sábado, 31 de outubro de 2009

TRÊS POEMAS DE EMMANUEL MIRDAD


Ilustrações: Txhelo Castilho
















EVOLUÇÃO



primeiro foi a rebeldia
depois o cansaço
por último a fuga
e agora os cacos



GADO BOM É NO MEU PRATO


para essa poesia
dos homens de barro
ordeno que chova
derreta e desfigure
todos os encatamentos baratos
de uma atmosfera farsante

o urbano impera
e há tempos digeriu a inércia
de quem saúda o passado transposto

já era, já foi, acabou
e que as mãos cerrem as páginas inúteis
que emporcalham as prateleiras quase ausentes

eu escrevo pra mim
e enterro você, que nunca me lerá



MARIA CEGUETA


É difícil explicar a alguém
Como chegar a um determinado lugar
Se a pessoa estiver pilotando
Um animal assombroso
Aspirador de pó
Cão que rói tudo

Mesmo assim
Não faça confidências aos filhos
Nem lhes peça um apoio
Que nunca serão capazes de dar

Estão na mesma barca aportada
Entupidos do ópio comum
Às frustrações acumuladas
De todas as fracassadas gerações

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

RUY ESPINHEIRA FILHO FAZ A TRAVESSIA DAS PALAVRAS SOB O CÉU DE JEQUIÉ

No próximo sábado, 31 de outubro, derradeiro dia do mês, o poeta Ruy Espinheira Filho retorna a Jequié para participar do projeto Travessia das Palavras. Ruy vai trazer os ares de sua boa poesia e notícias do novo livro Sob o céu de Samarcanda, a ser publicado ainda este ano pela Bertrand Brasil em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional, do qual enviou-nos um poema: Canção do efêmero com passarinho e brisa.


Além da presença e poesia de Ruy, a noite vai contar contar com a participação especial do grupo musical de Salvador, Caboco Capiroba, formado pelos músicos Clara, Moisés, Mário, filho de Ruy, e João, filho do saudoso sociólogo Gey Espinheira, irmão do poeta. O grupo Caboco Capiroba, se vale dos ritmos da música nordestina, com destaque para o Baião, o Xote e o Coco. Naturalmente influenciado por Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Xangai e Elomar, derrama em suas letras a temática tradicional do sertão e da condição humana. Os temas são enriquecidos com a força da cultura do recôncavo.
O evento vai acontecer no Palácio das Artes, às 19 h 30 min, entrada franca. Como estarei participando de outro evento (Fórum das Letras de Ouro Preto), em outro estado (Minas Gerais), no mesmo dia, não poderei estar presente para acompanhar e apreciar essa noite, que sei será de alta poesia e de encanto. Mas Leonam Oliveira, presidente da Academia de Letras de Jequié, estará ciceroneando o poeta e os convidados, com a sua costumeira elegância.
Fiquemos, por enquanto, com um pouquinho da paisagem de Sob o céu de Samarcanda:


CANÇÃO DO EFÊMERO
COM PASSARINHO E BRISA



É tudo mesmo bem pouco,
pois só há pouco me vi
chegando aqui e encontrando
o que nunca compreendi
— tanto que, perplexo, tanto
duvidei de estar aqui.
E nunca acreditaria
se não fosse um passarinho
afirmando: bem-te-vi!

Ainda escuto o seu trinado
garantindo-me o existir.
Mas precária garantia,
como aprendi com a brisa
de que se compõe o dia:
se o tempo passar um pouco,
nada mais que um pouco, logo
não estarei mais aqui.


RUY ESPINHEIRA FILHO

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

TRÊS POEMAS DE CARLOS MOISÉS SOGLIA DE MELO


Hoje, meu filho mais velho, Carlos Moisés, está completando nove anos. Uma grande alegria para nós que o amamos. Moisés é uma figura radiante, ao mesmo tempo disperso e introspectivo. Adora cavalgar pelos campos de tardezinha, viajando com seus heróis, os deuses das mitologias: Hades e Zeus, Odin e Thor, Osíris e Anúbis, Cronos e Urano. Apenas Aquiles, entre os mortais. De suas viagens mitológicas retorna, quase sempre, com um poema, como os três abaixo.

Foto: Ricardo Prado


IDADE GREGA


Os minotauros têm machados
de pés de cavalos.
Quando eles colocam
os machados diante do Sol
nascem fogueiras
nas mãos dos centauros.



IDADE MILITAR


Os militares
com armas estranhas,
roupas estranhas.

Nem a pele é conhecida.



MITO DE SÍSIFO


O homem pelado segurando a pedra
com sua incrível força de pedra.

A sua força é tão inútil
quanto a pedra que carrega.

JIVM - BARCO, PARA CARLOS MOISÉS



Parabéns, Moisés. 9 x 10 para você. E mais uns 10 anos de lucro. Saúde e Sucesso. Paz e Poesia. Com amor,
JIVM

terça-feira, 20 de outubro de 2009

RETRATOS POÉTICOS DO BRASIL 2010


Organizei, recentemente, para a Escrituras Editora, de São Paulo, a agenda Retratos Poéticos do Brasil 2010, cuja temática é a poesia da Bahia. Para tanto, selecionei 46 poetas da Bahia, desde Gregório de Mattos e Castro Alves, passando por Myriam Fraga e Florisvaldo Mattos, até os jovens Cleberton Santos e Nívia Maria Vasconcellos. Para mim foi uma grande responsabilidade e, ao mesmo tempo, uma maior satisfação. A agenda ficou muito bonita. É um belo presente de fim de ano. Está disponível nas livrarias, nos sites e portais. Logo abaixo está o texto que fiz para a apresentação da agenda.


A POESIA PRIMORDIAL DA BAHIA

A poesia da Bahia está ligada às raízes da poesia brasileira. No século XVII, quando ainda vigorava o Barroco na Europa, surgem os primeiros poetas brasileiros, os baianos Manuel Botelho de Oliveira, primeiro brasileiro a editar um livro em versos, e Gregório de Matos e Guerra, com sua poesia lírico-satírico-religiosa. Gregório era um espírito irrequieto que a todos fustigava. Sua verve satírica e sua língua afiada conferiram-lhe a alcunha de O Boca do Inferno.
Não menos importante para o universo poético brasileiro foi Castro Alves, jovem poeta de versos fulgurantes que até hoje são recitados nas praças de Salvador e arrebatam multidões. Situado historicamente no Romantismo, no século XIX, Castro Alves dá nova dimensão a esse estilo de época ao enfatizar a poesia de temática social. Por conta do combate que empreendeu contra a escravidão, ficou conhecido como Poeta dos Escravos.
Do final do século XIX à primeira metade do século XX, simbolistas e parnasianos fizeram a feição poética da província. O Modernismo chegou à Bahia ao menos uma década depois do rebuliço de 1922, tendo em Godofredo Filho um dos seus precursores.
Ultrapassada a primeira metade do século XX, a poesia baiana passou a respirar novos ares com a Geração Mapa, da qual fazem parte poetas como Adelmo Oliveira, Affonso Manta, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes e Myriam Fraga, sob a liderança do cineasta Glauber Rocha. A Geração Mapa foi englobada pela Geração 60, que até hoje exerce uma influência sobre a produção artística baiana. A segunda leva de poetas da Geração 60 traz nomes como Antonio Brasileiro, Ildásio Tavares, Maria da Conceição Paranhos e Ruy Espinheira Filho.
Em seguida, configura-se a Geração 80, a partir da Coleção dos Novos, que revelou autores como Aleilton Fonseca e Roberval Pereyr. Simultaneamente, surge o movimento Poetas na Praça, que cultivava a tradição da oralidade. Seus representantes recitavam pelas praças e becos da velha São Salvador, entre os quais se destacaram Antonio Short, Douglas de Almeida, Geraldo Maia e Walter César.
A década de 1990 trouxe para o cenário outras vozes: Elizeu Moreira Paranaguá, do Círculo de Estudo Pensamento e Ação (CEPA); Goulart Gomes, do Grupo Pórtico e do Movimento Poetrix; assim como Luís Antonio Cajazeira Ramos e Mayrant Gallo que traçaram, cada qual à sua maneira, um caminho poético bem particular.
E a poesia que se faz hoje na Bahia? É a mais diversificada possível e busca alcançar vários espaços. Está presente nas praças, com os continuadores do movimento Poetas na Praça; nos grupos que saíram das universidades, como o Grupo Hera, de Feira de Santana; está presente nos prêmios da Fundação Casa de Jorge Amado e da Academia de Letras da Bahia; no Concurso Público de Poesia Falada da Câmara Municipal de Salvador – Troféu Castro Alves; nas páginas das revistas Iararana e Hera; está no Pouso da Palavra, em Cachoeira, no Recôncavo; nos projetos que se espraiam por todo o Estado – nas bibliotecas, auditórios e bares – como Com a Palavra o Escritor e Poesia na Boca da Noite, em Salvador; Uma Prosa Sobre Versos, em Maracás, no Vale do Jiquiriçá; ou ainda no Travessia das Palavras, em Jequié.
A poesia contemporânea da Bahia é pulsante e vivaz. Surge em cada rincão que compõe sua geografia e busca levar sua voz primordial, que conjuga tradição e vanguarda, para todas as partes.

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO
Poeta, jornalista e produtor cultural

terça-feira, 13 de outubro de 2009

OS 60 ANOS DO RAIMUNDO FAGNER


Hoje, o cantor e compositor cearense Raimundo Fagner completa 60 anos. O Fagner trouxe a poesia para a minha vida. Isso já faz tempo, em 1980, quando eu tinha apenas 12 anos. Estava acampando em um lugar chamado Serra das Mãos, em Alagoas. Era um mês de dezembro, eu tomava chá a beira de uma fogueira com mais uns quatro amigos. De repente, o mais velho do grupo, que devia ter uns 18 anos, ligou um radinho, sintonizou-o na rádio Novo Nordeste, de Arapiraca, e a voz argêntea do Fagner bailou nos ares agrestes, entoando um poema do Patativa do Assaré, depois cantou uma canção de John Lennon, depois uma do Zé Ramalho. Fui envolvido de tal maneira, que um novo mundo se descortinava para mim. O canto do Raimundo despertava em mim o sentido da poesia. Melhor dizendo, despertava todos os meus sentidos para a poesia.
Agradeço-lhe, profundamente, por tudo isso. Por sua música ter marcado minha adolescência e por se fazer presente até os dias de hoje, cantando versos de Cecília Meireles, Patativa do Assaré, Ferreira Gullar, Florbela Espanca, Federico Garcia Lorca, Rafael Alberti, Antonio Brandão, Mário de Andrade, Francisco Carvalho e tantos outros.
Presto minha homenagem com um poema de meu segundo livro, Decifração de abismos (2002), que é dedicado ao Fagner. O poema chama-se Saudação e foi escolhido por Marco Lucchesi para a antologia Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 2000, recém-lançada pela editora Global. Para o Fagner, os meus parabéns!
JIVM



SAUDAÇÃO
Para Raimundo Fagner


Cândido, o tempo não alisa,
os sulcos são deixados por seu arado.
No meu solo já senti o sabor da lavoura,
sabor que, por vezes, é dissabor.

Uma coisa é certa, Cândido, a poesia é salvação.
Tu foste o pastor do cântico do despertar,
foste o muezim que, do alto da mesquita,
anunciou a graça maior da poesia.

Imagine, Cândido, este poeta dos Sertões
só percebeu o escancarar da boca da estrada,
nos caminhos, da Estrada de Santana,
escancarados de tua boca.

Cândido, tange a tua voz,
sem delírio, viver não vale a pena.
Ah Cândido, pássaro extravagante,
berra o epigrama da minha adolescência:

“O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.”


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

VERÔNICA DE VATE - ADRIANO EYSEN


foto Ricardo Prado

ADRIANO EYSEN Rego (1976), poeta, contista e crítico literário, é natural de Salvador. Licenciado em Letras Vernáculas pela UEFS, Especialista em Estudos Literários pela UNEB, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da UNEB – Campus XXII – Euclides da Cunha, Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela UEFS e membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. O autor publicou os livros: Suspiros das existências (1999 – poemas); Crepúsculo das Almas (2000 – poemas pelo MAC – Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana); Diário de um Louco (2001 – contos - MAC); Sopros (2002 – poemas - MAC) e Imagens do Sertão na poética de Castro Alves (2005/06 – ensaio - UESB). Tem artigos publicados em revistas, a exemplo de Outros Sertões e Iararana, e jornais como A Tarde Cultural e Tribuna Feirense. Participou dos projetos Malungos (Salvador - 2005); Porto da Poesia na Bienal do Livro (Salvador – 2005); Poesia na Boca da Noite (Salvador); Caruru dos Sete Poetas (Cachoeira - 2006) e coordenou Café Literário no Congresso de Educação de Vitória da Conquista-BA (2005 – 2006).
*
Adriano Eysen vai se apresentar, depois de amanhã, 10 de outubro, no projeto Uma Prosa Sobre Versos, na cidade de Maracás, Bahia. Edmar Vieira, diretor de cultura do município é o coordenador do evento. O projeto vai contar também com a participação especial do Grupo Concriz - uma turma da boa da cidade de Maracás, composta por 25 jovens recitadores, dirigida pelo trio de poetas Edmar Vieira, Marcelo Nascimento e Vitor Nascimento Sá que vão recitar todos os poemas do livro Cicatrizes do silêncio.


INFÂNCIA


As borboletas trazem o hálito da manhã
e nas suas asas repousa
a leveza da minha infância.

No menino de ontem
só a antiga fotografia
das bolas de gude no quintal

e num sossego, os olhos de minha mãe
carregam o azul do céu
único como as borboletas

que dormem no sono
do menino
habitante desses versos.


ADRIANO EYSEN

ADRIANO EYSEN - ELEGIA ÀS MENINAS MEIGAS



ELEGIA ÀS MENINAS MEIGAS


Cantemos as mulheres
que trazem na noite
o aroma do sexo
e uma tristeza que a habita a lua.

São elas fidalgas
que guardam o pecado
por trás dos vestidos
envelhecidos na memória.

Cantemos suas tramas
que se findam nas camas
numa réstia de madrugada.

Lá vão elas, meninas meigas
carregando em seus corpos
a lucidez dos deuses
que as amam.


ADRIANO EYSEN

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

BABEL


Ilustração: Ana Neves Guerreiro


BABEL


Distantes do passado tetrassílabo,
jônicos e gaélicos guerreiros
passaram por aqui – passaram pássaros.

O passo temperado desse sonho
traz nas mãos cartas celtas de Babel
a convidar à noite dos diálogos.

(Todo canto termina-aproxima:
imagem indagada entre símbolos).


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO


Poema do livro inédito Roseiral, um dos vencedores do edital da Fundação Pedro Calmon, da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

ENTREVISTA - RAIÇA BOMFIM



A POESIA É O RASTO E O LASTRO – RAIÇA BOMFIM nasceu no dia 19 de março de 1986, dia de São José, em Vitória da Conquista, Bahia, cidade de minha saudade e afeto. Com menos de um ano foi morar em Salvador. Passou quatro anos e meio da infância morando com os pais em Barcelona, onde nasceu seu irmão caçula. Foi na Espanha que primeiro se alfabetizou e ficou para sempre encantada com as formas de Picasso e as cores de Miró. Seu primeiro curso de graduação foi em Produção Cultural na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Acabou por abandonar o curso ao meio para fazer Faculdade de Teatro, também UFBA. Hoje cursa o último semestre de Interpretação Teatral, com o espetáculo Pinóquio e participa de um grupo de teatro chamado Alvenaria de Teatro que estréia agora em outubro com o espetáculo As Bacantes. Raiça afirma que sua profissão é a de atriz e que a poesia e o canto são sua yoga. Vamos, então, fazer uma caminhada, como quem faz uma meditação, pelo mundo da jovem e bela Raiça Bomfim. Vamos seguir seus passos para percebermos sua poética, pois para ela a poesia é o rasto e o lastro.

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Você acha que vale a pena ser poeta, tendo em vista que “a poesia é uma ribalta entregue às moscas”, como lucidamente afirma o poeta cearense Francisco Carvalho?

RAIÇA BOMFIM – Acho que vale a pena, o papel e o verso. Nossa sociedade dá pouco valor ao que lhe é essencial: a arte, a natureza, o amor... Nem por isso, o que é essencial deixa de sê-lo. A poesia é um ofício humilde, de auscultar destroços e inutilidades (viva Barros!). Ninguém precisa dela pra viver e pouca gente consegue viver dela. No entanto, para os atentos e vivos, a poesia é inevitável.

JIVM – “Não sou alegre nem sou triste/ sou poeta”, dizem os versos da grande poeta Cecília Meireles. A sua poesia é mais alegre ou mais triste? Você é poeta ou poetisa?

RB – Acho que minha poesia não é nem alegre nem triste. Assim como eu também não sou nem uma coisa nem outra. Descrevo com vigor e curiosidade meu trajeto de vivência. A poesia é o rasto e o lastro. É o que é visto, sentido e dito: fato. É inteira, necessária e sem partido. Nem alegre nem triste, poesia.
Quanto a mim, se algo disto eu for, sou poeta. E sem frescuras.

JIVM – Você acredita na existência de uma poesia feminina e, por extensão, de uma literatura feminina? O que você acha das escritoras feministas? É mais difícil para uma mulher ser reconhecida como escritora ou a tranqueira é comum para todos?

RB – Acredito sim que há poesias que notadamente se referem mais ao universo feminino, à mulher. Nossa sociedade é patriarcal e os temas ligados ao masculino predominam e se impõem como parâmetro. Os temas ligados ao feminino aparecem como contraste, ganham contorno e definição por serem marginais, não vigentes. Vira um sub-campo: poesia feminina. Isso é muito reducionista, em minha opinião. Acho que há a literatura.
Sobre as escritoras feministas, acho que esse “feministas” é uma designação, um título que se assume para dar mais visibilidade a um grupo que trata de temas marginalizados; para trazer à luz a histórica subordinação desses temas e assegurar seu espaço na oficialidade, no discurso vigorante. É uma estratégia necessária, positiva. Mas a classificação é posterior ao fazer poético. O momento da poesia não tem categoria nem preceito. Já a circulação da poesia é política, está inserida numa ordem que tem poderes, hierarquia, patriarcado.
Não sei se é mais difícil para uma mulher ser reconhecida como escritora. Mas sei que, de uma maneira geral, é mais difícil pra uma mulher ser reconhecida. Com a poesia não deve ser diferente.

JIVM – De uma década para cá, a proliferação de blogs é algo alucinante, o que permite que cada pessoa possa criar sua página e enviar suas dores, alegrias, recados e mensagens para o mundo. Você, que tem um blog e faz desse suporte a residência de sua criação, o que acha dessa nova possibilidade? Você acha que é suficiente para um escritor publicar no seu blog ou no seu site, ou é preciso publicar um livro impresso para se realizar efetivamente.

RB – A internet abre muitas possibilidades e, muitas vezes, é a possibilidade que faz o ladrão, ou o poeta. Mas há também muito lixo, é um meio que traz em si um discurso, um ritmo, um modo. É perigoso. Não sei bem o que acho de um blog. Para mim, veio a calhar. Eu gostava de escrever, mas não era escritora e nem sonhava em ter um livro. Apenas gostava de escrever e tinha empenho e cuidado na confecção de minha poesia. Achei justo exibir pra quem se dispusesse a ler. Por isso o blog. Só depois de um tempo, é que passaram a me ver como poeta, e a possibilidade de lançar um livro se fez tangível. Porém, nunca parei para investir mais a fundo nessa perspectiva. Talvez por preguiça e desleixo, ou por prudência, sei lá. Não sei ao certo o que acho disso tudo. Passo.

JIVM – E pra acabar, fale um pouco da sua ligação com as outras manifestações artísticas e em que medida essas outras linguagens interferem na sua criação. E fale, também, das suas influências e de seus projetos.

RB – Minha profissão é a de atriz. Foi o teatro que escolhi como ofício, como meio de sustento, de troca social. As outras artes me nutrem igualmente o espírito, mas não têm o mesmo peso que o teatro exerce no meu cotidiano. É outro tempo, outra responsabilidade. Cantar e escrever são minha yoga, é o que faço para estar mais em paz, “co’alma calma”. E tudo isso é pra mim indispensável, necessário.
Por desenho e pintura eu sempre fui fascinada. Quando vi os primeiros desenhos de Vânia Medeiros, grande amiga e parceira, fiquei tão fascinada que nunca mais me desatrelei deles. Eu acho o que Vânia desenha muito íntimo e, portanto, do mundo; meu.
Cada criação minha, seja no teatro, na poesia ou na música, reflete um mesmo impulso, mas manifesto de diferentes formas. E forma é conteúdo. A criação em cada meio é muito diferente. No fundo, porém, “todos os poemas são de amor”. E todas as artes. Amor e mistério. E é ao deus-mistério que rendo graças e suor.
E já que citei Quintana, quero apontá-lo com uma de minhas ternas referências. Junto dele estão Adélia Prado, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Paulo Leminski, Pablo Neruda e Fernando Pessoa. Estes são nomes que predominaram em minhas leituras desde a adolescência e continuam imperando em minha cabeceira.

TRÊS POEMAS DE RAIÇA BOMFIM


Ilustrações: Vânia Medeiros




















OFICIAL


especializar-me quero
é no ofício de vivente,
cumprir o expediente
com alegria e viço,
fazer o que tem que
ser feito...
carpintar
e só.



PONTE
a Seu Pitico


abismo, amor, poço fundo é risco
não é sina, é sangue, coisa viva à vista
derrame o que seja, veja o que veja
me alcance a vertigem, o medo, e inflame
que o nosso destino, amor, é ponte
e estamos no meio, no veio, ao meio.

abismo, amor, diante do abismo
todo medo é o mesmo, a morte, a queda
no entanto o destino, amor, é ponte
infinita ponte de pau e ferro,
não é sina, é sangue, coisa viva à vista
me alcance a vertigem e inflame

seja pleno o passo, presente, pungente
estados em tempo, derrame o que seja,
veja o que veja, não é romantismo,
é método, emenda, é sobrevivência;
liturgia mister, não é sina, é sangue,
coisa viva à vista

abismo e sigo, angústia e alegria
que o que em mim não é amor, é covardia



ESQUINA


Sentada
com as pernas em cruz,
largou-se a sorrir feito louca
jurando que era santa
e provava o milagre
a quem lhe pagasse pra ver:
tirava leite de pedra,
água de pau, melaço de carne
e prometia o paraíso
a quem lhe alcançasse
o céu

da boca.