Por Ricardo Vieira Lima
Capa: Ramiro Bernabó
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"Garatujas selvagens, nono livro de poemas de José Inácio Vieira de Melo, alça seu autor ao seleto grupo dos maiores poetas brasileiros contemporâneos" |
Garatujas selvagens (Arribaçã Editora, 2021), nono livro de poemas de José Inácio Vieira de Melo, é o cume máximo, a síntese extraordinária de uma obra que, ao longo de mais de 20 anos, se impôs aos leitores de poesia, em razão de suas qualidades intrínsecas, as quais, sobretudo a partir deste novo volume de versos, alçam seu autor ao seleto grupo dos maiores poetas brasileiros contemporâneos.
Que não haja dúvidas: estamos diante de um poeta telúrico, sim; atávico, sim; visionário, sim; e de inconfundível voz própria. Pois, como bem diz a romancista Ana Miranda na contracapa do livro, José Inácio “cria a sua própria cartilha, em busca da fonte secreta”. Sabemos, no entanto, que, para se chegar a uma “fonte secreta”, i.e., não visível a olho nu e não disponível facilmente, é necessário percorrer, por vezes, um longo caminho. Nesse sentido, Vieira de Melo é um poeta andarilho, conforme ele mesmo admite no poema de linhagem concretista “Trilhas” (p. 48), em que as palavras se movimentam, como se estivessem prestes a dançar:
somente
perdido
nos caminhos
o andarilho
está
em casa
Aliás, na obra anterior a Garatujas..., Entre a estrada e a estrela (2017), JIVM já abria o volume dizendo: “O mundo foi feito pra gente andar” (p. 17).
Com efeito, a poesia viageira de José Inácio Vieira de Melo está sempre em movimento, à cata de novidades. Dividido em não menos do que 10 partes ou seções, Garatujas selvagens personifica exemplarmente essa poética:
No claro ou no escuro
procuro porque procuro
sempre novos rumos.
Sem pensar futuros
procuro porque me curo
ao ultrapassar muros.
("Procura", p. 45).
O poema, composto por dois tercetos, com métricas que se alternam entre a redondilha menor e a maior, possui um ritmo intensamente musical e sonoro. Essa busca, esse desejo de movimento em direção à “cura” (“fonte secreta”?), prossegue em outro texto (todo ele escrito em redondilha maior) da segunda seção do livro – na qual há o predomínio da metalinguagem, assim como na primeira parte da obra –, intitulado “A procura” (p. 49): “O que procuro nem sei./ É meu olhar que se atira/ para mais alto que em cima,/ onde talvez nunca irei.// Está tudo tão disperso,/ mas em meio a tanto não/ às vezes encontro um pão/ bem recheado de versos”. Fome e poesia. Ou fome de poesia? Sede, talvez. Que o digam os últimos versos de “A procura”: “Ainda sinto muita sede,/ por isso que estou no fronte/ e ao atravessar a ponte/ acharei a fonte secreta:// (...) e em meu mundo tudo muda:/ mente em movimento eterno.” (p. 49). Metapoesia em movimento, sempre em busca da “fonte secreta” (quiçá a “cura” de todos os males do corpo e do espírito), em José Inácio a palavra poética é, pois, deslocamento, andança:
Cada palavra tem sua via.
É tudo imprevisto a cada linha.
Mesmo o dito e feito,
quando ajuntado em palavras,
pode aparecer de um outro jeito.
E quanto mais emaranhado o caminho,
o viajor das palavras mais se aprofunda:
quer desenhar as formas ignaras
e sentir o incenso do imenso obscuro.
A palavra é o de repente,
é o desprevenido instante,
e tudo se alinha no seu rompante.
(“Via das palavras”, p. 24).
Nesse admirável poema, o eu lírico afirma que cada palavra possui a sua trajetória, plena de múltiplas significâncias, repentinas e irrepetíveis. E que o poeta em profundidade é um “viajor das palavras”, um peregrino das letras, aquele que melhor andará e cantará, quanto mais for “emaranhado o caminho”.
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"José Inácio, "o último cavaleiro andante", cria sua própria cosmogonia naturacentrista, em versos aliterantes e ontológicos." |
A exemplo de Dom Quixote de La Mancha, personagem imortal de Cervantes, José Inácio pode ser definido, ainda, como “o último cavaleiro andante”, embora não de “triste figura”. Muito ao contrário: quem conhece pessoalmente o poeta alagoano-baiano sabe que, com certa frequência, ele se apresenta com um chapéu de vaqueiro, recitando seus versos de cor, de modo vigoroso, diante de plateias hipnotizadas pela força de suas palavras e de seu carisma. No final do livro de poemas Sete (2015), por exemplo, há uma foto do autor, de chapéu de couro, cavalgando, aparentemente, no sertão. Em Garatujas..., o galope se transmuda em poesia: “Cavalgo versos ao meio-dia/ e o Sol se espelha no meu chapéu.// (...) A vertigem se abre ao galope./ Levanta eras, a poeira dos cascos./ Cosmos cavalgam comigo.” (“Galope solar”, p. 46). Desse modo, JIVM cria a sua própria cosmogonia naturacentrista, em versos aliterantes e ontológicos.
Antológicos, também, como no caso do poema metalinguístico homônimo do volume. Como se sabe, os animais – dos reais aos mitológicos – desde sempre foram retratados pelos prosadores e poetas. Para ficar apenas com estes últimos, há toda uma tradição universal que inclui, v.g., a rã e a cotovia de Matsuo Bashô, o corvo de Poe, o albatroz de Baudelaire, o cisne de Yeats, a pantera de Rilke ou os gatos de T. S. Eliot. Enfim, são numerosos os exemplos. Em língua portuguesa, podemos citar, na poesia lusitana, o “monstrengo” de Camões retomado por Pessoa, ou os gatos de Eugênio de Andrade e Adília Lopes. Na poesia brasileira, há vacas e bois em sonetos de Jorge de Lima e Vinicius de Moraes; o elefante de Drummond, retomado posteriormente por Chico Alvim, além da série de “poemas da cabra”, de João Cabral de Melo Neto. Mas a incidência maior está mesmo no grupo dos felinos, sobretudo o gato – com seu ar enigmático, sua domesticidade e sua inquestionável fidelidade –, que já inspirou, dentre outros, poemas de Vinicius de Moraes (novamente ele, desta vez em A arca de Noé), Ferreira Gullar, Ivan Junqueira, Ana Cristina Cesar e Nelson Ascher. Não podemos nos esquecer, todavia, das figuras do “rei leão” (mais uma vez Vinicius e sua arca) e da “suave pantera”, de Marly de Oliveira.
Pois bem: ciente desse paideuma animalesco, José Inácio Vieira de Melo compôs o poema “Garatujas selvagens” (p. 23), decerto a partir da figura do tigre de Blake e de Borges, porém inserido no relógio cabralino:
Há um tigre dentro do relógio,
correndo por entre os sonhos
e atravessando a savana do tempo.
Quando vem à tona seu rugido
e suas garras arranham as pedras do deserto,
ficam insculpidas no meu âmago
as letras que compõem os meus versos.
Diferentemente de Blake, com o seu “O tigre” (um predador feroz e maligno), e de Borges, com o seu “O outro tigre” (um elo entre a realidade e a fantasia), Vieira de Melo imagina um felino não ameaçador (ainda que, paradoxalmente, selvagem), que vive dentro de um relógio e impele o sujeito poético a escrever. A comparação com o poema “O relógio”, de João Cabral, também é inevitável. Diz o poeta pernambucano: “Ao redor da vida do homem/ há certas caixas de vidro,/ dentro das quais, como em jaula,/ se ouve palpitar um bicho.// Se são jaulas não é certo;/ mais perto estão das gaiolas,/ ao menos pelo tamanho/ e quebradiço da forma.// (...) // Mas onde esteja: a gaiola/ será de pássaro ou pássara:/ (...) // e de pássaro cantor,/ não pássaro de plumagem:/ pois delas se emite um canto/ de uma tal continuidade// que continua cantando/ se deixa de ouvi-lo a gente:/ como a gente às vezes canta/ para sentir-se existente.// (...) / O que eles cantam, se pássaros,/ é diferente de todos:/ cantam numa linha baixa,/ com voz de pássaro rouco; // (...) // têm sempre o mesmo compasso/ horizontal e monótono,/ e nunca, em nenhum momento,/ variam de repertório (...) // Quando por algum motivo/ a roda de água se rompe,/ outra máquina se escuta:/ agora, de dentro do homem;// (...) // Então se sente que o som/ da máquina, ora interior,/ nada possui de passivo,/ de roda de água: é motor; // (...) // incapaz, agora, dentro,/ de ainda disfarçar que nasce/ daquela bomba motor/ (coração, noutra linguagem)” (Poesia completa, 2021, p. 333/334). Em Cabral, o “relógio” é uma metáfora do coração – que também pode ser entendido como a emoção, que precisa bater (“cantar”) sempre no mesmo ritmo, i.e., “monótono”, já que o autor de Uma faca só lâmina sempre defendeu a ideia de provocar no leitor uma “emoção contida”. Em José Inácio, contudo, o “relógio” pode ser entendido como o cérebro/coração do poeta, onde vive um “tigre” indomável – símbolo da poesia em estado bruto, aquela que, quando chega, emite um “rugido”, um chamamento para que o poeta entoe o seu canto (“as letras que compõem o meu verso”). Isso talvez explique a forte musicalidade da poesia de JIVM. Mas não apenas. Senão, vejamos.
Arte:Ramiro Bernabó
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"Em "Cartografia do medo", dividido em seis partes ou cantos, há um curioso diálogo com a música "Pequeno mapa do tempo" de Belchior" |
Há profundas e remotas relações entre a poesia e a música. Na Grécia Antiga, cada arte possuía uma musa inspiradora, de um total de nove. Euterpe era a musa da poesia lírica e da música. Portanto, música e poesia eram duas faces de uma mesma moeda. E ambas também estavam diretamente relacionadas à dança. O elemento de ligação entre essas três artes era, evidentemente, o ritmo. Com o passar dos séculos, a poesia, a música e a dança tornaram-se autônomas, mas, ainda assim, interligadas. Para o poeta simbolista francês Paul Verlaine, a poesia era, “antes de qualquer coisa, música”. Essa parece ser a definição que mais se aproxima da obra poética de José Inácio: “antes de qualquer coisa, música”. Não por acaso, a poeta, ficcionista e musicista carioca Denise Emmer assina as orelhas de Garatujas selvagens. Nesse texto, ela sabiamente considera José Inácio Vieira de Melo autor de “rara poesia escrita, mas que pode ser cantada”. E complementa, afirmando que o poeta “tem o dom do cantador”. No mesmo sentido, no posfácio ao referido livro Sete, o escritor Ronaldo Correia de Brito saudou, na época, o “poeta aboiador e repentista”, que reverencia “alguns ídolos do cancioneiro nordestino” (p. 96).
De fato, a música permeia fortemente as garatujas deste novo trabalho de José Inácio. Ao ponto de, em “Ars poetica”, o autor definir sua arte como uma mistura entre a sua vida, a melodia e a palavra: “Tudo vibra quando escrevo meus versos./ As minhas existências pulsam em cada poema./ Essa música que chega não sei de que paragens/ só busca encontrar as águas da linguagem” (p. 30). Linguagem e música. Eis o “Habitat” de JIVM: “A minha voz é o cântaro/ que enche as fronteiras/ e ecoa nos píncaros da lua.// (...) // Sou um estrangeiro sem bússola,/ mas a cada movimento que faço/ estou sempre a ampliar espaços.// Eu sou minha casa/ e tenho asas.” (p. 35). Poesia que soa, poesia que voa. Já “Primavera na caatinga” foi composto a partir da belíssima e conhecida canção “Primavera nos dentes” (composta por João Ricardo e João Apolinário), gravada pela banda Secos & Molhados em seu disco de estreia, em 1973. Diz um trecho da letra da canção: “Quem não vacila mesmo derrotado/ Quem já perdido nunca desespera/ E envolto em tempestade decepado/ Entre os dentes segura a primavera”. Quanto ao poema de Vieira de Melo: “Tudo ver e se erguer/ dentro de uma canção/ com cheiro de vida,/ alegria de pássaro/ que voa na caatinga.// (...) // Estou sempre lutando/ por sorrisos presentes/ que façam ecoar/ poesia entre os dentes.” (p. 37). Em outro texto poético da obra, intitulado “Cartografia do medo”, dividido em seis partes ou cantos, há um curioso diálogo com a música “Pequeno mapa do tempo”, de Belchior. Se na aludida canção o cantor e compositor cearense nos diz: “Eu tenho medo de abrir a porta/ Que dá pro sertão da minha solidão”, José Inácio, por sua vez, em nítida oposição aos versos que lhe serviram de epígrafe, inicia o seu poema afirmando: “Se eu for fazer um mapa do medo/ meu cavalo nunca mais vai sair do lugar./ Por isso vivo no desembesto.” (p. 57). Mais à frente, na nona parte do volume (“Autorretratos”), o título da canção “The Dark Side of the Moon”, composta e gravada pela banda britânica de rock Pink Floyd (também no ano de 1973, no disco homônimo), se transforma em “The red side of the JIVM” (p.132), um soneto trissilábico:
No retrato
tudo pode,
eu vermelho
e o Pink Floyd.
Me retrato
como gosto,
camiseta
do Pink Floyd.
Vou voar,
por aí,
neste mote:
Roger Waters,
David Gilmour,
o Pink Floyd.
Como se vê, José Inácio Vieira de Melo sempre confere um toque pessoal, um gosto de sertão, na maior parte das vezes, aos seus poemas e aos diálogos com os escritos e os artistas de sua preferência.
Dialogar intertextualmente, por sinal, é uma das principais marcas da poética do autor em questão, desde os seus primeiros livros. Voltado, inicialmente, para as obras de outros poetas nordestinos, baianos ou não, como Jorge de Lima, Gerardo Mello Mourão, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo, Ruy Espinheira Filho, Francisco Carvalho, Myriam Fraga e Maria da Conceição Paranhos, rapidamente José Inácio foi ampliando o seu leque de referências – ainda que, desde o princípio, também haja se debruçado sobre a poesia de autores canônicos modernistas, a exemplo de Cecília Meireles, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes –, e estabelecendo pontes textuais/culturais com alguns poetas e escritores mais velhos e experientes do que ele, provenientes de outras regiões do país, v.g., Thiago de Mello, Carlos Nejar, Olga Savary, Astrid Cabral, Vicente Franz Cecim, Foed Castro Chamma, Marco Lucchesi e Marcus Vinicius Quiroga, além de outros mais próximos da sua geração, tais como Salgado Maranhão, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro e Kátia Borges, até, enfim, poder tornar-se, ele mesmo, uma referência para poetas mais jovens (em especial o poeta, professor e crítico carioca Igor Fagundes, que, em 2016, lançou o volume Poética na incorporação – Maria Bethânia e José Inácio Vieira de Melo na encruzilhada de Exu, resultado de sua tese de doutorado), a exemplo dos baianos antologiados por JIVM duas vezes, nos livros Concerto lírico a quinze vozes – Uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004) e Sangue novo – 21 poetas baianos do século XXI (2011).
Arte:Ramiro Bernabó
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"Em Garatujas selvagens, o diálogo intertextual se multiplica e se diversifica, a começar pelas primorosas ilustrações das capas e das aberturas de cada seção da obra, produzidas pelo artista visual argentino-baiano Ramiro Bernabó" |
Em Garatujas selvagens, esse tipo de diálogo intertextual se multiplica e se diversifica ainda mais, a começar pelas primorosas e marcantes ilustrações das capas e das aberturas de cada seção da obra, produzidas pelo artista visual argentino-baiano Ramiro Bernabó, filho do grande pintor Carybé, outro argentino que também escolheu a Bahia para viver, definitivamente, em 1950.
Assim, podemos destacar, ao longo do volume, diversos poemas que buscam o diálogo com outras matrizes líricas, a exemplo da drummondiana, conforme o celebrado “Poema de sete faces” – cujos primeiros versos são: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” (Poesia completa, 2002, p. 5) –, o qual se torna objeto de uma original releitura, empreendida por Vieira de Melo, em “Rabisco rupestre” (p.22):
Quando nasci
o roçado raiava.
Dois riachos
desenrolavam o azul.
Ninava-me, na tarde,
uma pungente toada
acertando a cambraia
do meu sono.
O balanço da rede
embalava o plano:
no meio do sonho,
na caverna da infância,
uma forma primeva:
o rabisco rupestre
da poesia.
Diferentemente do poema de Drummond, o poema de José Inácio apresenta apenas uma face: a da descoberta da poesia pelo menino recém-nascido, que, em sonho, já rabiscava os seus primeiros versos. Nesse sentido, “Rabisco rupestre” remete, mais especificamente, a um outro poema drummondiano: “Infância”, em que o sujeito lírico diz: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada, cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé,/ comprida história que não acaba mais.” (p. 6).
Se há laivos de um Manoel de Barros em versos como estes: “A solução para tantas palavras/ é apagar delas o sentido.// E partir da intacta inocência/ quando ainda tudo era nada” (“Solução”, p. 26), por falar em “nada”, “Nonada” ecoa Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, outro grande poeta de um outro sertão, ainda que assemelhado ao de Vieira de Melo: “No áspero do áspero,/ só garrancho e pedra/ e sol e sol e só.// (...) // Quanto mais nuvens,/ mais o abafo na alma.// E assim lajeado,/ de lado a lado,/ forrado e cercado/ de espinhos e esporas,// a gente ainda quer/ mais e mais viver.// Porque viver/ é assim, suado:/ o assado das horas derretendo gorduras;// e da gente sobrando/ somente nervuras.” (p. 50). Sertão (“abafo”) na alma, diz o verso inaciano. “O sertão é dentro da gente”, adverte Rosa.
E os diálogos prosseguem, sucedendo-se e formando uma espécie de mosaico de vozes, filtradas pela voz preponderante (como não poderia deixar de ser) de José Inácio Vieira de Melo, como no caso do ótimo poema “Semeador”, que evoca Drummond (v. poema “José”), Jorge de Lima (v. terceira estrofe da parte “II”, do “Canto I – Fundação da ilha”, de Invenção de Orfeu), Joaquim Cardozo (v. “Visão do último trem subindo ao céu”), e se encerra à moda de JIVM: “E aí eu já arreei meu cavalo e já passei a perna,/e em meu peito já se instalou a maior alegria,/ pois por mais que haja dor e espinho,/ eu nasci para semear amor e poesia.” (p. 73). Na quinta seção de Garatujas..., “Retratos”, o processo de intertextualidade se intensifica. Mormente nessa parte, mas também no restante do livro, José Inácio expande o seu universo para as artes ibero-americanas, homenageando poetas, escritores e músicos, como Rómulo Bustos Aguirre, Humberto Ak’abal, Joaquín Rodrigo, Luís Serguilha e María Vázquez Valdez, incluindo vários brasileiros, a exemplo de Murilo Mendes, Graciliano Ramos, João Cabral (uma das obsessões inacianas), Carlos Pena Filho, José Alcides Pinto, Marcus Vinicius Quiroga, Helena Ortiz, Rubens Jardim, Carvalho Junior, Villa-Lobos, Raimundo Fagner, Elomar, Jorge Portugal, Chico César e Cátia de França, entre outros. Afinal, o autor faz questão de nos lembrar que seus poemas são escritos “com sangue latino” (“Leitura”, p. 28).
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"José Inácio Vieira de Melo é, acima de tudo, um poeta lírico. É nessa toada que o artista alagoano-baiano melhor se expressa." |
Não obstante, José Inácio Vieira de Melo é, acima de tudo, um poeta lírico. É nessa toada que o artista alagoano-baiano melhor se expressa. Desse modo, a quarta seção da obra, “Rota infinita”, composta por apenas sete poemas, é um dos pontos altos do volume. Já a partir da feliz epígrafe de abertura da seção, retirada de um dos livros de Hilda Hilst (“Minha medida? Amor.”), o leitor se prepara para aquilo que o espera: um denso conjunto formado por sete peças de intensa carga lírica, presente em poemas como o que empresta seu título à quarta parte de Garatujas selvagens: “Minhas palavras estão sem sono/ e o silêncio grita teu nome, mar que admiro.// (...) // E todas as sensações vibram pela caatinga/ e sinto viagens que não se explicam./ O amor tem sempre rota infinita.” (p. 67). Aqui, o mar simboliza o amor. O velho mar/amor de dimensões infinitas, o mar/amor de Camões, Pessoa, Sophia, Jorge de Lima e Cecília. Mar/amor que “entra pelas minhas retinas/ e acende lâmpadas nas minhas células/ e meu animal interior orvalha poesia”, anuncia o eu lírico, que no texto seguinte se dirige ao ser amado em tom devocional: “Uma criancinha habita meu sentimento,/ meu amor, e voo sobre a montanha.// Sete anos de pastor eu te espero,/ sete vidas estelares eu te espero.// Se preciso for, à eternidade eu te espero” (“Uma criancinha habita meu sentimento”, p. 68), resume ele, para, em júbilo, se materializar, mais tarde, num ato amoroso sem quaisquer subterfúgios: “Uma festa de signos vestidos de maracás./ Uma indígena fronte em itálica sombra./ As macias ancas e o totêmico cacto.// (...) // Tuas formas se alinham e se bordam em meu corpo/ e se estende nos ares o gemido do deleite máximo,/ tua boca inaugura e expande um grito: Inácio!” (“Paisagem de êxtase”, p. 72).
Contudo, “Rota infinita” não seria uma das melhores seções do volume, não fosse a presença de dois poemas libertários: “Amor luminoso” e “Viver é sempre um renascer”. No primeiro, esse sentimento é retratado pelo poeta como a pedra de toque da sua própria existência, aquilo que o faz mover-se continuamente, sem limites e em várias direções: “O amor quando chega a gente o segue/ e vai à Terra do Nunca/ e se for preciso outros mundos/ a gente concebe.// A gente consegue transmudar tormento em contentamento/ porque só sentindo o amor/ a gente entende que pode ser livre/ ao amor obedecendo.// (...) // Sou meu senhor e habito o imenso pasmo/ das mais altas eras dos delírios absurdos.// (...) // Sou pequeno,/ mas o amor me eleva aos Andes,/ onde sou condor e Castro Alves.// É sempre o amor que me faz abrir as asas.” (p. 70). Quanto ao segundo poema, trata-se de um soneto de métrica variável, dividido em três tercetos, um dístico e um terceto final que encerra esse belíssimo texto de ares whitmanianos, único na obra, o qual consagra o amor livre e total, sem preconceitos, e que, em razão de seus elevadíssimos méritos, nos leva a transcrevê-lo na íntegra, para que não se perca um átimo de tanta poesia:
É estranho como amamos estranhos.
Suas palavras, seus corpos
parecem anunciar o paraíso.
Mas não é novidade que o estranho
seja a instigante promessa do novo
e renove o nosso corpo, a nossa idade.
A adolescência renasce no rosto
e sem o olhar desse estranho outro
nada no mundo tem sentido.
Sim, é uma grande ameaça,
mas correr todos os riscos é a única graça.
Tudo é tão intenso, tudo é tão imenso
que todo descuido ou qualquer exagero
é apenas tempero para o voo.
("Viver é sempre um renascer", p. 69).
“Instantâneos”, sexta parte de Garatujas..., reúne uma série de haicais resultante de um notável tour de force empreendido por JIVM com o gênero nipônico. Inspirado num raro haicai de Cecília Meireles (“O vento voa/ a noite toda se atordoa,/ a folha cai”), extraído do “Epigrama nº 9” de Viagem (1939), José Inácio elabora 10 pares dessa forma poética, distribuídos por 10 páginas (sendo um par a cada página), em que um haicai dialoga com o seu par correspondente. A métrica é a clássica (5-7-5), estabelecida entre nós por Guilherme de Almeida. Exemplos: “o poeta é dentro./ um templo dentro do tempo./ o templo do tempo”, o qual dialoga com: “o tempo é lá fora./ e bem nos dentros, um templo,/ um poeta aflora” (p. 97); “raios de alegria/ transmitem luz às raízes./ bailam passarinhos”, ao passo que: “revoam os pássaros:/ canário azulão sanhaço,/ eu me chamo inácio” (p. 100); “vastidão e vento:/ um cacho de estrelas castas/ brilhando por dentro”. E o seu par correspondente: “estrelas e estrelas,/ infinda e vasta essa trilha./ comove-me vê-las” (p. 104). Bravo!
Arte:Ramiro Bernabó
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"José Inácio organizou as últimas quatro seções de Garatujas selvagens espelhando-as entre si: "Panorâmica das mães" espelha "Afresco para Inácia", e "Autorretratos" espelha "A rota do ser"" |
Buscando, enfim, um tom mais pessoal, o autor organizou as últimas quatro seções do livro espelhando-as entre si: “Panorâmica das mães” espelha “Afresco para Inácia”, e “Autorretratos” espelha “A rota do ser”. Assim, num primeiro momento – a começar pela epígrafe retirada dos versos de Herberto Helder: “As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam” –, há uma homenagem às mães, em geral: “E as mães?/ Como dói vê-las velar o vão da tarde que some.// Pensam elas que os filhos as evitam./ (...) // As mães são as mais loucas coisas:/ criam os filhos, cercando-os.// As mães são açudes onde se afogam os filhos./ Aliás, os filhos sempre vão à guerra/ toda vez que se afastam delas.// (...) / A mãe perpassa o pensamento do filho/ e chora e ora para que nenhuma morte o siga./ E se ajoelha e chora e o acaricia:/ toda mãe é uma vaca valente a proteger sua cria.// A mãe é uma fera que mostra os dentes do amor,/ tentando espantar o inevitável voo do ovo que gerou.” (p. 111/112). Em seguida, Vieira de Melo homenageia sua própria mãe, Inácia Rodrigues de Santana, em celebração aos seus 70 anos recém-completados, nos quatro poemas que compõem um mural afetivo e afetuoso: “Passaram-se 70 anos, e Inácia continua viva e vivaz,/ continua a mais linda, cicatrizando e abrindo feridas.” (“Morta e viva”, p. 124).
Por fim, “Autorretratos” e “A rota do ser” refletem algumas das múltiplas faces de José Inácio. Em poemas como “3x4”, “P&B”, “Retrato”, “Espelho”, “Eu e a brisa” e “O ignoto”, JIVM realiza, primeiramente, uma espécie de “balanço contábil” da sua trajetória existencial: “Em dez anos/ muito muda:/ perdi forças,/ ganhei rugas.// (...) // Em dez anos/ persisti,/ tracei planos,/ desisti.// (...) // Em dez anos,/ finalmente,/ entendi:/ nada entendo” (“Década”, p. 137), ele conclui, aliviado, para, posteriormente, já amadurecido, poder partir em busca de si mesmo:
Cavo a pedra
em busca do rio.
Não quero qualquer sangria,
quero sentir nas veias
líquidos rubis.
Não quero açudes rasos,
quero sentir a pureza
dos minerais vasos.
Cavo a pedra
em busca de mim.
(“Mineral”, p. 150).
Ao final de seu longo percurso, o poeta se despede de seus leitores sabendo que, mais importante do que a meta a ser atingida, é o caminho a ser percorrido, ou seja, a própria caminhada em si. Só assim “a rota do ser” se completará, chegando a seu termo sem muitos transtornos: “Que a luz chegue em cada quarto,/ em cada recanto do teu ser.// Que tua vida seja grande./ E que na soma dos erros e acertos/ o sol continue a iluminar tua rota.// E quando chegar a hora de partir,/ parte. Mas parte contente,/ celebrando o mistério do porvir.” (“A rota do ser”, p. 155). Bem haja, poeta José Inácio Vieira de Melo. Bem haja.
Ricardo Vieira Lima é Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), crítico literário, jornalista, poeta e editor-assistente da revista Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea (UFRJ). Seu livro Aríete - poemas escolhidos (Circuito, 2021) ganhou os prêmios Ivan Junqueira, da Academia Carioca de Letras, e Jorge Fernandes, da União Brasileira de Escritores - Seção Rio de Janeiro.