sábado, 19 de julho de 2008

VERÔNICA DE VATE: IGOR FAGUNDES

IGOR FAGUNDES, carioca, 26 anos, é poeta, jornalista, ator, ensaísta, Mestre em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de Teoria Literária na mesma universidade. Autor dos livros de poemas por uma gênese do horizonte (2006, vencedor IV Prêmio Literário Livraria Asabeça), Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004) e Transversais (2000, 1º lugar no I Concurso Literário Estudantes do Brasil), bem como do livro de ensaios (no prelo) Os poetas estão vivos - pensamento poético e poesia brasileira no século XXI (Prêmio Literário Cidade de Manaus 2007). É co-autor da coletânea de artigos Quem conta um conto: estudos sobre escritoras contistas estreantes nas décadas de 90 e 2000 e integra a coleção Roteiro da Poesia Brasileira - Poetas da década de 2000. Atualmente, é colaborador do Jornal Literário Rascunho e nas publicações da Academia Brasileira de Letras (ABL).


chamado


como se já te conhecesse, espero-te:
mãos abertas, juntas, a equilibrar
o mar outrora preso na linha da vida
e que agora sobre as palmas se apóia.

como se não te conhecesse, aviso-te:
nele singra este homem com olhos de céu
refletido no corpo-água que a ti oferta
o sal da pele antes muralha.

como se te escrevesse, enfim, em versos
navego-te no ardor de uma palavra
em mar que ontem pensei ser meu apenas
e hoje te inunda para ser a nossa lavra.


Igor Fagundes

IGOR FAGUNDES - POR UMA GÊNESE DO HORIZONTE



por uma gênese do horizonte


hoje quero amanhecer com os afogados
implorar que voltem a caminhar comigo
penteá-los como se evocasse filhos
abraçá-los como quem pede um chamado

hoje à tarde vou morrer com os afogados
engolir a água que invadiu suas sebes
me arder no sal que arranhou suas malhas
e arranhar as minhas com o que partiu suas pedras

hoje à noite vou salvar-me entre afogados
ler em seus olhos alguma paz em riste
embora nas pupilas ouça ainda
uma voz rouca para sempre dilatada

amanhã estaremos todos acordados
em mar profundo poderemos ser crustáceos
cavaremos até chegar ao mais escuro
ninho de pérolas e tudo será claro

para amanhã iluminar outro afogado
que na voragem de salvar-nos será salvo
e se unirá ao nosso fio interminável
de corpos sob o pôr/nascer do sol

e amanhã saberemos de que é feita
esta linha vista ao longe:
de um pouco de mágoa e muito de água
lavando por dentro o peito dos mortos


Igor Fagundes

A SAGRAÇÃO DO CAOS

Igor Fagundes


No oracular A infância do centauro, poemário do alagoano-baiano José Inácio Vieira de Melo, um certo Delfos nascido em Olho d'água do Pai Mané adivinha-me no único verso de Quarto da bagunça: "Eu não sei nem por onde começar". Porque todo começo (cosmo) parte sempre de uma "bagunça" (caos) e a ela retorna na intermitência poética da vida, não-saber é o próprio iniciar caótico do verbo que não sabe "ser quase" e jamais se sacia, jamais nos sacia, sedentos incuráveis que somos. Não obstante, as algaravias deste livro-quarto-das-balbúrdias consistem, ao revés, no "registro da fala do silêncio" e levam-me, desde já, ao fracasso de dizê-lo e "dizê-las por inteiro". Afinal, ninguém consegue falar ou escrever sobre o silêncio, uma vez que só é possível falar ou escrever violando-o. Por isso não se sabe nunca, em poesia, "por onde começar": começa-se. E recomeça-se a cada vez, sem chance alguma de chegança. O ansiado "onde" é justamente este "não sei" a partir do qual emerge e imerge todo - poético - saber; todo sabor que intenta saturar-se de palavras quando "um silêncio de lá, de longe - das plagas interiores" as "abrasa" e "as queima antes de serem".
À semelhança de um "escarlate" que viaja "por todo o Cosmo em busca de uma resposta" e transita "em todas as partes que estão além das partes todas", adentro este quarto da bagunça "como quem entra num bar" e "sai bêbado caindo pela falta de chão". Confessar que "em minha mão pulsa o nó do espanto" é reconhecer, na desordem, o que nela se verte em seu próprio elogio: os minuciosos "segredos da poeira" a "andar para cima e para baixo"; o desejo de "beijar minha sombra", de assumir "todas as formas" para "amanhã ser informe" e especular que "somente os olhos dizem/ o que as palavras sonham" no instante em que o poeta, o leitor, um poeta-leitor se reconhece (ou se desconhece) perdido entre papéis misturados, canetas sem tinta, bilhetes rasgados, gavetas e armários abertos, vestes sem cabides, sapatos sem cadarços, cigarros sem cinzeiros, janelas emperradas, chaves sem baús, cofres violados e outros órfãos de senhas. Vem "do caos primordial" a poesia e, em Vieira de Melo, tal mitofania se faz tema ao percorrer "as searas da escuridão" e ver "o mundo pelos olhos da esfinge". Não lhe cabe decifrar - arrumar o "quarto" - e, sim, perpetuar-se "enigma", "um lugar/ onde os nossos mistérios possam descansar". Onde possamos transgredir o que outrora afirmamos, já que nem os olhos são capazes de dizer o sonhado pelos nomes. Silenciosas, as retinas talvez só gritem o que nelas se impronuncia: nunca acham o que procuram e o que nos procura se diz tão-somente em oráculo sob vendas: "Eu só acredito nas coisas que não vejo".
Esta, a crença da flecha erguida pelo centauro: ver o invisível, tanger o intangível, na certeza de que o azul do céu se tinge do fato de que ele não é céu nem azul; de que, indiscernível das patas, jamais segue longe, acima, mas como o imanente incolor que doa todas as possibilidades de cor e as converge na aquarela alquímica da vida: "vento, fogo, terra e água/ tudo uma coisa só". Com um quê de Empédocles e outro de Moisés, a página de José Inácio Vieira de Melo prossegue qual um Mar Vermelho em pleno Egeu, e por onde também deságuam os rios áridos ou a seca lacrimosa de um nordestino - humano - sertão.
A infância do centauro não se anuncia na condição de etapa existencial ora ultrapassada. Na medida em que não cessamos de aprender a falar, a pensar, a descobrir, amanhecemos, a cada amanhã, infantes na "sagração dos mitos". Bíblicos ou pré-socráticos em Vieira de Melo, ou nem isso, para além disso, pós-inácios, posto que "não medem o tempo" e se apossam, como "herança" e "testamento", do "buraco, o vazio" exímio no "meio do caminho" de nosso presente. E é buscando, de dentro desse abismo, aquilo que será, paradoxalmente, sua ponte, que os desígnios de um Delfos Vieira de Melo fazem-nos sentir tamanha saudade dos lugares em que nunca (mas sempre) estivemos.


Resenha publicada no jornal Rascunho, em julho de 2008, na cidade de Curitiba, Paraná.

Igor Fagundes é poeta, jornalista, ator e dramaturgo. Mestre em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicou os livros Transversais (2000), Sete mil tijolos e uma parde inacabada (2004) e Por uma gênese do horizonte (2006).

JIVM - QUARTO DA BAGUNÇA


sábado, 12 de julho de 2008

VERÔNICA DE VATE: AFFONSO MANTA

O POETA ENCANTADO
Por José Inácio Vieira de Melo

AFFONSO MANTA Alves Dias nasceu em Salvador, Bahia, a 23 de agosto de 1939. Faleceu em 3 de dezembro de 2003 em Poções, Bahia. Com três meses de idade, passou a residir em Iguaí, onde permaneceu até janeiro de 1950, quando a família se transferiu para Poções, cidade do Sudoeste Baiano.
De volta a Salvador, o poeta freqüentou o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas acabou por abandoná-lo. Trabalhou, em seguida, como guia do Museu de Arte Sacra e repórter do Diário de Notícias. Trabalhou na Diretoria Regional da Guanabara como inspetor da Seção de Reclamações da Empresa de Correios e Telégrafos, no Rio de Janeiro. Enfermo, retornou a Poções, onde voltou a viver desde novembro de 1974, aposentado da ECT.
Por parte de pai, o poeta é primo em quarto grau de Castro Alves, devido à sua descendência, por linha direta, de João José Alves, o alferes, irmão do médico Antonio José Alves, pai do Poeta dos Escravos.
Publicou os seguintes livros de poemas: A Cidade Mística (1971), O Colibri, a Cidade Mística e outros Poemas (1980), O Retrato de um Poeta (1983), No Meio da Estrada (1991) Canção da Rua da Poeira e outros Poemas (1994), e O Falso Crente, A Princesa Nua, O Pássaro e o Poeta e O Estranho na Terra (1995). Participou das antologias A Poesia Baiana no Século XX (org. Assis Brasil, 1999), A Paixão Premeditada (org. Simone Lopes Pontes Tavares, 2000) e Sete Cantares de Amigos (org. Miguel Antônio Carneiro, 2003).
Integrante da Geração Sessenta, Affonso Manta tinha sua poesia marcada pelo lirismo e pela construção de uma realidade particular, na qual assumia a postura de um rei andarilho, que desfilava pelas ruas e praças “Adornado de estrelas e de luas (...)/ à procura da forma da beleza”. Pois era “O campeão da originalidade/ o peregrino astral”.
A poeta e ensaísta Maria da Conceição Paranhos, na apresentação da antologia Sete Cantares de Amigos, atenta para as múltiplas vozes do poeta: “Seu banquete – assim podemos denominar seu modo de apropriação da realidade – é servido por outros eus que dele desabrocham e vão guiando seu passo célere, a desvendar essências” e conclui “apenas um eu não o poderia”. Assim, em um mesmo ser, habitam o louco: “Enlouqueci, um girassol nasceu em minha boca.”; o rei: “Aqui, o Rei Affonso, o Derradeiro”; o menino: “Eu sou feliz porque já sou menino”; o anjo: “Anjo de luz do sacrossanto empíreo” e o andarilho: “Vou sair por aí de cambulhada”.
Outra face da poesia de Manta é a refinada ironia. Simone Lopes Pontes Tavares, em A Paixão premeditada, afirma que nos poemas de Manta “O debique é constante, inclusive do eu poético, numa linguagem cinematográfica a transformar o cidadão comum em clown, misto de Quixote e Chaplin”, como se pode perceber no poema “Lá vai Affonso Manta”: “(...) lá vai Affonso Manta (...)/ Coroa de alumínio sobre o crânio,/ Lapelas enfeitadas de gerânio/ E flechas no carcás”.
Deste poeta lírico da “Terra das Cacimbas”, que nas palavras do poeta Ruy Espinheira Filho, seu amigo, foi um encantado a vida inteira, ficam a beleza de seus versos, a leveza de sua técnica e, sobretudo, a lição da simplicidade com que encarava a vida, como no poema “As Luzes do Amanhã”, em que nos ensina: “Fazer da brisa um traje sem medida/ E do arco-íris fazer um tobogã./ Amar as mínimas coisas da vida/ E ter no olhar as luzes do amanhã.”


LÁ VAI AFFONSO MANTA


Com estrelas na testa de rapaz,
Com uma sede enorme na garganta,
Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta
Pela rua lilás.

Coroa de alumínio sobre o crânio,
Lapelas enfeitadas de gerânios
E flechas no carcaz.

Manto florido de madapolão,
Bengala marchetada de latão,
Desfila o marechal,

O rei da extravagância, o sem maldade,
O campeão da originalidade,
O peregrino astral.


AFFONSO MANTA


Texto publicado na revista Iararana n°9, em Salvador, em agosto de 2004.

AFFONSO MANTA, O POETA ENCANTADO

ENCONTRO COM O POETA

Conheci a poesia de Affonso Manta por intermédio do poeta Ruy Espinheira Filho, quando fui seu aluno em uma disciplina do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Fiquei fascinado pelo lirismo do autor de “O louco”. Pedi a Ruy o seu endereço e falei que, em breve, faria uma visita ao poeta da Terra das Cacimbas.

***

Chegamos a Poções, às 10 horas da manhã, era um dia luminoso de novembro de 2002. Estavam comigo o poeta Edmar Vieira e os amigos Flávio Vieira e Jaider Saraiva, companheiros da cidade de Maracás. Fomos à Rua Coronel Maneca Moreira, 154, na Praça da Velha Matriz, e lá estava o poeta, em frente à casa, a nossa espera. Altivo, convidou-nos para adentrarmos em seu lar e saiu mostrando todos os cômodos da ampla casa até chegar ao quintal, onde havia alguns pés de goiaba, manga e carambola. De volta à sala, pegou o livro da poesia completa de Manuel Bandeira e falou: “Este é o maior poeta brasileiro. Estou sempre relendo sua poesia”. Edmar pediu para que recitasse o poema “Lá vai Affonso Manta”, o que fez de bom grado.
Feitas as apresentações iniciais, fomos para o Bar do Beto, na Praça Principal, lugar onde Affonso Passava boa parte de seu tempo, conversando com os amigos, entre um cafezinho e um cigarro. Informou-nos de que o poeta Elder Oliveira, que mora em Vitória da Conquista, estava em Poções, então fomos à sua procura. Elder, além de bom poeta é cantador de categoria. Daí pra frente foi só música e poesia. A alegria estava presente, podia-se perceber a felicidade estampada na face do velho bardo de Poções. Despedimo-nos na boca da noite, por volta das 18 horas. Felizes pelo encontro, pelo dia de encantamento que a poesia havia nos proporcionado.

***
Um ano depois, novembro de 2003, recebo e-mail de Ruy informando-me de que Affonso estava internado no Hospital das Clínicas, e que a situação inspirava cuidados. No dia seguinte fui visitá-lo. A principio fiquei chocado com o estado do amigo, estava muito magro, vomitava constantemente, mas apesar de tudo mantinha o brilho no olhar e, ao me ver, fez um sorriso e exclamou: “Zé Inácio, que bom vê-lo. Como vê, estou comendo o pão que o diabo amassou!”
Passei a visitá-lo quase todos os dias, levava sempre algum amigo. Depois, surgiu a oportunidade de convidá-lo para participar da antologia Sete Cantares de Amigos, organizada pelo poeta Miguel Antônio Carneiro, de cuja seleção de poemas fiquei encarregado. Mostrei para Manta seus poemas que havia escolhido para a antologia, dentre eles constava o poema “Anjo de Fogo”. Pediu-me que mudasse o título desse poema para “Anjo de Luz”. Observei que se mudasse o título teria que mudar um dos versos iniciais que era: “Anjo de fogo do celeste empíreo”, para “Anjo de luz do celeste empíreo”, e aí o verso ficaria quebrado. Affonso, então, fechou os olhos e disse: coloque aí: “Anjo de luz do sacrossanto empíreo”. O problema está resolvido”. Perguntei qual era o motivo da mudança, ao que ele respondeu: “Eu estou morrendo. Fogo é coisa do Inferno e Luz é coisa do Céu.” Não questionei mais nada, apenas fiz a mudança. Poucos dias depois, 03 de dezembro, o poeta viria a falecer. No dia 11 de dezembro aconteceu o lançamento da antologia Sete Cantares de Amigos, ocasião em que Affonso foi homenageado com jogral de seus poemas, dirigido por mim, e depoimentos de Maria da Conceição Paranhos e Ruy Espinheira Filho.

***
Em uma das cartas que me enviou, datada de 18 de dezembro de 2002, ele diz:
"O Livro de Celeste, meu mais recente trabalho, empacou por inteiro. Tem me faltado inspiração para continuá-lo. É pena. Do que já está escrito há coisas engraçadas como este poemeto:

A PISCIANA

Celeste é meio indócil, mas serena.
De gênio calmo. Mas de amor fogoso.
Ela me dá felicidade plena
E surra de cipó de fedegoso.

É o que me consola, a poesia. Povoa minha solidão e estabelece um elo com os meus semelhantes, eu que sou meio caladão.”

***

Que alegria a minha. Poder ter tido a amizade e a atenção de poeta tão singular, de um homem que vivia em estado de poesia e que, com seus versos, deixava e ainda deixa a todos nós encantados. Está mais do que na hora de sua obra ser reeditada. Não é nenhum favor que vai se prestar ao poeta, ao contrário, é um beneficio que se fará às letras da Bahia e do Brasil, enriquecendo-as, ampliando o seu lirismo.


José Inácio Vieira de Melo



ANJO DE LUZ



E como um ser de forte claridade,
Anjo de luz do sacrossanto empíreo,
Eu sentia nas asas do delírio
A dimensão da grande liberdade.

Passava nos lugares rotineiros
Colhendo todo mundo em meu abraço,
Confundindo noções de tempo e espaço,
Embaralhando fatos verdadeiros.

Ia nos quatro pontos cardeais.
Andava sobre a linha do equador.
Via o céu de manhã mudar de cor.
Percorria os espaços siderais.

Ia mais longe do que qualquer nave.
Voava mais depressa do que a luz.
Entendia as palavras de Jesus
Como uma criancinha entende uma ave.

Achincalhava todas as mentiras.
Todos os fariseus desmascarava.
Os ídolos do hipócrita quebrava.
A roupa do impostor deixava em tiras.

E como um ser de etérea realeza,
Adornado de estrelas e de luas,
Saía a percorrer todas as ruas
À procura da forma da beleza.

E encerrava meu curso luminoso
Num lugar pelos homens habitado,
Onde era pelos guardas algemado
E preso como um louco furioso.


AFFONSO MANTA


Texto publicado na revista Iararana n°9, em Salvador, em agosto de 2004.

AFFONSO MANTA - O LOUCO

Profeta Gentileza
O LOUCO
Para Altamirando Camacam

Enlouqueci, um girassol nasceu na minha boca.
Os pássaros já estão fazendo ninho
Atrás da minha orelha.
Enlouqueci, o azul explodiu em fevereiro.
Vou conhecer Londres no meu bergantim de pirata.
As ruas são-me passarela para bailar.
Não me conheceis, transeuntes?
Não me conheceis, moça de olhos calmos
Do último andar do edifício?
Sou o Louco.
Prometi as chuvas do mês passado.
Prometi as árvores.
Prometi os vinhos.
Prometi este intenso azul de fevereiro.
Faço promessas maravilhosas.
E vede que se cumprem.
Abram as portas.
Chamem vossos filhos.
Chamem vossas noivas.
Os garotos vão rir de mim.
Por acaso, não quereis que as vossas noivas se divirtam?
Não há quem não ache graça
Do meu aspecto excessivo de profeta.
Convidem todo mundo.
Trago uma flor no bolso de dentro do paletó
Para ofertar ao sorriso mais inocente da cidade.
Não tenham medo.
Não faço mal a ninguém.
Sou o Louco.

AFFONSO MANTA

domingo, 6 de julho de 2008

VERÔNICA DE VATE: ROBERVAL PEREYR

ROBERVAL PEREYR natural de Antônio Cardoso-Bahia (1953), em 1964, radicou-se em Feira de Santana. Doutor em Letras (Unicamp), é poeta, ensaísta e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e um dos fundadores da revista de poesia Hera (Feira de Santana, 1973). Fundou também, ao lado do poeta Pablo Simpson, a revista de poesia Duas Águas. Vencedor de vários concursos literários. Entre os livros publicados, encontram-se As roupas do nu (1981); Ocidentais (1987); O súbito cenário (1996); Concerto de ilhas (1998); Saguão de mitos (1998) e Amálgama – Nas praias do avesso e poesia anterior (2004). Participou em várias antologias, entre as quais A poesia baiana no século XX, organizada por Assis Brasil. Tem inéditos em romance e novela. Pereyr atua também como compositor e arranjador musical. Possui vários poemas musicados pelo cantor Márcio Pazin, como “Galope”, que conta com bela interpretação da dupla Márcio Pazin e Carol Pereyr, cantora filha do poeta. Roberval Pereyr vai apresentar-se, no próximo dia 11 de julho, no projeto Uma Prosa Sobre Versos, na cidade de Maracás, Bahia, coordenado por Edmar Vieira.


OFÍCIO


A minha luta é banir-me
a partir mesmo dos ossos
da ossatura dos sonhos
com seus remorsos, rebanhos
de feras subtonadas.

Banir-me a partir do corpo
onde o ego se ampara
com o porte de um porco
obeso, de banha farta.

Pois havia o destino cego
e uma carta lacrada: o ego
com que me fiz e me nego
porque não rasguei a carta.

Rasgo-a. E quanto mais rasgo
mais ela mesma se escreve.


ROBERVAL PEREYR

ROBERVAL PEREYR - GALOPE

Ilustração: Ângelo Roberto


G A L O P E


Meus pensamentos são meus camelos
meus pensamentos são meus cavalos

(com uns cavalgo para o silêncio
com outros marcho para a saudade).

Meus pensamentos são meus cavalos
meus pensamentos são meus camelos

(sou sertanejo, nasci nos matos,
ando a cavalo para mim mesmo).

Meus sentimentos são meus desejos
em que me vejo perdido, e calo.

Meus pensamentos são meus camelos
meus pensamentos são meus cavalos


ROBERVAL PEREYR

CANTINHO DO CONTO: A ROSEIRA

Alejandro Reyes

Ilustração: Bel Borba


Hoje eu morri, e há reunião de família. É um pouco desconcertante ver tanta gente e ouvir tanto barulho dentro de casa, onde durante tanto tempo morei só e onde quase nunca recebia visitas. Mas não tenho do que me queixar; na verdade, é muito bom ter a família reunida. Família e algumas outras pessoas, conhecidos que há muitos anos não via e que eu pensei que já nem se lembravam de mim. Lá vêm eles, um a um, param em frente ao caixão e dão uma última olhada no meu rosto enrugado, elogiam minha aparência e fazem algum comentário sobre minhas supostas qualidades. Só não há lágrimas derramadas, mas isso é normal, estranho seria que as houvesse.
É curioso ser, de repente, motivo para tanto alvoroço, depois de ter vivido solitária durante tantos anos. Houve muitos preparativos antes de que chegassem os convidados. As empregadas da minha filha limparam a casa, fizeram salgados e os arrumaram na mesa da copa, e minha neta Isabel maquiou-me e colocou este laço vermelho em meu cabelo cinzento. Acho que fiquei um pouco ridícula com este laço e com estes lábios pintados e estas bochechas rosadas, mas de que serve a vaidade depois da morte? Além disso, ninguém mais achou ridículo, e todos dizem que eu estou muito bonita, mais bonita do que eu estivera nos últimos anos, embora eu desconfie que é porque querem ficar com a lembrança de uma bonequinha inofensiva e maquiada e não da velha rabugenta e solitária que eu era. Seja como for, não acho de muita importância o que as pessoas dizem ou pensam, pois, em momentos como este, as coisas que alguma vez nos preocuparam se desvanecem num nevoeiro prazeroso de indiferença. Cá estou eu, deitada no meu caixão macio e gostoso, e até uns minutos atrás sentia-me tão sossegada e contente no meu descanso modesto e pacato, que cheguei a pensar que nada na vida me aconteceu de mais agradável que a morte.
Mas nada no mundo é permanente, nem o prazer nem o desgosto, nem mesmo depois da morte, e uns minutos atrás começou a surgir em minha mente uma tênue inquietação. As pessoas passam em frente ao caixão e exclamam: “Olha como está linda, parece uma rosa!”. “Parece uma rosa, parece uma rosa…” E, de tanto falarem em rosas, lembrei-me da minha roseira e, pela primeira vez desde que morri, senti um certo desassossego e lamentei ter morrido. Quem cuidará agora da minha roseira? Olhei cuidadosamente ao meu redor: ninguém. Lá estão meus filhos, meus netos… mas ninguém, eu tive a certeza, ninguém se interessará por uma roseira.
Ganhei essa roseira da minha mãe, no dia em que eu passei no vestibular, há tantos e tantos anos. Minha mãe era uma mulher simples, humilde, que nada entendia de estudos, mas que muito sabia da vida. Estava transbordante de orgulho e de alegria, seu sonho sempre foi ver sua filha se formar, queria que eu tivesse um destino diferente do dela. E para isso eu fiz infinitos esforços, trabalhei dobrado para poder pagar o pré-vestibular, estudei obsessivamente, passei noites e noites em vela.
Mas destino é destino, e ele é regido por forças alheias à vontade do homem, por criaturas celestiais ou do céu banidas, ou simplesmente pelo acaso, pelo absurdo, ninguém sabe por quê. Minha mãe adoeceu. Minha pobre mãe, depois de uma vida inteira de abnegação e labuta, veio adoecer no momento em que o único sonho de sua vida poderia ter-se realizado. Tive que desistir da universidade. Remédios, operações, tratamentos, tinha que pagá-los de alguma forma. Ou esperar que a saúde pública a deixasse morrer lentamente. Consegui outro emprego, saía cedo de manhã e só chegava à noite, para encontrar minha mãe deitada e sem forças, mas aguardando-me acordada e com um dificultoso sorriso. Enquanto a roseira floria, minha mãe enfraquecia, desvanecia-se lentamente, e eu enlouquecia porque o dinheiro nunca alcançava para pagar os remédios.
Foi então que cedi à pressão do meu chefe. Há vários meses que ele me cercava, fazendo de tudo para que eu deitasse com ele, prometendo aumentos e regalias e ameaçando-me com a demissão. Entrei em seu escritório na hora do almoço, e disse-lhe que precisava de um empréstimo, pois minha mãe estava morrendo e não tinha dinheiro para os remédios. Sorriu. E foi ali mesmo que perdi minha virgindade, de bruços sobre a mesa onde se espalhavam os materiais de publicidade das roupas da última moda. O pobre homem. Tão pequenos prazeres para tanta perda de humanidade. É tão pedregosa a estrada da vida, que nunca entendi por que tanta gente dedica seus dias a torná-la ainda mais dolorosa. Hoje ele está morto, como eu. Afinal, somos todos iguais.
Depois disso, não tinha por que me preocupar com os escrúpulos. Fazer com um, fazer com outro, tanto faz, é tudo mais ou menos a mesma coisa. Com o tempo a gente se acostuma, o ser humano é assim, acostuma-se a tudo. Pelo menos assim eu podia comprar os remédios e não ficar desesperada cada vez que o dinheiro acabava. Quando chegava de madrugada, e não havia sabão no mundo que tirasse a sujeira do corpo e da alma, ia molhar minha roseira, e ao seu lado ficava sentada muito tempo, maravilhada ao ver que suas pétalas continuavam vermelhas, verdes suas folhas, exuberantes suas formas delineadas no resplendor da alvorada, intocadas pela poluição do mundo.
Minha mãe morreu. Coisas do destino. Com remédios ou sem remédios, lá se foi, e eu fiquei com as mãos vazias e apenas uma roseira como lembrança.
Poderia, então, ter voltado aos estudos, ter realizado o sonho da minha mãe. Mas tinha as dívidas. E, além disso, estava grávida. Minhas amigas, colegas de profissão, recomendaram o aborto. Mas eu via minha roseira, a vida que brotava luminosa a cada dia, e soube que não poderia arrancar o fruto do meu próprio ventre.
Muitas vezes me perguntei se eu fui uma boa mãe. Mas isso foi antes. Depois, deixei de pensar nisso. De qualquer forma, não se pode mudar o passado. Mas agora, com a ociosidade da morte, voltam as perguntas há tanto tempo enterradas. Não, acho que não fui uma boa mãe. É difícil ser mãe e puta ao mesmo tempo, coisas antípodas.
De qualquer forma, tentei. Tentei muito. Tive três filhos: dois homens e uma mulher, todos de pais diferentes, anônimos, desconhecidos, frutos de encontros inconseqüentes. Eles nunca souberam, nem da sua origem nem da minha profissão. Inventei todo tipo de empregos e ocupações importantíssimas para justificar minhas ausências noturnas, coisas que só uma criança acreditaria. E criei um pai mítico para eles. Era marinheiro, viajava muito. Depois morreu, numa tempestade. Morte heróica, terminou se afogando para salvar uma menina. Era bonito, forte, honesto, uma beleza. Até eu acabei me apaixonando por ele, e tão convincente foi minha fantasia, que não me surpreenderia se daqui a pouco me encontrasse com ele, em algum recanto da morte, ainda cheirando a algas e maresia.
Suportei todo tipo de humilhações e atropelos. Coisas do ofício, coisas da vida. Sem falar dos remorsos, da angústia, da solidão. Dignidade: que estranho sabor tem essa palavra, como tantas outras, deste lado da morte. Coisas sem sentido, palavras sem peso, vazias. Mas fazem parte da vida. Na vida elas pesam, são coisas imensas. Passei a maior parte da minha vida tentando não perder minha dignidade, segurando-a com todas as minhas forças no meio da tormenta. E, quando sentia que a tinha perdido, minha roseira a devolvia-me. Porque, em minha roseira, morava minha mãe, sempre otimista, sempre florida, sempre ao meu lado, me presenteando com o vermelho das suas pétalas, sem julgamentos nem acusações, e me mostrando que até no esterco podem nascer coisas belas.
Durante anos e anos economizei tudo o que pude, sem deixar de mandar os filhos para a escola e comprar livros e cadernos e lápis de cor e tudo o que eles pudessem precisar para se tornarem pessoas honestas, livres, felizes. Ingenuidade pensar que alguém pode ser realmente feliz. A infelicidade faz parte da vida tanto quanto a fome. Sacia-se durante um tempo, mas, em algum momento, há de voltar. Sempre falta alguma coisa, o homem é sempre incompleto. No caso deles, faltou o cuidado, uma intimidade mais profunda e estável. Como disse, é difícil ser puta e mãe. Mas, sobretudo, faltou um pai de verdade. O pai mítico usurpou meu lugar. Comparavam-me a ele e, ao lado do herói das mil qualidades, eu fazia uma lamentável figura: uma mãe ausente que trabalhava em horários esquisitos, levantava ao meio dia, conversava com as flores e andava triste e melancólica a maior parte do tempo.
Quando tive suficiente dinheiro para largar de vez o ofício e abrir uma pequena vendinha, sentindo que por fim minha consciência poderia descansar, meus filhos me recriminaram. Achavam espantoso e inaceitável que sua mãe se resignasse a viver das rendas de um mercadinho miserável. Não trabalhava para uma firma importante? Não virava as noites projetando campanhas publicitárias e outras coisas imprescindíveis?
Que estranha é a morte. Eu, que pensava que ela era paz e descanso, vejo agora que é tudo o contrário. Depois de tanto tempo cultivando minha solidão, aprendendo a viver sem remorsos nem rancores, deu-me agora de pensar nestas coisas. Meus filhos se foram, depois de formados, para viver suas vidas longe de mim. Realizei o sonho da minha mãe, mas os sonhos raramente são como os sonhamos. Todos terminaram a universidade e nunca pensaram em agradecer meus esforços. Ao contrário, sentiram-se alegres de poderem afastar-se de mim, livres do peso de uma mãe fracassada. Juliano foi para Brasília, Felipe para São Paulo, e tão ocupados estão com seus muitos negócios, que nunca tiveram tempo para visitar esta velha que vivia enfiada nesta casa sozinha, falando com uma roseira como uma louca. Só Teresina ficou na cidade, mas ela não gosta de sair daquela cobertura dela, e muito menos vir aqui, porque não tem garagem e não gosta de estacionar seu carro novo na rua.
Meus filhos… Aí estão eles, em pé, perto da minha cabeça, conversando. Não sabem que posso ouvi-los e por isso conversam descontraidamente de seus negócios, de suas viagens e de suas últimas compras, conservando apenas o olhar baixo e a voz taciturna, para o resguardo das aparências e benefício dos convidados.
Não quero mais estar aqui. Quero que fechem este caixão e me levem para o Campo Santo e me metam num buraco e acabem com todos os discursos e me cubram de terra, para poder dormir em silêncio e esquecer minha vida e minha morte. Esquecer sobretudo que em alguns dias minha roseira também estará morta, e então será como se eu nunca tivesse existido. Porque, agora que o penso, minha vida pode se reduzir a isso: uma roseira no meio de um deserto de fracassos e desencontros. Mas que impertinência querer que uma vida valha alguma coisa, que dela algo fique para uma suposta posteridade. E o que é a posteridade, afinal, senão um trem de esquecimento que nunca pára, ou que pára em momentos como este, para despejar os seus mortos com solenidade e seguir seu eterno caminho de indiferença?
Lá vêm eles, meus filhos e meus netos, se despedirem pela última vez. Chegou o carro da funerária, agora vão fechar o caixão. Chegou a hora. E minha roseira? Morrerá, enfim, de sede, seca e esquecida, cinza como o resto do mundo? Minha roseira, minha pobre roseira, que será do mundo sem tua beleza? Meus filhos me olham, meus netos também, mas ninguém se atreve a tocar-me, a beijar minha testa fria. Foi-se minha paz e minha alegria de morta. Um pesar doloroso esmaga-me agora.
Fecha-se o caixão e preparo-me para dormir, e tento não pensar nos pés que pisarão minha roseira. Como é escura a escuridão! As vozes da minha família se ouvem longínquas, afasta-se já o barulho do mundo. Mas, de repente, abre-se novamente o caixão e aí está Felipe, meu filho, dizendo: “Esperem um momento”. Meu Deus! Cortou minhas rosas! Matou minha roseira! E agora coloca-as no meu peito e fecha-se novamente o caixão.


Alejandro Reyes é mexicano e mora em Salvador desde 1995. pertence à nova geração de ficcionistas da Bahia. Publicou os seguintes livros de contos: Vidas de Rua (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1997); O Lacandón (Salvador: Bureau Gráfica e Editira, 1997) e Contos Mexicanos (Salvador: A Romana, 2004). Seu romance inédito A Rainha do Cine Roma, obteve menção honrosa no Prêmio Sesc de Romance 2003. desde 2004, encontra-se em Berkeley, onde concluiu mestrado em Estudos Latino-americanos, na Universidade da Califórnia, sobre a realidade dos meninos de rua. Atualmente faz doutorado em Literatura Latino-americana, na mesma universidade, sobre literatura marginal – Brasil e México.