segunda-feira, 7 de agosto de 2023

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO: O FILHO DO SOL

 Por Raquel Naveira 

Foto do autor: Luciano Avanço | Foto da capa: Ricardo Prado
"55 anos celebrados nesta Antologia de 55 poemas
escolhidos, intitulada O Filho do Sol, de José Inácio
Vieira de Melo, alagoano radicado na Bahia,
poeta premiado, jornalista e produtor cultural"

Um número mágico: 55. Aos 55 anos, vários desafios foram superados com coragem. O numeral cinco representa os cinco sentidos, a ordem do Homem no Universo. 55 anos celebrados nesta Antologia de 55 poemas escolhidos, intitulada O Filho do Sol (Editora Mondrongo, 2023), de José Inácio Vieira de Melo. 

 José Inácio, o alagoano radicado na Bahia, poeta premiado, jornalista e produtor cultural, é mesmo “filho do sol”: o sol do sertão, do fogo que se espalha pelas ideias e imagens, do conhecimento dos meandros poéticos, da ânsia de imortalidade presente em todo aquele que escreve com paixão pela palavra. 

 Os títulos dos livros de José Inácio nos levam a pistas do seu imaginário e do seu fazer poético. Códigos do Silêncio... o silêncio com seus mutismos, taciturnidades, segredos. O silêncio em códigos, em símbolos, em células, em sistemas para decifrar a escrita, para transmitir mensagens. O poeta nos incita a interpretações: “O silêncio, este que fala e de tanto que fala,/ é um hieroglífico poema,/ e estes versos: tradução e codificação.” Silêncio em que se penetra: “Silêncio na carne/ Silêncio que sente a areia passar./ Tempo para a solidão do poema.” Silêncio e solidão, condições propícias para se criar Poesia. 

O poeta, em Decifração de Abismos, entrega ao leitor poemas místicos, crísticos, como comprovam estes versos: “Eu sempre tive o desejo incontinenti de salvar o mundo”; “Sempre cri ser o redentor de toda miséria humana”; “Sinto em cada estrela uma Madalena a luzir”. Bebe as fontes da bênção, num poema patriarcal: “Meu pai,/ beijo tuas mãos,/ não como um homem/ pretende beijar as de Deus,/ mas como uma árvore/ beija suas raízes.” Nessa busca de sua ancestralidade mais profunda, clama por seu avô Moisés: “O meu avô Moisés: meu anjo da guarda.” 

 Quando o poeta José Inácio nos vem à mente, é fácil imaginá-lo de chapéu, montado sobre um cavalo, os olhos perdidos pelos cactos do sertão. O cavalo é símbolo de poder, força, liberdade, confiança. Figura que representa os desejos humanos mais impulsivos. Os cavalos estão presentes na poesia viril desse cavaleiro do fogo, filho do sol, com “coração de rubi, “ígneo, Ignácio, Inácio”: “... trazias os céus dentro dos olhos,/ o relinchar da paixão pagã/ dos cavalos que trago dentro de mim”; “... a dos cavalos galopando na boca da noite/ sonhando com touceiras de capim e éguas luzidias.” 

Foto: Ricardo Prado
"E um homem sobre o cavalo se transforma numa espécie
de centauro. José Inácio é centauro que galopa, galopa,
galopa, transcendendo a ele mesmo e às suas explicações."
 
E um homem sobre o cavalo se transforma numa espécie de centauro, daí o título do livro A Infância do Centauro, com dois cernes temáticos: a infância e o centauro. O centauro é vermelho, escarlate: “O teu centauro te espera,/ monta em seu dorso/ e vê o mundo pelos olhos da esfinge:/ és o enigma, não do decifrador.” O centauro é o conflito da natureza masculina: homem e cavalo, razão e instinto, delicadeza e brutalidade. José Inácio é centauro que galopa, galopa, galopa, transcendendo a ele mesmo e às suas explicações. Galopa o território da sua infância, a sua principal metafísica, a sua memória: “Gosto de subir no telhado da casa/ e olhar para dentro do quintal,/ é lá que estão o menino e a arte.” 

Roseiral... rosas que exalam romantismo e sensualidade. Rosas belas e efêmeras colhidas no jardim, ao pôr do sol. O poeta declara: “Meu coração é mesmo a rosa viva”; “Estas rosas que vês em mim são brasas.” Há pura eroticidade neste poema com o tom bíblico do “Cântico dos Cânticos”: “Que as tuas nádegas aventureiras estejam abertas/ para o poema em linha reta que te ofereço”; “Num estalar de dedos/ encontro impulso para viajar pelo infinito./ Num beijo, fundo a linguagem/ que desperta em mim o desejo do gozo e do atrito.” 

Chegamos ao livro Sete. Sete é também número simbólico. A humanidade aguarda o cumprimento da profecia apocalíptica do final dos tempos com uma revelação que virá em forma de sete estrelas, sete selos, sete trombetas, sete calamidades. Aprecio essa proposta do poeta de uma certa unidade através da escolha de uma temática central, no caso, o número sete e seus sortilégios. Um livro que nos faz mergulhar no poder oculto desse número como no poema “Sete Irmãs”: “São sete noites vividas por Borges,/ São sete fadas da ilha de Lesbos,/ São sete acordes de Joaquin Rodrigo,/ são sete facas de Aderaldo, o Cego.// Ah minhas sete irmãzinhas serenas,/ vamos jogar enquanto há tabuleiro,/ sete damas rainhas, sete Helenas,/ Sou vosso servo, vosso Cavaleiro.” 

 Há ainda A Terceira Romaria, o três, outro número perfeito. A terceira romaria é a derradeira, a que vai de encontro à morte: “Inevitável a única certeza:/ um dia a Derradeira vai lamber/ a tua boca e já estarás/ habitando noutras plagas.” 

Foto: Divulgação
"José Inácio Vieira de Melo no auge de seus 55 anos
e 55 poemas, é como um pianista selvagem que nos
eleva com suas notas e compassos a paragens muito
altas, quando afirma: "Prontos para minha passagem/
meus pianos pairam sob um céu de rosas."

A expressão Pedra Só remete à pedra de João Cabral de Melo Neto, A Educação pela Pedra. A pedra somente. Fundamental e angular. A pedra sozinha, solitária, no calcinante sertão: “Da boca dos pássaros, os violões do sol./ Rezo benditos e grito os nomes da Terra.”

Garatujas Selvagens são rabiscos surreais, desenhos, grafismos, arabescos: “Há um tigre dentro do relógio,/ correndo por entre os sonhos/ e atravessando a savana do tempo.” 

 Muitas são as referências a pessoas como a tia Aurora: “A casa de tia Aurora é um lugar dentro do meu sentimento”; às musas empalidecidas como Cássia e Quitéria; às mães protetoras, feras “com dentes de amor”, “...açudes onde se afogam os filhos”; à mãe do poeta, Dona Inácia, cuja dimensão do amor ele só foi compreender na maturidade, quando descobriu que “filhos são sementes de alegria e germes de sofrimento”. 

 Referências também a escritores, mostrando a erudição do poeta que aprecia Federico Garcia Lorca, Jorge de Lima, Baudelaire, Safo, Homero e, na contemporaneidade, Denise Emmer. A ela dedica o poema “A Violoncelista”, a poetisa tocando seu cello, escalando paraísos; ofertando beleza às nossas entranhas. 
 As referências bíblicas vão da misteriosa Madalena ao rei Davi, passando por Salomão, com a lembrança do “Cântico dos Cânticos”. Com certeza, o evangelho de José Inácio é a música. É também o evangelho do silêncio, dos abismos, da memória, dos cavalos de fogo, das rosas vivas, das pedras, das garatujas e ideogramas, das sete colinas. 

José Inácio Vieira de Melo, no auge de seus 55 anos e 55 poemas, é como um pianista selvagem que nos eleva com suas notas e compassos a paragens muito altas, quando afirma: “Prontos para a minha passagem,/ meus pianos pairam sob um céu de rosas.”

Foto:Filipe Vido
Raquel Naveira é escritora, professora universitária, crítica literária e Mestre em Comunicação e Letras. Autora de vários livros de poemas, ensaios, romances e infanto-juvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Letras do Brasil, à Academia de Ciências de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.