A POESIA É O RASTO E O LASTRO – RAIÇA BOMFIM nasceu no dia 19 de março de 1986, dia de São José, em Vitória da Conquista, Bahia, cidade de minha saudade e afeto. Com menos de um ano foi morar em Salvador. Passou quatro anos e meio da infância morando com os pais em Barcelona, onde nasceu seu irmão caçula. Foi na Espanha que primeiro se alfabetizou e ficou para sempre encantada com as formas de Picasso e as cores de Miró. Seu primeiro curso de graduação foi em Produção Cultural na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Acabou por abandonar o curso ao meio para fazer Faculdade de Teatro, também UFBA. Hoje cursa o último semestre de Interpretação Teatral, com o espetáculo Pinóquio e participa de um grupo de teatro chamado Alvenaria de Teatro que estréia agora em outubro com o espetáculo As Bacantes. Raiça afirma que sua profissão é a de atriz e que a poesia e o canto são sua yoga. Vamos, então, fazer uma caminhada, como quem faz uma meditação, pelo mundo da jovem e bela Raiça Bomfim. Vamos seguir seus passos para percebermos sua poética, pois para ela a poesia é o rasto e o lastro.
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Você acha que vale a pena ser poeta, tendo em vista que “a poesia é uma ribalta entregue às moscas”, como lucidamente afirma o poeta cearense Francisco Carvalho?
RAIÇA BOMFIM – Acho que vale a pena, o papel e o verso. Nossa sociedade dá pouco valor ao que lhe é essencial: a arte, a natureza, o amor... Nem por isso, o que é essencial deixa de sê-lo. A poesia é um ofício humilde, de auscultar destroços e inutilidades (viva Barros!). Ninguém precisa dela pra viver e pouca gente consegue viver dela. No entanto, para os atentos e vivos, a poesia é inevitável.
JIVM – “Não sou alegre nem sou triste/ sou poeta”, dizem os versos da grande poeta Cecília Meireles. A sua poesia é mais alegre ou mais triste? Você é poeta ou poetisa?
RB – Acho que minha poesia não é nem alegre nem triste. Assim como eu também não sou nem uma coisa nem outra. Descrevo com vigor e curiosidade meu trajeto de vivência. A poesia é o rasto e o lastro. É o que é visto, sentido e dito: fato. É inteira, necessária e sem partido. Nem alegre nem triste, poesia.
Quanto a mim, se algo disto eu for, sou poeta. E sem frescuras.
JIVM – Você acredita na existência de uma poesia feminina e, por extensão, de uma literatura feminina? O que você acha das escritoras feministas? É mais difícil para uma mulher ser reconhecida como escritora ou a tranqueira é comum para todos?
RB – Acredito sim que há poesias que notadamente se referem mais ao universo feminino, à mulher. Nossa sociedade é patriarcal e os temas ligados ao masculino predominam e se impõem como parâmetro. Os temas ligados ao feminino aparecem como contraste, ganham contorno e definição por serem marginais, não vigentes. Vira um sub-campo: poesia feminina. Isso é muito reducionista, em minha opinião. Acho que há a literatura.
Sobre as escritoras feministas, acho que esse “feministas” é uma designação, um título que se assume para dar mais visibilidade a um grupo que trata de temas marginalizados; para trazer à luz a histórica subordinação desses temas e assegurar seu espaço na oficialidade, no discurso vigorante. É uma estratégia necessária, positiva. Mas a classificação é posterior ao fazer poético. O momento da poesia não tem categoria nem preceito. Já a circulação da poesia é política, está inserida numa ordem que tem poderes, hierarquia, patriarcado.
Não sei se é mais difícil para uma mulher ser reconhecida como escritora. Mas sei que, de uma maneira geral, é mais difícil pra uma mulher ser reconhecida. Com a poesia não deve ser diferente.
JIVM – De uma década para cá, a proliferação de blogs é algo alucinante, o que permite que cada pessoa possa criar sua página e enviar suas dores, alegrias, recados e mensagens para o mundo. Você, que tem um blog e faz desse suporte a residência de sua criação, o que acha dessa nova possibilidade? Você acha que é suficiente para um escritor publicar no seu blog ou no seu site, ou é preciso publicar um livro impresso para se realizar efetivamente.
RB – A internet abre muitas possibilidades e, muitas vezes, é a possibilidade que faz o ladrão, ou o poeta. Mas há também muito lixo, é um meio que traz em si um discurso, um ritmo, um modo. É perigoso. Não sei bem o que acho de um blog. Para mim, veio a calhar. Eu gostava de escrever, mas não era escritora e nem sonhava em ter um livro. Apenas gostava de escrever e tinha empenho e cuidado na confecção de minha poesia. Achei justo exibir pra quem se dispusesse a ler. Por isso o blog. Só depois de um tempo, é que passaram a me ver como poeta, e a possibilidade de lançar um livro se fez tangível. Porém, nunca parei para investir mais a fundo nessa perspectiva. Talvez por preguiça e desleixo, ou por prudência, sei lá. Não sei ao certo o que acho disso tudo. Passo.
JIVM – E pra acabar, fale um pouco da sua ligação com as outras manifestações artísticas e em que medida essas outras linguagens interferem na sua criação. E fale, também, das suas influências e de seus projetos.
RB – Minha profissão é a de atriz. Foi o teatro que escolhi como ofício, como meio de sustento, de troca social. As outras artes me nutrem igualmente o espírito, mas não têm o mesmo peso que o teatro exerce no meu cotidiano. É outro tempo, outra responsabilidade. Cantar e escrever são minha yoga, é o que faço para estar mais em paz, “co’alma calma”. E tudo isso é pra mim indispensável, necessário.
Por desenho e pintura eu sempre fui fascinada. Quando vi os primeiros desenhos de Vânia Medeiros, grande amiga e parceira, fiquei tão fascinada que nunca mais me desatrelei deles. Eu acho o que Vânia desenha muito íntimo e, portanto, do mundo; meu.
Cada criação minha, seja no teatro, na poesia ou na música, reflete um mesmo impulso, mas manifesto de diferentes formas. E forma é conteúdo. A criação em cada meio é muito diferente. No fundo, porém, “todos os poemas são de amor”. E todas as artes. Amor e mistério. E é ao deus-mistério que rendo graças e suor.
E já que citei Quintana, quero apontá-lo com uma de minhas ternas referências. Junto dele estão Adélia Prado, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Paulo Leminski, Pablo Neruda e Fernando Pessoa. Estes são nomes que predominaram em minhas leituras desde a adolescência e continuam imperando em minha cabeceira.