        Sim, é uma grande ameaça,
        mas correr todos os riscos é a única graça.

        Tudo é tão intenso, tudo é tão imenso
        que todo descuido ou qualquer exagero
        é apenas tempero para o voo.
            ("Viver é sempre um renascer", p. 69). 

“Instantâneos”, sexta parte de Garatujas..., reúne uma série de haicais resultante de um notável tour de force empreendido por JIVM com o gênero nipônico. Inspirado num raro haicai de Cecília Meireles (“O vento voa/ a noite toda se atordoa,/ a folha cai”), extraído do “Epigrama nº 9” de Viagem (1939), José Inácio elabora 10 pares dessa forma poética, distribuídos por 10 páginas (sendo um par a cada página), em que um haicai dialoga com o seu par correspondente. A métrica é a clássica (5-7-5), estabelecida entre nós por Guilherme de Almeida. Exemplos: “o poeta é dentro./ um templo dentro do tempo./ o templo do tempo”, o qual dialoga com: “o tempo é lá fora./ e bem nos dentros, um templo,/ um poeta aflora” (p. 97); “raios de alegria/ transmitem luz às raízes./ bailam passarinhos”, ao passo que: “revoam os pássaros:/ canário azulão sanhaço,/ eu me chamo inácio” (p. 100); “vastidão e vento:/ um cacho de estrelas castas/ brilhando por dentro”. E o seu par correspondente: “estrelas e estrelas,/ infinda e vasta essa trilha./ comove-me vê-las” (p. 104). Bravo! 

Arte:Ramiro Bernabó
"José Inácio organizou as últimas quatro seções
de 
Garatujas selvagens espelhando-as entre si:
"Panorâmica das mães" espelha 
"Afresco para
Inácia", e "Autorretratos" espelha "A rota do ser""
 

Buscando, enfim, um tom mais pessoal, o autor organizou as últimas quatro seções do livro espelhando-as entre si: “Panorâmica das mães” espelha “Afresco para Inácia”, e “Autorretratos” espelha “A rota do ser”. Assim, num primeiro momento – a começar pela epígrafe retirada dos versos de Herberto Helder: “As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam” –, há uma homenagem às mães, em geral: “E as mães?/ Como dói vê-las velar o vão da tarde que some.// Pensam elas que os filhos as evitam./ (...) // As mães são as mais loucas coisas:/ criam os filhos, cercando-os.// As mães são açudes onde se afogam os filhos./ Aliás, os filhos sempre vão à guerra/ toda vez que se afastam delas.// (...) / A mãe perpassa o pensamento do filho/ e chora e ora para que nenhuma morte o siga./ E se ajoelha e chora e o acaricia:/ toda mãe é uma vaca valente a proteger sua cria.// A mãe é uma fera que mostra os dentes do amor,/ tentando espantar o inevitável voo do ovo que gerou.” (p. 111/112). Em seguida, Vieira de Melo homenageia sua própria mãe, Inácia Rodrigues de Santana, em celebração aos seus 70 anos recém-completados, nos quatro poemas que compõem um mural afetivo e afetuoso: “Passaram-se 70 anos, e Inácia continua viva e vivaz,/ continua a mais linda, cicatrizando e abrindo feridas.” (“Morta e viva”, p. 124). 

Por fim, “Autorretratos” e “A rota do ser” refletem algumas das múltiplas faces de José Inácio. Em poemas como “3x4”, “P&B”, “Retrato”, “Espelho”, “Eu e a brisa” e “O ignoto”, JIVM realiza, primeiramente, uma espécie de “balanço contábil” da sua trajetória existencial: “Em dez anos/ muito muda:/ perdi forças,/ ganhei rugas.// (...) // Em dez anos/ persisti,/ tracei planos,/ desisti.// (...) // Em dez anos,/ finalmente,/ entendi:/ nada entendo” (“Década”, p. 137), ele conclui, aliviado, para, posteriormente, já amadurecido, poder partir em busca de si mesmo: 

        Cavo a pedra
        em busca do rio.

        Não quero qualquer sangria,
        quero sentir nas veias
        líquidos rubis.

        Não quero açudes rasos,
        quero sentir a pureza
        dos minerais vasos.

        Cavo a pedra
        em busca de mim.
                (“Mineral”, p. 150). 

Ao final de seu longo percurso, o poeta se despede de seus leitores sabendo que, mais importante do que a meta a ser atingida, é o caminho a ser percorrido, ou seja, a própria caminhada em si. Só assim “a rota do ser” se completará, chegando a seu termo sem muitos transtornos: “Que a luz chegue em cada quarto,/ em cada recanto do teu ser.// Que tua vida seja grande./ E que na soma dos erros e acertos/ o sol continue a iluminar tua rota.// E quando chegar a hora de partir,/ parte. Mas parte contente,/ celebrando o mistério do porvir.” (“A rota do ser”, p. 155). Bem haja, poeta José Inácio Vieira de Melo. Bem haja.




Ricardo Vieira Lima é Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), crítico literário, jornalista, poeta e editor-assistente da revista  Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea (UFRJ). Seu livro Aríete - poemas escolhidos (Circuito, 2021) ganhou os prêmios Ivan Junqueira, da Academia Carioca de Letras, e Jorge Fernandes, da União Brasileira de Escritores - Seção Rio de Janeiro. 



Artigo publicado originalmente na revista Légua & meia - Revista de Literatura e Diversidade Cultural, Ano 20, n° 14, v. 1 - 2022, uma publicação da UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana. Link da edição completa: http://periodicos.uefs.br/index.php/leguaEmeia/issue/view/267 

sexta-feira, 3 de junho de 2022

ENTREVISTA | JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO: UM POETA QUE BUSCA AS ORIGENS NAS LONJURAS

Fotos: Ricardo Prado
Garatujas Selvagens: os rabiscos primordiais de José Inácio Vieira de Melo

José Inácio Vieira de Melo lançou, recentemente, Garatujas Selvagens, seu novo livro de poemas, publicado pela Arribaçã Editora, casa editorial paraibana. Saudado pelas escritoras Ana Miranda e Denise Emmer e pela poeta mexicana María Vázquez Valdez, nos textos da contracapa, orelha e posfácio, JIVM ergue seu monumento poético com a seiva telúrica, que lhe é peculiar, mas só que agora irrigado pelo sangue latino. Garatujas Selvagens é uma galeria que tem como ponto inicial os “Rabiscos rupestres”, estendendo-se pelas “Lonjuras” e pela “Cartografia do medo”. Faz também uma “Panorâmica das mães” até desembocar nos “Autorretratos” e na “Rota do ser”. Imagético e musical, cheio de “Retratos”, “Afrescos” e de “Instantâneos” seu novo poemário tem mesmo “Rota infinita”. Nesta conversa boa, ele nos fala da origem de sua poesia, da presença da musicalidade neste novo trabalho, do medo e da coragem, da sua busca e do poder curativo e redentor da poesia. Vamos percorrer os caminhos do poeta. 

Sandra Santos – Tua poesia tem o aroma das algarobeiras e o encantamento do aboio. Onde aprendeste o canto primeiro? Quais foram teus mestres? Quem te acompanha nas leituras ao pé do fogo e vela teu sono na mesinha de cabeceira? 

José Inácio Vieira de Melo – Até os 14 anos fui criado no campo e em cidades do interior das Alagoas, o que considero um grande privilégio. Entre os 14 e os 19, vivi em Maceió, onde estão as praias mais bonitas do Brasil. Aos 20 anos, fui morar na caatinga baiana, entre o Vale do Jiquiriçá e a Chapada Diamantina. Nesses lugares do Brasil profundo, as algarobeiras são uma presença constante. Elas fazem parte do cenário da minha poética, porque estão bem enraizadas no meu imaginário. E toda minha vida, até os dias de hoje, sempre estive em contato com os vaqueiros, cantando e ouvindo toadas, tangendo gado e aboiando com esses guerreiros encourados. Mas o canto primeiro foi lá nas Alagoas, na fazenda Boa Sorte, na Ribeira do Traipu. Os meus mestres foram os vaqueiros do meu convívio, que tinham um grande zelo por mim. Desde meu avô Moisés, passando por Pedro Vaqueiro, Sérvulo Duarte e Linduarte, até chegar à figura emblemática de Damião Alagoano, mas isso já foi a partir de 1988, aqui na Bahia. Sinto sempre que uma legião de vaqueiros me acompanha, abrindo caminhos e me protegendo. Digo isso no poema Pedra Só, um canto épico, que é o núcleo do livro homônimo, publicado em 2012. Porém esse canto primeiro está entrelaçado aos primeiros cantos oferecidos pelas leituras iniciais e fundamentais para o desenvolvimento da minha escritura, que são a Bíblia, a poesia de Castro Alves e de Patativa do Assaré, o livro Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa e a trilogia Os Peãs de Gerardo Mello Mourão, as obras de Hermann Hesse, Gabriel García Márquez e João Cabral de Melo Neto. E, um pouquinho mais adiante, a poesia de Herberto Helder e de Jorge de Lima. Atualmente tenho lido pouco ao pé da fogueira. Mas faço sempre dois momentos de leituras, bem distintos. A leitura silenciosa e solitária, quase sempre deitado em uma rede ou sentado diante de uma mesa, na minha singela biblioteca (um quarto repleto de livros). O outro momento é o da leitura compartilhada, sempre em voz alta. Meus companheiros mais frequentes são meus filhos, Moisés e Gabriel, e minha mulher, Linda Soglia. Cada um com um exemplar da obra da vez em mãos, seja o livro físico, seja o e-book, nos kindles da vida. No meu caso, é obrigatório o uso do livro convencional como suporte. Durmo pouco e o meu sono é um mistério velado pela leveza. 

Ana Luiza – Seu livro Entre a Estrada e a Estrela, publicado em 2017, é formado por dois poemas longos. Já em seu mais recente lançamento, Garatujas Selvagens, de 2021, encontramos uma estrutura em dez partes, com poemas que em sua maioria não passam de uma página e que chegam a uma forma ainda mais concisa na seção intitulada "Instantâneos". Claro que se pode supor que os poemas simplesmente ‘escolhem’ consolidar-se assim ou assado, mas lhe faço a seguinte pergunta: em sua opinião, a que mais se pode atribuir uma organização tão diversa da anterior? 

JIVM – De fato, o Garatujas Selvagens apresenta uma organização bem distinta dos meus dois livros anteriores, tanto do Entre a estrada e a estrela (2017) quanto do Sete (2015), que são livros que têm um tom épico e uma espinha dorsal bem definida, conduzindo todos os poemas. O que acontece é que, além de ter demorado mais tempo do que o habitual para publicar o Garatujas Selvagens, vários poemas, que havia feito no período em que publiquei os dois livros anteriores, ficaram de fora deles porque não se encaixavam naquelas propostas. Esses poemas foram guardados e depois foram se aproximando tematicamente de outros que eu ia escrevendo e, de imediato, publicava nas redes sociais. De repente eu já tinha um amontoado de poemas, dividido em pequenos grupos, pequenas seções. Alguns amigos falavam da necessidade de reunir esses poemas em um livro, sobretudo o poeta Salgado Maranhão, que afirmava que meu público estava precisando de um livro assim, com poemas mais soltos. Então, fui reunindo os poemas, comecei a observá-los mais, dividi-los em grupos bem definidos, até chegar a uma estrutura que me deixou muito animado. Aí foi que comecei a pensar em um artista para fazer capa e ilustrações internas. Depois que escolhi o Ramiro Bernabó, muita coisa mudou no livro: poemas foram excluídos, outros modificados e outros foram criados. Como pode ver, dialogo bem com as ilustrações, que, para mim, não são meros ornamentos plásticos, mas poemas visuais que devem se comunicar com os versos do livro. Finalmente, o livro chegou a uma conformação estética, seja no que se refere ao suporte ou aos poemas em si. Os caminhos trilhados foram, em boa parte, intuitivos, mas com o sentimento antenado, na busca de uma seara estética na qual fosse possível vislumbrar o desconhecido. Por isso, o que marca o Garatujas Selvagens é a busca, como bem resume o poema “Procura”, que está presente na seção “Lonjuras”: “No claro ou no escuro/ procuro porque procuro/ sempre novos rumos.// Sem pensar futuros/ procuro porque me curo/ ao ultrapassar muros.” Como pode perceber, a atribuição para a mudança é a própria necessidade de mudança. É procurar nas lonjuras. 

JIVM: Não faço distinção entre poesia e vida,
porque sem poesia minha vida não teria nenhum sentido
.

Sony Ferseck – Seu Garatujas Selvagens, nas dez seções que o compõem, faz um percurso que sai da pedra (“Rabiscos rupestres”), ganha “Lonjuras” até chegar na “Rota do Ser”, que permite, inclusive, que vejamos as fotografias feitas durante o trajeto. Uma verdadeira trilha poética. Duas dessas paradas, dessas seções, são dedicadas às mães, inclusive a sua, Dona Inácia. A mãe é mesmo poesia e vice-versa? 

 JIVM – A Mãe é o Uni-verso e é o Meta-verso. A mãe é a nossa casa – resguarda nossa inocência enquanto crescem nossas asas. A Mãe é a Divindade. Por outro lado, a Mãe é filha, é cria e é também fundida em estreitezas disfarçadas de glórias. A partir das limitações que sofrem muitas mulheres, muitas mães, suas crias podem ser vítimas de fúrias, de ódios, de traumas – e aí a Poesia Universal da Divindade Mãe pode se transformar numa energia obscura. Mas ainda assim, a Mãe é o templo aconchegante da existência. Nas duas seções que você destaca, “Panorâmica das mães” e “Afresco para Inácia”, dentre outros vislumbres, estão incutidas tanto a dimensão metafísica da Mãe, como geradora do Universo e/ou de Universos, assim como a dimensão social da pessoa que também foi gerada no ventre de uma outra pessoa, dentro de uma estrutura que minimiza seus potenciais. E para disfarçar o reducionismo e a sobrecarga, atribui-lhe um dom divino, uma missão sagrada. Os poemas das duas seções expressam e extravasam as dores físicas e as mutilações espirituais. Em “Afresco para Inácia”, na qualidade de filho assustado e diferente dos outros, busquei compreender o que se passou com a filha que foi minha mãe. Na verdade, o que busquei foi a redenção pessoal. E consegui. Para mim, a poesia tem também uma dimensão de cura, a poesia é o “Unguento”: “Muitas vezes abre feridas,/ mas é só para extirpar/ de vez o veneno”. 

Marta Eugênia de Oliveira – Em seus poemas, a luz dada sobre a caatinga, as algarobeiras, os galopes, as pedras, oferece ao leitor uma experiência de plurissignificados, polifonia e metafísica. A presença do canto muitas vezes assume um lugar de coragem, valentia perante o escuro que é o porvir. Em Garatujas Selvagens o medo é considerado na parte intitulada de "Cartografia do Medo". Sua relação com o medo sofreu alterações de outras obras até aqui? 

JIVM – O medo tem uma importância imensa na minha poesia, que é o mesmo que dizer na minha vida, porque é o medo que desperta a coragem. Não faço distinção entre poesia e vida, porque sem poesia minha vida não teria nenhum sentido. E sei mesmo que tudo não tem sentido, mas através da arte consigo atribuir os mais diversificados sentidos a minha passagem existencial. O medo me acompanha desde a aurora da minha vida, desde quando me entendo por gente, ou antes mesmo dessa compreensão. Ao invés de me paralisar, o medo me impulsiona para o desconhecido. De peito aberto, corpo e alma só arrepios, sigo em frente, com os olhos esbugalhados, soltando aboios para a imensidão, em busca do novo, em busca do inusitado verso que as estradas que invento, com meus passos errantes, possam me oferecer. O medo é um grande e precioso companheiro, pois me deixa bem acordado, sempre perplexo, sempre arrepiado, em estado de delírio, com muita febre. Sim, Marta, com o passar do tempo, a minha relação com o medo foi e vai se alterando, assim como as garatujas que vou fazendo, porque estou sempre me modificando. É aquela história lá do nosso roqueiro mor Raul Seixas, de preferir ser uma “Metamorfose ambulante”. Sim, o medo é a corneta que mantém sempre alerta a coragem. 

José Inácio Vieira de Melo: O caráter transgressor e a
força revolucionária da poesia espantam muito as pessoas

Sandra Santos – Como poeta e ativista cultural, tens tido papel fundamental na construção do cenário poético brasileiro. Muitos poetas foram publicados por antologias ou revistas literárias por ti organizadas. Nomes de sul a norte do país foram divulgados e apresentados ao público em eventos literários sob tua curadoria. Dono dessa experiência e conhecimento da poesia desses tantos brasis, te pergunto: nestes tempos de redes sociais, eventos virtuais e meta-verso... A poesia está mais viva do que antes? 

JIVM – Da maneira como concebo a poesia, meu impulso é dizer que a poesia é a própria vida, ou mesmo que é a poesia que confere existência às coisas. A poesia está em tudo, inclusive no nada. A dimensão virtual da poesia sempre existiu, o que ocorre é que somente agora é que passamos a observá-la por essa esfera, daí a impressão de novidade. Por outro lado, apesar de todas as possibilidades que fomos desenvolvendo a partir dos avanços tecnológicos, como suportes e plataformas, para exibirmos e disponibilizarmos nossa diversidade poética e artística, a poesia continua sendo para poucos. Está posta para todos, mas poucos são os que se banham nas suas águas. O caráter transgressor e a força revolucionária da poesia espantam muito as pessoas, que de tão perdidas, tão preocupadas com o conforto material para o futuro, esquecem que estão de passagem e não vivem o que cada uma tem de fato, que é o momento presente, tão carregado de poesia, chegando por todos os lados e por todos os sentidos. Quanto ao cenário poético brasileiro, nunca vi tanta gente publicando, formando tantos grupos, turmas, guetos. Na maioria, os próprios integrantes lendo uns aos outros. Mas, ainda assim, é um momento muito bom. Novas e assustadoras poéticas aparecendo, questionando convicções e propondo rupturas. Como não sei ficar quieto, vivo a promover recitais e pelejas, a provocar discussões e encontros, tentando sempre levar a palavra poética para adiante, desejando mesmo que ela chegue ao sentimento de cada pessoa. 

Sony Ferseck – Creio que em "Rabiscos rupestres", você consegue tirar a poesia da pedra, sem permanecer nela. Da pedra você vai à música, tanto que chega a poetizar "Os livros cantam o caminho de casa". Que referências musicais Garatujas Selvagens canta no caminho desta sua morada poética? 

JIVM – A pedra emana música. Quando batemos na pedra ela nos responde com som, e se batemos compassado, o som será ritmado e aí o voo é certo. Lembremos a poeta Cecília Meireles: “Tem sangue eterno a asa ritmada”. E se batermos pedra na pedra, além de som teremos fogo, surgindo novas dimensões: som e luz, “Rabiscos rupestres”, livros inaugurais cantando o caminho de casa. Este poemário, Garatujas Selvagens, está repleto de musicalidade. Não sei nem se dou conta de lembrar toda música que nele há, por ser tanta. Porque há a música das palavras de uma plêiade de poetas, assim como há a música instrumental de inúmeros compositores, assim como as vozes de outros tantos cantores. Mas bem na superfície, nos lajedos da Pedra Só que sou, são nítidos as presenças de Amelinha, Belchior, Ednardo e Fagner, esse Pessoal do Ceará que tanto marcou a minha juventude e que me acompanha até hoje com tanto vigor. Estão comigo, a rapaziada do Clube de Esquina, com Milton Nascimento ofertando a voz da Divindade para todos nós. Da Paraíba vem o Chico César, a Cátia de França, a Elba e o Zé Ramalho. De Pernambuco, vem o Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Dominguinhos. É bem presente a força do rock inglês do Pink Floyd e do Led Zeppelin, assim como da poesia do Bob Dylan e Leonard Cohen. Estão presentes Villa-Lobos, Luiz Gonzaga e Elomar, o “Sangue Latino” de Ney Matogrosso, Secos & Molhados, Paco de Lucía e Joaquín Rodrigo. Do país das Alagoas, o Djavan, o Carlos Moura, Jacinto Silva e Nelson da Rabeca. Beethoven, sempre. O “Vento Nordeste” de Terezinha de Jesus. Os bárbaros baianos Gil, Gal, Bethânia e Caetano. Os bruxos Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos. Todos esses cantares ecoam em cada verso das minhas Garatujas Selvagens. E mais, vários poemas ganham melodia logo depois que são feitos. Abro a boca para lê-los e já sai uma melodia que toma conta do texto. Há também alguns poemas que já foram musicados por compositores desses Brasis, parceiros meus que tanta alegria me proporcionam ao musicarem meus versos, antes mesmo do livro ser publicado, como aconteceu com os poemas “Nonada”, que virou uma linda canção no violão e na voz do meu amigo paraense Enrico Di Miceli; “A vida é sonho”, maravilhosamente musicado por Petrucio Baêtto, meu conterrâneo, lá das Alagoas; e “Década”, que ganhou uma sofisticada roupagem musical do meu malungo amapaense Paulo Bastos. Outros poemas já estão na mira de alguns parceiros. Outro dia, Thiago Amud, genial cantor e compositor carioca, mandou um ‘zap’ pedindo que separasse o poema “Caboclo de lança” para ele, assim como o Marcel Torres, cantor e compositor baiano, de Feira de Santana, mandou uma melodia bonita, um ijexá, para os dois haicais espelhados que iniciam a seção “Instantâneos”. Aproveito para dizer que me sinto privilegiado ao ouvir alguns poemas meus interpretados, em forma de canções, por Ana Luiza, Carla Visi e Patricia Bastos, musas e divas da Música e Poesia do Brasil. Como pode ver, a música se apossa dos versos que faço. Na verdade, sinto que minha poesia transborda musicalidade. 

JIVM: já estou começando a botar o pé na estrada,
novamente, levando minhas 
garatujas selvagens aos
quatro ventos, espalhando a poesia por todos recantos. 

Marta Eugênia de Oliveira – Na segunda parte do livro – “Lonjuras” – a distância é companheira bem de perto, entre o invisível e o ancestral. Sente-se os encalços do caminho de volta, invocado em alguns poemas, pelas “Trilhas” apresentadas e pelo “Suco” que alimenta a esperança, “porque mesmo voltando,/ sem onde nem quando,/ se continua seguindo”. A amplitude dessa busca está aliada à dimensão inefável da linguagem poética? Por isso Garatujas Selvagens

JIVM – Gosto quando uma pergunta dá nó no pensamento, porque já vem carregada de poesia. Esse enunciado leva a gente pra um monte de lugar. Sou um peregrino da linguagem, as palavras desfilam nos meus sonhos, formando tapetes de versos, os mais diversos, os mais esquisitos. As “Lonjuras” são o que busco alcançar. Então, quando vislumbro a distância, lá bem longe, onde a vista se perde, onde o pensamento não alcança – sigo resoluto até lá. Mas ao chegar lá, no que era longe, tudo se torna perto. O que me move mesmo é a vontade do encontro, mas que seja – tudo o que está por vir – um renovar de sensações, de alegrias, de olho brilhando ao se concretizar o abraço, o encontro. É, sim, a dimensão inefável da linguagem poética, mas pode ser também a presença que realiza, de fato, o momento. Pode ser, como quer Wittgenstein, a linguagem inaugurando o ser. Garatujas Selvagens por isso, porque o rabisco primordial é o que há de mais simples, é o que há de mais natural e de mais espontâneo. 

Ana Luiza – Quando me deparo com a sua obra, vejo que ela sobrevoa e mergulha nos muitos mistérios e espantos da vida, do cosmo, da mulher, da sua própria biografia, que sua força poética tange, como gado, para mais adiante, para o que ainda não se desenhou. Na sua figura vejo ao mesmo tempo o aboiador e o aedo, o apaixonado pelos livros e pelas pessoas, o sertanejo e o jornalista, o artesão sensível em busca do risco e do traço, o menino estupefato diante do porvir e o homem maduro que tem o tempo bufando diante de si. Um poeta, mais que tudo, antenado com o movimento do mundo desde o seu mundo, que ele amplifica ao promover todos os encontros possíveis entre todas essas partes. Minha pergunta é: o que mais se pode esperar de José Inácio Vieira de Melo? 

JIVM – O que você apresentou na sua generosa descrição, Ana Luiza, diz muito do meu movimento. Perpassado que sou por todas essas características enunciadas, estou bem marcado pela figura do poeta andarilho, do produtor cultural, por conta da minha prontidão em realizar as coisas mais aparentemente ‘sem futuro’, porque fadadas a “desmanchar no ar”. Mas que sempre acabam acontecendo e deixando um rastro de beleza na imensidão, na memória, no sentimento. Essa pandemia, que abalou a humanidade e que ainda está tendo desdobramentos, trouxe também muitas reflexões e intensificou a busca de várias formas de se aproximar do outro, que não são aquelas que mais ansiamos e queremos – os encontros presenciais –, mas as que são cabíveis: as conversas virtuais. Estou, sim, a me movimentar, só que muito mais através das redes sociais, porque ainda há muitas restrições de deslocamento e, sobretudo, de aglomeração. Na medida do possível, já estou começando a botar o pé na estrada, novamente, levando minhas garatujas selvagens aos quatro ventos, espalhando a poesia por todos recantos. Há muito o que se semear por aí. 


ANA LUIZA é cantora, poeta e compositora. É nascida em Santos e radicada em São Paulo. Em 2020 a editora Laranja Original publica seu primeiro livro,
Rubra, com o qual participou de festivais internacionais de poesia. Sua trajetória musical de mais de trinta anos a serviço da canção contempla uma variada discografia, parcerias com diversos artistas e turnês pelo Brasil e Exterior. 



MARTA EUGÊNIA DE OLIVEIRA, baiana radicada nas Alagoas, é poeta e professora. Graduada em Letras e Especialista em Linguística. Curadora da Fliara – Feira Literária de Arapiraca-AL, lugar onde mora e atua na Secretaria de Cultura do município. Autora do livro de poemas
Quanto Tanto (Multifoco, 2014). Um novo livro está a caminho: E o risco das floriculturas nas datas capitais, a ser publicado ainda este ano pela editora Trajes Lunares. 

SANDRA SANTOS, gaúcha nascida em São Luiz Gonzaga. Vive em Porto Alegre, onde é coordenadora e curadora do Castelinho do Alto da Bronze Espaço Cultural. Escreve contos, crônicas e poesia. Seus versos já foram traduzidos e publicados em diversos países como Romênia, Itália, Chile, Argentina. Seu último livro Flor de Udumbara (Hanan Harawi, 2016) foi publicado no Peru em língua originária quechua, além de português e espanhol. 

SONY FERSECK (na poesia) e WEI PAASI (em Makuxi Maimu). Pertence ao povo Macuxi, do estado de Roraima. É poeta, escritora, palestrante, pesquisadora. Publicou os livros
Pouco verbo (Máfia do Verso, 2013), Movejo (Wei Editora, 2020) e Weiyamî: mulheres que fazem sol (Wei Editora, 2022). Cofundadora, junto com Devair Fiorotti (1971 - 2020), da primeira editora independente de Roraima, Wei Editora.


Entrevista publicada originalmente na revista Correio das Artes, em João Pessoa-PB, na edição de maio de 2022.