sábado, 31 de janeiro de 2009

CANTINHO DO CONTO: A PROVA FINAL

Carlos Ribeiro




Roberto tinha um defeito. Melhor dizendo: Roberto, segundo sua mulher, Marli, tinha um grande e único defeito. Era uma peculiaridade, um traço do caráter que, no início do relacionamento, há distantes 20 anos, parecera a ela uma virtude, mas que, com o passar do tempo, tornara-se algo exasperante. Para não dizer: algo verdadeiramente insuportável.
O grande problema, dizia Marli, era que Roberto, em nenhuma circunstância, se irritava. Nunca perdia a paciência. Jamais respondia às reclamações que ela, freqüentemente, lançava-lhe à cara. Em nenhum momento dirigia-lhe sequer uma palavra um pouco mais dura, com o mínimo tom de rispidez.
No início, Marli considerava isto uma vantagem especial, um presente dos céus. Principalmente naquele tempo em que viviam a fase dourada de descobertas e encantamentos. Não havia, ainda, grandes dívidas a saldar, problemas com filhos. Não havia a convivência diuturna, o dormir e acordar juntos, o esperar na porta do banheiro, as idiossincrasias mútuas, os desentendimentos cotidianos.
Marli considerava-se uma privilegiada. Roberto era uma recompensa à sua persistência. Fora a única filha dos Andrades, a casar, segundo achava-se na época, tardiamente, aos 28 anos. Mas valera a pena esperar. Ele era o exemplo mais bem acabado, que se possa imaginar, de um gentleman. Nunca esquecia de abrir a porta do carro, de puxar a cadeira no restaurante, de enviar-lhe flores e tantas outras delicadezas cotidianas, geralmente esquecidas no correr da vida em comum.
Assim procedeu, ano após ano, sem dar-se conta de que se acumulava, em Marli, como camadas de pó, nas paredes de uma caverna, uma certa apreensão, que, pouco a pouco, evoluía para uma impaciência, e daí para uma intolerância, manifestada nas mínimas coisas: no atraso, para ela insuportável, de alguns segundos, para um encontro; num sorriso, que considerava ridículo; numa frase, que achava inconveniente; numa palavra ou gesto qualquer, que precipitava, subitamente, para a surpresa dos que conviviam com o casal, um inferno de xingamentos, gritos e admoestações. E, finalmente, na conclusão fatal de que ela sabia, sim, o que ele queria. Suas verdadeiras intenções...
A revelação viera de chofre: Roberto queria fazê-la perder a razão. Percebera, finalmente, que havia algo mais por trás daqueles sorrisos, daquelas atitudes gentis – como um pântano oculto por trás de perfumados jardins. Lembrava-se sempre do que lhe dizia a avó: “Minha filha, não existem homens perfeitos”. Por isso, quanto mais perfeitos lhes parecessem, mais cuidado deveria ter. Mais necessário seria vigiar cada um dos seus passos. E assim procedeu. A partir daquele momento, cada gesto de Roberto passava a ser um sinal, vestígio de alguma coisa repulsiva, que se gestava, no silêncio das tardes, entre as sombras dos móveis na sala; mas que, mais cedo ou mais tarde, viria à tona, em toda a sua assombrosa monstruosidade. O perigo era iminente. Ela não podia perder o controle. Não podia ficar esperando que o pior finalmente acontecesse. Tinha que fazer alguma coisa. Se ele ainda reagisse às suas agressões! Se ainda mostrasse sua verdadeira face... poderia haver, quem sabe, uma chance de entendimento. Cabia a ela, num último e desesperado gesto de amor, mostrar quem ele realmente era.
E o fez. Foi numa morna sexta-feira, que ela o recebeu, carinhosamente, à porta da casa, quando ele chegou, à noite, do trabalho. Havia anos que não o beijava. Que não sorria o riso encantador, aquele que tanto o fascinara nos primeiros anos do relacionamento. Que não lhe preparava um jantar, na varanda, com a vista para o mar, da sua bela casa, em Ondina.
Roberto custou a acreditar. Então, acontecera o milagre? Comeu, sorridente, a macarronada, e a sobremesa de figos em calda, que ela mesma preparou. Falou das dificuldades no trabalho, mas também das chances que despontavam. Chegou a desenterrar os velhos planos. Quem sabe, no próximo ano, fariam, juntos, aquela viagem ao Oriente? – aquela que ele sempre dissera que faria, um dia, antes de morrer?
Roberto falou, contou casos, riu e fez-lhe seguidas declarações de amor, até perceber que havia algo estranho em Marli – na forma como ela sorria, no jeito fixo de olhar para ele, na maneira distante como reagiu, quando ele falou sobre a sensação desagradável que, subitamente, lhe acometia; a dor no estômago, as palpitações, o suor frio, os pedidos para que chamasse a empregada (mas ela estava de folga, naquela noite), o médico...
Mas, já não havia tempo. Ao compreender, finalmente, o que se passava, Roberto pensou, pela primeira vez, em dizer uma palavra ríspida à sua linda e querida mulher. Chegou a sentir o impulso, tantos anos reprimido, de agredi-la, de fazê-la ver o seu desespero. Mas conteve-se a tempo. Sentiu apenas uma dor aguda, no coração, ao perceber que não poderia mais protegê-la de si mesma.
Marli permaneceu, silenciosa, diante dele, testemunhando a agonia lenta do homem que um dia amou – esperando, inutilmente, a prova final de que ele ainda a amava, a palavra dura, o gesto violento que enfim o redimisse.


Carlos Ribeiro (Salvador – 1958). Jornalista, ficcionista e doutorando em literatura pela Universidade Federal da Bahia, é autor de sete livros, dentre os quais O Chamado da Noite, O Visitante Noturno, Abismo e Lunaris. Participa das antologias e coletâneas Geração 90: Manuscritos de computador, Contos cruéis, Antologia panorâmica do conto baiano - século XX, Quartas histórias, Capitu mandou flores: Contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte e Travessias singulares: pais e filhos. Co-edita a revista de arte, crítica e literatura Iararana. É membro da Academia de Letras da Bahia e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB/Cachoeira. O conto "A prova final" faz parte do livro inédito Contos de sexta-feira, que tem publicação prevista para este ano.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

JIVM - DISRITMIA


DISRITMIA
Para Linda Soglia


Pandeiro, triângulo, zabumba
e a sanfona de Gonzaga;

o fungado do vento
nas asas das palmeiras;

a premonição, a fidalguia,
a singularidade do uirapuru;

(e porque não a mudez
do urubu e o gralhar da arara?).

Tudo é (alguma
forma de) canto.

Mas a disritmia,
o estrondar dos meus tambores

só quando vislumbro o silêncio
na menina dos teus olhos.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

domingo, 11 de janeiro de 2009

VERÔNICA DE VATE - GERARDO MELLO MOURÃO

SINGULARIDADE DE UM POETA MARCADO PELO HUMANISMO
Por José Inácio Vieira de Melo

Escrevi este texto quando o poeta Gerardo Mello Mourão completou 90 anos, mais especificamente, em 8 de janeiro de 2007, atendendo a um pedido do poeta Florisvaldo Mattos, editor-chefe do jornal A Tarde, de Salvador. A essa altura, Gerardo já estava em coma. O texto só foi publicado no dia 10 de fevereiro e teve uma grande repercussão, sendo reproduzido em vários outros jornais, sites e blogs, do Brasil e de outros países. No dia 9 de março de 2007, praticamente um mês depois, o Vate de Ipueiras viria a falecer, vítima de falência múltipla de órgãos.


AS PERIPÉCIAS


Gerardo Mello Mourão chega aos 90 anos – completados no dia 8 de janeiro – como uma das vozes mais representativas da Literatura Brasileira contemporânea. Um poeta de expressão singular, considerado por vários críticos e muitos escritores – entre eles Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, José Cândido de Carvalho e Octavio de Faria – como o poeta maior do Brasil.
Nascido em 1917, no pé da serra do Ibiapaba, em Ipueiras, sertão do Ceará, Gerardo teve uma vida bastante acidentada e cheia de aventuras. Sua obra tem merecido, ao longo de mais de meio século, a atenção de grandes nomes da Literatura Ocidental, como Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Robert Graves.
Aos 11 anos foi para o Seminário São Clemente, em Congonhas do Campo, Minas Gerais, onde permaneceu até os dezoito, período em que aprendeu nove idiomas e traduziu, num exercício diário, textos do grego e do latim, de Homero e Píndaro, Virgílio e Horácio, Ovídio e Propércio.
Abandonou o convento em 1935, poucos meses antes de proferir os votos de pobreza, castidade e obediência. Começou a estudar direito, mas abandonou. Logo em seguida, aderiu ao Integralismo, assim como Câmara Cascudo e Adonias Filho, conduzido para o movimento pelo crítico Tristão de Athayde.

Foi preso 18 vezes durante as ditaduras do Estado Novo e Militar. Numa delas, ficou no cárcere cinco anos e dez meses (1942 – 1948), quando escreveu o célebre romance O Valete de Espadas e dez elegias de perdição reunidas no livro Cabo das Tormentas. Viajou por toda a Europa, América e Brasil.
O país em que viveu mais tempo, no exterior, foi o Chile, onde deu aulas na Universidade Católica de Valparaíso. Na década de 1980 morou em Pequim, na China, onde foi correspondente do jornal Folha de São Paulo. Mais precisamente, foi o primeiro correspondente brasileiro e sul-americano na China. Escreveu, até pouco tempo, crônicas diárias para os principais jornais do Brasil.


SIBILA
(Último oráculo)


Perdido nas veredas das palavras
tapa os ouvidos - canto sibilino
não se escuta: olha apenas estes olhos
apaga teus sentidos - só nos olhos
acharás o caminho; sem meus olhos,
somente os meus - redondos neste rosto -
morrerás entre os ínvios labirintos.

Sibila sou - Sibila, a Sâmia, a Délfica
poetas e pontífices me seguem
olha meus olhos - não te perderás
olha meus olhos e estarás perdido
perdido neles morrerás de amor
e os que morrem de amor não morrem nunca
olha meus olhos - me verás inteira
em teus olhos de morto estarei viva
e minha vida espantará da tua
a morte para sempre - e para sempre
em tua vida há de viver a minha.


GERARDO MELLO MOURÃO

sábado, 10 de janeiro de 2009

SINGULARIDADE DE UM POETA MARCADO PELO HUMANISMO

AS INVENÇÕES

A vasta e variada obra de Gerardo Mello Mourão compõe uma das mais elevadas contribuições para a literatura contemporânea e consegue alcançar dimensões universais, como é de se esperar de toda alta escritura. Escreveu, com brilhantismo e erudição, em verso e em prosa (romances, contos, ensaios e biografias). Entre seus livros, destacam-se o romance O Valete de Espadas (1960), o livro de ensaios A Invenção do Saber (1983), a epopéia Invenção do Mar (1997) e a trilogia poética Os Peãs, composta pelos livros O País dos Mourões (1964), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977).

O Valete de Espadas, traduzido para vários idiomas, é um romance que está na pauta do surrealismo, mas em quase nada se assemelha ao realismo mágico latino. Sua profundidade, seus abismos indecifráveis, aproximam Gerardo de autores centro-europeus, como o Herman Hesse de O lobo da Estepe. O personagem principal, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, é um ser perplexo diante da irresidência do ser no mundo. Um dia, ao sair do hotel em que estava hospedado, percebe que está em uma cidade completamente desconhecida; no dia seguinte, acorda em um navio cujo rumo também desconhece. A epígrafe bíblica, logo no início do livro, adequa-se perfeitamente ao estado de coisas e às tensões da personagem: “Não conheço sequer o caminho”.

A Invenção do Saber, reunião de ensaios, é um convite ao pensamento. É também um libelo contra a idolatria tecnológica da atualidade e o seu culto da especialização – “o especialista é o individuo que sabe cada vez mais sobre cada vez menos”. E apresenta como contraposição uma cultura humanística, que, no momento, encontra-se desprestigiada, mesmo por aqueles a quem caberia defendê-la. Inclui, além de 30 artigos originariamente publicados na imprensa, palestras apresentadas em universidades brasileiras e estrangeiras, que abordam temas como a palavra, o poder e o saber.


A epopéia Invenção do Mar, Prêmio Jabuti de 1998, é considerada pelo crítico Wilson Martins como Os Lusíadas brasileiro, que o chama mesmo de Os Brasíliadas, em artigo publicado no jornal Gazeta de Curitiba.

De fato, Mello Mourão, por outros caminhos e de outras formas, alcança o sopro criador de um Camões, aliás, faceta essa que já havia logrado com Os Peãs. Ezra Pound percebeu na trilogia Os Peãs, iniciada com O País dos Mourões, que Gerardo tinha inaugurado o canto da genealogia da América. E esta é uma velha ambição cosmogônica: fazer, não a genealogia pessoal, mas a genealogia do seu povo, do seu mundo.
Passear pela seara da obra de Gerardo Mello Mourão é sentir o “aroma, maciez e música” de uma poesia maior. Nenhum outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e qualidade, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua obra. Somente os literatos de ouvidos cegos, que não conseguem alcançar o ritmo da sua poética poliédrica, é que não percebem a sua grandiosidade.
O próprio Drummond declarou-se “possuído de violenta admiração pelo imenso, dramático e vigoroso painel” da poesia de Gerardo, pois sabia do opus magnífico do bardo de Ipueiras que, “atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal da poesia”. Mello Mourão não cabe em moldes nem em escolas literárias. É singular. E vem construindo, solitário, a saga do povo brasileiro.

José Inácio Vieira de Melo


IAM CAINDO


Iam caindo: à esquerda e à direita iam caindo;
Alexandre e Francisco, meus bisavós tombaram,
o primeiro com sua farda de gala, seus botões de ouro e sua patente de coronel
e o outro com sua barba nunca mais alisada e sua bengala de castão de ouro.

Antes, caíam hierárquicos e cronológicos:
Manuel Martins Chaves na prisão do Limoeiro,
Ana, Eufrosina e Úrsula Mourão, da Canabrava dos Mourões, em suas camarinhas cheias de santos,
Antônio, com seus bordados de general nos campos do Paraguai,
um picado de cobra, outro sangrado a punhal, outro varado à bala, outro de maleita,
à esquerda e à direita foram todos caindo,
primeiro os que já eram lenda na memória dos velhos
depois os avós de meus avós,
porque antes tombavam hierárquicos e cronológicos.

Foi assim que tombou, ao lado de seu rifle, o Coronel José de Barros Mello, chamado "O Cascavel", meu tetravô,
e depois o Major Galdino, entre seu bacamarte e suas gaiolas de pássaros, depois,
meu outro avô, o capitão de cenho espesso sobre a tribo
ao talhe de seu tronco frondejando
a cabeça de Mellos e Mourões.

A esquerda e à direita iam tombando,
Úrsula, Francisca e tantas outras,
até cair meu pai.

Depois, começou a romper-se a ordenação da morte
e tombavam os tios e as crianças:
Etelberto, com seus negros cabelos lisos,
Raimundo prometera devolver à terra o que da terra houvera e tombou nela;
Elisa, Elvina e tu,
com teus oito anos e tua cabeça castanha;
tombaram um por um: Ignácia e Ladislau viveram cem anos e também morreram;
tombou Quintino e nunca mais
pela estrada de Águas Belas alazão levará
coronel tão galante e nunca mais na lua
da sela clavinote
tão certeiro;
tombou Quintino e antes dele porque
a morte ia deixando de ser hierárquica e cronológica
tombou no Maranhão Francisco apunhalado.

À direita e à esquerda iam caindo:
Hermenegildo, chefe político e farmacêutico no distrito do Livramento, ainda teve forças para se erguer, beber uma garrafa de aguardente, destruir a farmácia e escrever ao meu avô: "Compadre, vou morrer, os remédios não valem nada quando chega a hora; mando-lhe aquele relógio Patek que você aprecia e a corrente do mesmo, com dois patacões de ouro. Adeus, compadre, Deus o guarde com os seus,
do primo
ass, Hermenegildo".

Outros tombaram sem carta e sem notícia: meu tio e padrinho Antônio Ribeiro deu uma surra no capitão delegado de Polícia e desde a queda do Acioly
desapareceu para sempre,
como Raimundo Mourão, tombado a tiros num seringal do Amazonas: tinha sessenta contos no bolso, surrara todos os barraqueiros e ganhara
num sete de ouros
o dinheiro e as mulheres do cabaret:
pois morreu, com sua chibata na mão, com seus sessenta contos e com suas mulheres,
macho e inquebrável tombou.

À esquerda e à direita iam caindo:
Manuel
Mourão que registrara em seu nome todas as terras do cartório de Ipueiras,
dorme nelas:
Tobias
não tinha terra nenhuma
e matava bois no açougue e vivia disso,
tombou como um de seus bois;
à esquerda e à direita iam caindo
homens e mulheres: Tabajara, pai de Araci, Potiguara e Tupinambá,
fabricava aguardente e não bebia - morreu abstêmio, mas morreu;
o Major Borete Mourão, da Canabrava dos Mourões, destilava a sua no próprio fígado - morreu bêbado, mas morreu;
e Dondon e Cotinha e Missanta Mourão, senhora do Engenho Baixa Verde
e Gilberto e Toínho Mourão e as primas que morriam de parto e pariam filhos também destinados a cair um dia,
foram caindo todos, à esquerda e à direita.
E agora sei: não apenas os de meu sangue iam caindo, pois onde estão José Bento e Sinhá e o Coronel Dédo Catunda?
Onde está o caboclo Antônio Pixuna, com suas mandíbulas que varavam no dente uma cana caiana?
Foram caindo todos: à direita e à esquerda e em todas as cidades
Deolindo assassinado por Chico Monte em Sobral,
o velho Duíno em Minas Gerais, onde
também tombaram outros, Vicente
e sua mulher e Fernando no Espírito Santo e em Porto Alegre,
com a pensão que lhe dera o Governo, a filha de Antônio, general e herói da guerra do Paraguai,
comprava a sepultura, pois
sabia que ia tombar, como tombou:
e em toda parte e em todo tempo, todos,
Bela, Manrica, Sinsa, Torquato, Zezé, Nazária, Aprígio e Waldomiro,
Ignácio e Mariana e Atanagildo,
à esquerda e à direita iam caindo.

E ainda os que encontrei noutros caminhos também foram tombando:
esta é a bengala do Coronel Carvalhinho, pai do Senador e avô de Léa: tombou sem ela e Geraldino
apagou seus grandes olhos e o jovem
sacerdote barroco
Caetano
partiu-se
o grande Cristo de bronze se abatendo sobre
a jarra de porcelana azul
outrora azul do altar.

E tu mesma caíste, eu que te havia por
endereço do coração (e ainda
cantarei de ti, que agora tenho apenas o espanto da implacável derrubada
em que todos vão tombando em toda parte).

Em minha casa, em minha rua e na cidade e no país dos Mourões onde eram clavinotes
e nos outros países além dos mares,
o velho Nicolau, pai de Gofredo,
quem sabe Cuca, a tia de Raul,
e em Milão e em Berlim e na Provença
foram caindo.

Apalpa, meu amor, meu rosto apalpa,
não tombei:
sou eu.
Como venho dos mortos nem eu sei,
mas sei que na partilha me tocou
a herança de sobreviver;
vou devorando a terra com meus olhos
que a terra não comeu, a terra
que comeu tantos olhos e da qual
os meus hoje se nutrem.

Apalpa, meu amor, meu corpo inteiro,
sou macho e forte e em meus ombros de touro
porque não te levar na madrugada
e atravessar contigo as ruas desertas e as ruínas e as cidades
cobertas de hera onde
à esquerda e à direita eles tombaram e à beira
de um riacho ver teu ventre
crescer e irem surgindo
já de mãos dadas, já de pés em dança
rapazes e raparigas e a cantiga
de roda e a flauta de Mársyas e o ritmo
de tornozelos e ancas que Sextus Propertius foi o primeiro a introduzir na Itália e trouxe da Grécia para a Itália e Ezra para Idaho e das ruínas das cidades ver surgirem os pastos e os pastores da pedra das palavras?

Teu poeta e teu macho te carrega nos ombros
e à esquerda e à direita onde tombavam antes,
como um mágico de uma cartola irei tirando
de teu ventre inesgotável
os que não mais cairão, os que se irão
à esquerda e à direita incorporando. Pois
apenas esperavas a chegada de teu macho;
diz agora: era assim que o querias,
o vencedor da morte, o que enrijou os músculos
almoçando e jantando
a medula dos homens e das fêmeas
que à sua esquerda e à sua direita iam caindo,
era assim que o querias o que venceu a Dor?

Sou eu, amor, apalpa agora
minha boca pronta ao riso alegre,
minhas bochechas, apalpa-me
o sexo frondoso e fértil
e escancha as tuas pernas sobre o meu pescoço:
é tempo.

"Aos oito dias do mês de Janeiro do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil e novecentos e dezessete, eu, Manuel Guilhermino Moreira, recebi em meu cartório o Senhor Capitão José Ribeiro Mello que, acompanhado das testemunhas abaixo, declarou o nascimento hoje, a uma hora da madrugada, em sua casa, à Rua Padre Feitosa, nesta Vila de Ipueiras, de seu neto, o Inocente Gerardo Majella, do sexo masculino", etc.

E aqui restei: não venho
introduzir a dança na Itália,
trazer a dança da Grécia para a Itália
ou para qualquer outra terra de Europa:
sou o inocente do sexo masculino e venho
do país dos Mourões
comunicar-te a inocência e o pênis
erguido em lírio
vertical e puro sob os céus da Etrúria,
sob os céus da Toscana, às margens do Arno e junto
de Fiesole e San Minniato, sobre
os campos de Florença como o lírio
que deu nome à cidade e com que o rei de França agraciou
as armas da cidade.

Ao pênis de ouro que se erguer do lírio,
a rosa de teu ventre se abrirá,
e onde o touro pisar no chão dorido,
a rosa de teu ventre se abrirá,
e onde o lombo do touro se reclinar contigo,
a rosa de teu ventre se abrirá
ao pênis de ouro que se erguer do lírio
e der nome às cidades e agraciar
as armas das cidades.

Wovon kommen Sie?
Jawohl, Fräulein,
na noite em que eu chegar
hás de ver tua aldeia renana
acender nas alcovas a alfazema antiga.
Wovon kommen Sie?
Mas da alfazema e tua aldeia
me suspeita há séculos:
esperava por mim a rapariga
que acendia os olhos e a lanterna de ferro
sobre o portal da Hospedaria
"Ao Cavaleiro de Koenigswinter":
eu era sugerido às raparigas
esperando a noite e quanta vez
sonharam distinguir-me na lonjura
entre as tulipas e o trigo e as espumas do Reno e luar dele
sugerido
o süddeutsche Nacht!
o Heidelberge Nacht!
quem sabe eu chegaria a bordo de urna brisa,
de uma folha de outono, moreno
e torneado ao sopro
daquele tocador de flauta de louça
à porta do castelo de Brühl.

É certo que outros tentaram chegar antes de mim,
mas não me confundiste com eles;
de outros — nem os conheceste nem te conheceram,
o velho gangster não montava um cavalo do Texas:
na garupa da cadeira de rodas grunhiu:
"nossa fronteira está no Reno";
Beethoven surdo em sua casa de Bonngasse
ergueu-se e ergueu
ao ouvido sagrado o corno acústico
e o uivo do bárbaro não era
nem seu nome será em nosso idílio.
O nome dele, sim;
veio de Hailey, Idaho, U.S.A.,
a 30 de outubro de 1885
e em seus ombros, amada, partirias:
era belo demais e foste tu
que rendida a seus pés deste a garupa
e o raptado raptor — ó delícias de Cápua —
divino gigolô lambendo os seios
da deusa ao fim do outono,
nas mãos do Pan de Idaho
reencontra o verão ao céu toscano,
Rapallo azul e a primavera à voz
do Pan de Idaho:
e o que te pudera arrastar às ilhas puras
embala-se contigo en los Cantares
dolci canti pisani in blood and blue
e a minha rede, a rede
do filho dos Mourões
entre a torre de Pisa e a de Giotto
sopro de campanile se balança
il nostro Cavazere fú:
e ali virás para a última sesta latina e onde
o lombo do touro galopar contigo
a rosa de teu ventre se abrirá
ao pênis de ouro que se erguer do lírio
e der nome às cidades e agraciar
as armas das cidades.

O Abendland, Abendländische
Elegie!
Velho profeta alemão, vidente de olhos cinzentas,
teus olhos cinza em cinza desmanchados,
toldam de cinza a paisagem:
olha a nua banhista, esverdeadas peras,
olho a dança, olha
o elegíaco nada, o nada
de elegias e à madrugada
entre as virilhas olha
amanhecer o macho:
sou eu e em meu louvor
maduram-se laranjas e ananazes,
em meu louvor
as ondas bailam no oceano e sob
a verde umbrela dos coqueiros
Passo de Carnaragibe,
os cocos se arredondam
em meu louvor
e os cantadores na feira de São Gonçalo dos Mourões,
da Canabrava dos Mourões
e os cegos e os videntes e o gitano andaluz
entre o Atlântico e a montanha
empreendem na viola
a minha louvação:
e Hans Carossa, na aldeia hamburguesa,
o último hálito sopra dos olhos a última cinza,
compõe no próprio rosto a própria morte
em meu louvor.

E meus olhos
assíduos a defuntos como a vivos
começam a apalpar-vos:
quem será testemunha senão vós
de partida e chegada?
E que sou eu senão
a celebração de meu rosto
e que é meu rosto senão
a beleza que o amor talhara nalguns olhos?

Sempre os deuses precisam de um lugar e de uma companhia:
assim eu sou:
é sobre a terra de meu pai que me levanto agora
e a tantos
que à esquerda e à direita lhe caíram,
eu os chamo e suplico:
e altar e coro se incorporem
e assim
eu sou:
celebrado celebro dia e noite
a terra e as águas e as pessoas
e assim
E U S O U.


GERARDO MELLO MOURÃO

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

GERARDO MELLO MOURÃO - O QUE AS SEREIAS DIZIAM A ULISSES NA NOITE DO MAR


O QUE AS SEREIAS DIZIAM A ULISSES NA NOITE DO MAR

Sobre a frase musical de Ivar Frounberg
"Was sagen die Sirenen als Odysseus vorbei segelte"


Ninguém jamais ouviu um canto igual
ao canto que te canto
escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
só ouvem minha voz – a noite e o mar e tu
marinheiro do mar de rosas verdes:

virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim – e ao ritmo
do teu corpo entre a cintura e as ancas

mais o lençol de aromas de meu corpo
em monte de pétalas desfeito:

e dormirás comigo
e os que dormem com deusas
deuses serão – verás
cada arco de minhas curvas
à forma de teu corpo moldaremos – e a pele tua
aprenderá da minha
aroma e maciez e música
e entre garganta e nuca aprenderás
a noite dos que dormem a aurora dos que acordam
sobre os seios das deusas também deuses.

Vem dormir comigo
e comigo
e todas as sereias.

Todas as deusas se entregam
ao amante que um dia possuiu uma deusa
e então todas as fêmeas dos homens
Helenas, Briseidas e a Penélope tua
hão de implorar às Musas – e as Musas a Eros e Afrodite
a volúpia de uma noite contigo.
Não partas!
se partires
as velas de tua nau serão escassas
para enxugar-te as lágrimas – e nunca
nunca mais tocarás a pele das deusas
nunca mais a virilha das fêmeas dos homens
e nunca mais serás um deus

e nunca mais a melodia de uma canção de amor
dos hinos do himeneu:
abelhas mortas para sempre irão morar
na pedra do jazigo de cera
de teus ouvidos cegos.

Mas vem
e vem dormir comigo
e comigo
e minhas irmãs e todas
as sereias do mar
as sereias da terra
e as sereias dos céus.


GERARDO MELLO MOURÃO
Rio de Janeiro, 1998

UM MOMENTO DE BELEZA

Gerardo Mello Mourão

Numa breve antologia de poemas, José Inácio Vieira de Melo noz traz um momento da melhor poesia jovem que se está fazendo ali onde nasceu a poesia brasileira: na Bahia, por cujas ladeiras há de ressoar sempre o ritmo rouco, não tanto das sátiras fáceis, mas da lírica do grande Gregório, que, antes de ser o “Boca do Inferno”, foi um anjo de Deus nas praças e nos becos assombrados da cidade mais humana deste país. Ninguém anda impunemente pelo sortilégio daqueles becos e daquelas praças de pedras e sobrados. O contágio lírico da memória do Anjo Bêbado, interpelando o Deus vivo da Bahia, contamina irremediavelmente os poetas. Foi ali que Jorge de Lima abandonou seus alexandrinos parnasianos e afinou a viola dos ritmos inumeráveis com que chegaria à Invenção de Orfeu.
Alagoano como Jorge, o poeta José Inácio encontrou também nos sortilégios da Bahia o Registro da fala do silêncio, rompido desde o primeiro poema desta antologia, que parece ser, realmente, um código dos silêncios perplexos em que o ser humano traduz e decifra a linguagem misteriosa de suas invenções.
Estamos diante da poesia pura. A vera e mera poesia, que surge nos primeiros poemas deste livro e que é aquela que não se infecciona nem se deprava com teses e causas sociais ou ideológicas, que serão boas ou ruins, mas não são a coisa do poeta e da poesia. Pois a poesia, como nos adverte Croce, é inútil. Isto é: ela não serve a nada e a ninguém, senão a si mesma, à expressão dos conhecimentos memoriais e imemoriais do poeta no passado, no presente e no futuro. Não suja suas sandálias nem em nosso hedonismo nem em nossas necessidades históricas. Seus caminhos se encontram para lá da história, no território ctônico do ser. Ela não trata do conhecimento lógico e conceitual, e só existe na verdade mera e limpa do conhecimento mágico, intuitivo, que não profere conceitos, até porque todo conceito é sempre um pré-conceito.
José Inácio sabe disto. Sabe que a poesia nasce do silêncio:

O que mais tem falado em mim é o silêncio

O poeta é o habitante do silêncio, o silêncio pascaliano dos abismos e dos espaços infinitos, ao qual a consciência lógica não tem acesso e que é da sesmaria privilegiada do inconsciente e do sub-consciente:

Um silêncio de lá, de longe – das plagas interiores –
que fala o tempo todo sem dar nome ao dito.

A poesia é a clave miraculosa capaz de dar nome ao dito, capaz de dizer o indizível. Ela é o código do silêncio, decifra os hieróglifos e oferece a verdadeira face das coisas, dos lugares e das pessoas –

– semblante formidável:
tão formoso quanto pode ser um deus.

No poema Espelhomem, partitura oracular deste “opus” de José Inácio, o poeta busca o outro nome do nome, o nome que dá a plenitude da forma. Como ensinam os lingüistas, em nossa língua o sufixo “oso” – “osa” (do latim “osus” – “osa”) significa “cheio de”. Form-oso quer dizer “cheio de formas”, isto é, incorporado à plenitude de todas as suas formas possíveis e imaginárias. “Formoso como um deus” – diz o poeta num de seus versos: um deus – supõe-se – é o ser investido da absoluta totalidade de suas formas.

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José Inácio Vieira de Melo sabe que o poeta é o fundador dos seres. Só ele pode trazer dos abismos a decifração de todas as formas do ser, para expressá-las na linguagem pura da metáfora. Deus é formoso, isto é, Deus é belo. Todas as coisas que cercam o homem sobre a terra, quando olhadas no lavor de suas formas, são formosas e, pois, são belas. Expressar essa beleza é a coisa do poeta. E a poesia é o milagre da expressão lograda e cumprida, de qualquer tempo, de qualquer espaço, de qualquer circunstância do ser – a rosa, a mulher fugidia pelas ruas de Maceió, essas próprias ruas, a angústia de nossas buscas, a alegria de nossos encontros, o longínquo sino católico de uma igreja submersa na memória ou a cumeeira carcomida. Ao criar a presença real de um rosto de mulher ou de uma chaga no peito de um transeunte imundo tombado na praça, o poeta cria a beleza. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus – formoso – e se o homem é ele mesmo e sua circunstância, como na advertência de Ortega, então tudo foi criado à imagem e semelhança de Deus, inclusive os cães lunáticos do poeta nas esquinas da Bahia. Por isto, o belo é sempre formidável. Toda beleza é terrível como os anjos de Rilke.
Não há dúvida de que o livro de José Inácio anuncia e prenuncia um momento de beleza imperecível. De poesia propriamente dita.


Prefácio do livro Códigos do Silêncio (2000), também publicado no A Tarde Cultural, em 3 de junho de 2000 com o título "Decifração de abismos", em Salvador.